• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – PERSPECTIVAS DA INTERAÇÃO MUSICAL

2.3 Por uma metodologia de análise

Aqui apresentarei a metodologia de análise utilizada para a compreensão dos processos interacionais que ocorrem em seções de improviso nos grupos, Trio Curupira e Mente Clara. Essa metodologia foi retirada da tese de doutorado do pesquisador Michaelsen (2013) e se apresenta muito pertinente para a investigação que aqui se pretende fazer, pois concebe a interação como um processo de intervenção de um músico sobre a direção de outro, produzindo projeções de continuação musical no material subsequente. Essa ferramenta analítica apresenta uma forma de operacionalizar a análise que não se encerra em somente descrever a interação, sendo esse outro fator que justifica sua utilização.

O princípio fundante da metodologia de Michaelsen é a localização do pesquisador frente ao seu objeto, por tanto, analiso as seções de improvisos dos referidos grupos, enquanto ―ouvinte/analista‖ (listener/analyst). O foco da dissertação, portanto, recai sobre as maneiras pelas quais um ouvinte percebe a interação no momento do improviso. Desse modo, é a perspectiva do ―ouvinte/analista‖ que emerge na análise, não representando a ação consciente do músico e sim o que ―soa‖ interacional a este ―ouvinte/analista‖. Por conseguinte, me amparo na ―escuta interacional‖ (interactional listening) para compreender os caminhos percorridos pelos músicos nessas seções de improviso. Essa estratégia particular de escuta é a maneira de ouvir e compreender (e ainda analisar) música em que cada ouvinte percebe vários elementos e processos distintos ocorrendo simultaneamente em uma fonte musical (MICHAELSEN, 2013).

Isso posto, outro aspecto dessa metodologia é a compreensão de como ouvimos e ―dividimos‖ essa fonte musical. O autor em questão resgata a teoria de Bregman (1990), que investiga as maneiras pelas quais analisamos uma cena auditiva, a ideia de ―segregação de fluxos‖ (stream segregation), que é justamente a separação que realizamos em nossa fonte musical. Separar a fonte sonora em diferentes fluxos pode contribuir para a compreensão de um improviso na situação em que temos vários músicos tocando suas partes

simultaneamente (MICHAELSEN, 2013). Desse modo, trazendo esse conceito para o objeto desta investigação, a segregação de fluxos será percebida por instrumentos, ou seja, cada instrumento, em tese, será um fluxo musical e Michaelsen nos dá as razões pertinentes para essa ideia:

Grupos de jazz, como muitos outros tipos de conjuntos, são formados por instrumentistas que desempenham papéis específicos. Alguns instrumentos desempenham papéis melódicos ou solistas, enquanto outros executam papéis harmônicos, rítmicos ou de acompanhamento. A categoria de papéis de acompanhamento pode ser dividida em papéis separados para cada um dos instrumentos que os executam. Por esta razão, ao perceber o jazz, os ouvintes muitas vezes percebem cada instrumento como um fluxo distinto (MICHAELSEN, 2013, pp. 44-45)41.

Porém, nem sempre ouviremos cada instrumento como fluxo distinto. Em momentos específicos, esses fluxos podem se confluir, transformando-se em um único fluxo. Isso ocorre, por exemplo, na situação da seção rítmica enquanto acompanha um improvisador, embora seja possível ouvir cada fluxo como independente, as inter-relações são tantas que frequentemente podem ser ouvidas como uma unidade (MICHAELSEN, 2013).

Além do lugar do pesquisador enquanto ouvinte/analista, a sua atitude perceptiva frente à fonte sonora, escuta interacional, e o modo como cada fluxo será ouvido, Michaelsen aborda ainda a concepção de ―continuação‖, sendo essa a maneira como cada ouvinte confere continuidade ao fluxo iniciado por determinado instrumentista. Essa ideia de continuação é construída por Michaelsen a partir do conceito de ―expectativa‖ (expectation) de Meyer (1956), que é o meio pelo qual ouvintes formam previsões sobre eventos futuros. Meyer reelabora esse conceito e introduz a ideia de ―relações implicativas‖

41

Jazz ensembles, like many other types of ensembles, consist of instrumentalists that perform particular roles. Certain instruments perform melodic or soloistic roles, while others perform harmonic, rhythmic, or accompanimental roles. The category of accompanimental roles can be further divided into separate roles for each of the instruments that perform them. For this reason, when perceiving jazz, listeners often perceive each instrument as a distinct stream.

(implicative relationships) (1973), relações essas em que um evento (seja ele um motivo ou uma frase) é modelado de tal modo que podem ser feitas inferências razoáveis tanto sobre suas conexões precedentes quanto sobre como o próprio evento pode ser continuado (MEYER apud MICHAELSEN, 2013, p. 51), dessa forma Meyer desloca a energia preditiva da mente de um ouvinte para a propriedade sonora como afirma Michaelsen.

O termo para essa ―continuação‖ inferida aos fluxos de cada instrumentista, ou fluxos compostos por dois ou mais músicos, caso da seção rítmica, será a ―projeção‖ (projection), ou seja, ―projeção‖ diz respeito aos fluxos musicais sugerindo suas continuações sendo o sujeito a realizar essas projeções o ―ouvinte/analista‖. ―Projeções‖ ocorrem quando uma pessoa transfere um sentimento ou estado emocional para outra pessoa ou coisa que não pode realmente, ou seja capaz de, experimentar esse estado (MICHAELSEN, 2013, p. 52). Essa abordagem de projeção é significativa para a metodologia de Michaelsen como ele mesmo afirma:

Esse significado corresponde particularmente bem à minha perspectiva analítica, de que o analista tem a capacidade de ser afetado ("projetar" suas "expectativas") e os performers de um conjunto de jazz têm a capacidade de "implicar" essas expectativas independente se esses performers podem conscientemente ou intencionalmente implicar tais futuros. Assim, o termo projeção engloba aspectos de expectativa e implicação, mas também extrai outras definições relacionadas para produzir um complexo de significado mais rico. (MICHAELSEN, 2013, p. 52-53)42

42

This meaning corresponds particularly well with my analytical perspective, that the analyst has the capacity to be affected (to ―project‖ his or her ―expectations‖) and the performers in a jazz ensemble have the capacity to ―imply‖ those expectations whether or not those performers might consciously or intentionally imply such futures. Thus the term projection encompasses aspects of expectation and implication, but also draws in other related definitions to produce a richer complex of meaning.

Esse conceito de projeção de Michaelsen encontra respaldo em Hasty (1997), generalizando o conceito desse autor para além do domínio de ritmo e metro, e levando-o para todos os parâmetros sonoros. Hasty discorre sobre a capacidade de intervalos de duração repetidos projetarem-se no futuro e para durações futuras confirmarem o potencial projetivo de durações anteriores (MICHAELSEN, 2013). Assim, a própria essência da temporalidade da música ativa um desejo do ouvinte de ouvir as durações projetarem sua reprodução para o futuro, como afirma Hasty (1997). Dessa forma, a projeção de Hasty está mais próxima da ―implicação‖ de Meyer, como afirma Michaelsen (2013), pois ―projeções‖ são durações previstas pelos próprios sons, o que leva o autor a afirmar, citando Hasty, que ―a natureza indeterminada do som produz projeção‖ (HASTY apud MICHAELSEN, 2013, p. 53).

Nesta dissertação, as ―projeções‖ afirmadas pelo autor não serão necessariamente as previsões futuras que os músicos realmente tiveram no momento da performance, mais sim, retomando Michaelsen, previsões futuras que emergem dos fluxos dos músicos que o ―ouvinte/analista‖ projeta para cada um desses instrumentistas, e a partir da projeção desse pesquisador serão levantadas as influências e diálogos entre fluxos.

A metodologia de análise, aqui apresentada, em última instância, irá se debruçar sobre as interações que ocorrem em projeções realizadas a partir dos fluxos musicais encontrados nas seções de improvisação dos grupos Trio Curupira e Mente Clara. Michaelsen afirma que dois fluxos com projeções distintas devem, por definição, influenciar-se mutualmente de alguma forma para que ocorra qualquer interação, o autor complementa que interação pode ser processo de união ou separação de fluxos (MICHAELSEN, 2013). Neste ponto, Michaelsen dialoga com dois conceitos que serão norteadores para as análises do próximo capítulo, que ele empresta do pesquisador Paul Steinbeck (2008). Steinbeck, após Keith Sawyer, nomeia esses dois eventos de ―convergente‖ e ―divergente‖ (MICHAELSEN, 2013). Steinbeck (2008) classifica como ―convergente‖ o contexto interativo em que os músicos propõem uma mesma direção à improvisação. Em oposição a esse gesto, um contexto interativo que apresenta multidirecionalidades entre os músicos configura uma ação ―divergente‖ (STEINBECK, 2008, p. 401).

Definindo esses conceitos, à luz de Michaelsen (2013), convergente, refere-se ao evento em que dois fluxos caminham em paridade, seja formal, métrico e/ou harmônico, e o oposto, o divergente, quando dois fluxos se desalinham em suas projeções, da mesma forma, sejam elas contrariedades métricas, formais ou harmônicas. Neste trabalho, esses eventos representam ações musicais de um músico em resposta a gestos musicais percebidos na performance. Um fluxo que modifica sua projeção com a intenção de integrar outro fluxo configura uma atitude convergente. Em contraposição, um fluxo que se distancia de um gesto musical, projetando novas direcionalidades, caracteriza uma atitude divergente.

Essas convergências e/ou divergências ocorrem em diferentes níveis, como afirma Michaelsen, e dessa forma, dois fluxos podem convergir em um nível, porém, divergir em outro, além disso, existem algumas possibilidades dessas ocorrências. O quadro abaixo ilustra possibilidades de interação entre dois fluxos, descritos como S1 e S2; as interações A B e C representam interações convergentes, pois os fluxos buscam uma confluência, as interações D E e F, ao contrário, divergem de alguma maneira e se distanciam enquanto fluxos, projetando previsões futuras desalinhadas.

Por fim, Michaelsen expande sua metodologia para três domínios adicionais da atividade interacional, com o intuito de aprofundar e ampliar sua perspectiva interacional. O autor argumenta que a interação não está restrita às linhas criadas por cada instrumentista, isto é, da mesma forma que uma projeção pode influenciar outro músico, uma projeção de progressão harmônica também tem essa propriedade, assim como projeções de papéis pré- estabelecidos ou restrições estilísticas levariam um músico a alterar seu futuro projetado (MICHAELSEN, 2013). Assim, temos que, o primeiro domínio elencado por Michaelsen são os ―referentes‖, o segundo, ―papéis pré- estabelecidos‖ e por fim, ―estilo‖. Dessa forma, as interações saem do campo pessoal, particular, para o conjunto de expectativas que emergem de grupos maiores.

Por ―referente‖, Michaelsen compreende toda a gama de materiais antecedentes que exercem influência sobre uma performance, temas, partituras, arranjos são entendidos como referentes. Assim, a melodia de um tema, uma progressão harmônica específica, determinados grooves ou conduções rítmicas, operam como um membro invisível influenciando as expressões dos músicos por toda parte e ocasionalmente sendo modificado pelas alterações ou adições dos músicos (MICHAELSEN, 2013, p. 90). Dessa forma, o início da interação se dá desde a escolha do tema que irá ser executado, em que todo o grupo passa a realizar projeções sobre essa performance, caso a execução, de fato, obedeça às projeções, entendo esse evento como convergente, caso contrário o evento é compreendido como divergente.

Assim como os referentes contribuem na interação da performance, o estabelecimento de funções e ―papéis pré-estabelecidos‖ também terão a mesma capacidade interativa. Monson (1996) foi a primeira a codificar as funções presentes, a partir dos papéis pré-estabelecidos, em um grupo de música instrumental, no caso da pesquisadora essas funções eram referentes aos pequenos grupos de jazz. Michaelsen opera com a mesma definição de funções que são ―manutenção do tempo‖, ―acompanhamento‖ e ―solista‖, e esclarece que estas funções, geradas a partir dos papéis dos instrumentistas,

não são impostas de cima, mas sim negociadas como e através dos atos musicais.

O ato de negociação que ocorre para o estabelecimento desses papéis e funções, já se configura como ato interativo. Os papéis e as funções no grupo são interacionais, na medida em que são locais de interação do grupo, e interativos, na medida em que interagem entre si e são definidos por essa interação. Dessa forma os papéis só encontram significado por serem realizados e negociados na performance (MICHAELSEN, 2013, p. 123).

Chamo atenção para o fato dessa negociação no contexto estético da Escola Jabour ser bastante potencializada, pois existe uma diferença estrutural entre a ideia de acompanhamento da seção rítmica no jazz e a concepção utilizada nos grupos cuja filiação estética advém da Escola Jabour. Michaelsen (2013) define como diferença básica entre o solista e o acompanhamento o fato de o solista liderar e a seção rítmica acompanhar este solista. Porém, conforme buscarei apontar no próximo capítulo, na Escola Jabour essas duas funções são diluídas, e a concepção que norteia o acompanhamento de um solista se preocupa menos com uma manutenção de tempo, como suporte, e mais com um diálogo entre todos os integrantes.

O último domínio que Michaelsen (2013) discute é o ―estilo‖, tanto como gênero musical (swing ou bebop, por exemplo) quanto individual, e as interações que sobressaem desse domínio. O autor afirma que as restrições ou limitações determinadas pelos papéis pré-estabelecidos, assim como determinados pelos estilos, contribuem para a performance, por reduzir as possibilidades dos músicos, que podem, dessa forma, focar em outras áreas da performance, como o desenvolvimento do material musical e a interação (MICHAELSEN, 2013). A justificativa dessa necessidade de restrições se dá pelo fato da incerteza futura em uma seção de improviso, em que, ―o que tocar depois‖, é uma preocupação recorrente nesse momento de risco que é a criação em tempo real. Assim as restrições que partem dos papéis e funções individuais, bem como dos estilos, promovem um conforto aos instrumentistas que podem focar a atenção em outros aspectos performáticos.

Para a consolidação desses estilos, podemos observar a recorrência de padrões melódicos e determinadas conduções rítmicas, executadas pela seção rítmica. O que vai contribuir para a performance, para que cada músico tenha uma projeção mínima ―daquilo que vem a seguir‖ são algumas limitações elencadas por Michaelsen. A progressão harmônica seria a primeira limitação que auxilia nas projeções dos músicos sobre qual será o próximo acorde que será tocado, o estabelecimento e manutenção do andamento e da formula de compasso também exerce essa função de auxiliar projeções e por fim, convenções sobre a ordem dos improvisadores nas seções de improviso. Com essas limitações estabelecidas os músicos conseguem projetar melhor as performances de seus pares além de melhor organizar seus próprios desenvolvimentos.

Assim, após apresentar um breve panorama histórico sobre os conceitos interacionais dos principais autores que dialogo neste campo de estudo, o conceito de interação que atravessa este trabalho, e a metodologia analítica que norteou a investigação nesta dissertação, apresento, no capítulo seguinte, duas análises dos processos interacionais de excertos de seções de improviso retirados dos grupos Trio Curupira e Mente Clara.