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Por uma possível aproximação entre o gnosticismo e a teodiceia

No documento Flavia Santos Arielo.pdf (páginas 83-87)

3. Gnosticismo: a natureza é o templo de Satã.

3.4 Por uma possível aproximação entre o gnosticismo e a teodiceia

Historicamente, não há como relacionar diretamente estes dois conceitos – gnosticismo e teodiceia – sem cometer anacronismo. Como já apontado anteriormente, a teodiceia surge como uma tentativa de justificar Deus racionalmente perante a existência do mal no mundo. Para um racionalista feito Leibniz32, desenvolver um estudo sistemático sobre a defesa de Deus significou não aceitar a irracionalidade do mundo e consequentemente tentar salvar a competência de Seu criador.

Levando em consideração o conhecimento do mundo através do gnosticismo, formado a partir de preceitos maléficos – Deus mau, Desconhecido e apartado do mundo - e comparando-o com a busca pela justificação de Deus, uma possível resposta à teodiceia seria, no mínimo, negativa. Em outros termos: se há alguma possibilidade plausível a partir da visão gnóstica de mundo para a explicação racional dos males terrenos, isso só poderia se tornar viável levando em conta as qualidades – ou defeitos – divinos. Os gnósticos tornaram claras suas posições sobre o tema, pois, para ter alcançado o conceito de um Deus mau bastou a observação do mundo como um todo e da experiência cotidiana: “(...) o homem é uma cópia do padrão divino” (RUDOLPH, 1987, p. 92, tradução minha). Determinados textos gnósticos chegam a comparar Deus e os homens em relação a própria criação: “Deus criou os homens e os homens criaram Deus. Assim é também no mundo, desde quando os homens criaram deuses e os veneraram como criaturas deles. Seria apropriado que os deuses venerassem os homens.” (NHC II 3,71 (119), 35-72 (120), 4 apud RUDOLPH, 1987, p. 93, tradução minha). E vão além: se faz necessário conhecer o homem para que se conheça a Deus:

O verdadeiro conhecimento de Deus começa com o conhecimento do homem como um ser relacionado a Deus. A ‘árvore do conhecimento’ no paraíso de acordo com vários textos gnósticos dá a Adão seu

32 Cf. DASCAL, Marcelo. The Balance of Reason. In VANDERVEKE, Daniel (org) Logic, thought and action,

82 apropriado status de Deus (...). Do mesmo modo, a serpente no paraíso, funciona em alguns sistemas a mando do Deus Altíssimo para instruir o primeiro homem e isso era uma tarefa positiva (NHC XIII 1, 40, 23-29 apud RUDOLPH, 1987, p. 94, tradução minha).

Se a resposta dos gnósticos ao mundo é negativa isso significa também afirmar que o plano metafísico é mau e a estrutura do ser também é má.

Os gnósticos jamais poderiam responder à teodiceia, pois o conceito só viria a se formar séculos após, na modernidade, e principalmente, porque Leibniz partia do pressuposto de que Deus era bom, estando, portanto, a resposta gnóstica fora dos pressupostos da teodiceia. Mas há um elo entre os conceitos bastante viável: Leibniz formulou a teoria da teodiceia a partir de sua inquietação com a questão do mal – uma preocupação real e concreta. Para ele, uma formulação como a dos gnósticos jamais poderia ser aceita, não racionalmente; um mundo irracional e um Deus incompetente não poderiam ser moldados ou medidos pela razão. Admitir um mundo assim seria aceitar o mundo dos céticos e dos gnósticos33.

Por fim, essa aproximação um tanto delicada entre o gnosticismo e teodiceia pode ser adotada, com toda cautela que a situação demanda, a partir do principio de razão suficiente: concernente a isso, tudo no mundo é passível de ser explicado racionalmente, tanto a existência do mal num mundo criado por um Deus benevolente e completamente poderoso quanto precisamente a anuência com a existência de um Deus mau e ausente. “A busca da razão no mundo não deriva de noções religiosas da Providência. A invenção da Providência surge, isso sim, com a busca de razão no mundo” (NEIMAN, 2003, p. 350). Tanto por um lado quanto pelo outro, o que realmente faz sentido é tornar claro o papel da busca racional, tenha ela uma conclusão positiva ou negativa a partir da pergunta se o mundo não deveria ser tal qual se apresenta a nós.

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CAPÍTULO 3

84 1. Prólogo

Deixe-me chorar Pelo meu destino cruel, Que eu suspire pela liberdade! Rinaldo de Händel.

É chegado o momento de esboçar a que veio o Anticristo de Lars Von Trier. O filme se revelará não no sentido teológico de Revelação – termo de fundamental importância para a teologia cristã -, mas sim sob a luz das teorias propostas no capítulo anterior, agora inseridas sobre as cenas e sobre o enredo propriamente dito. É na revelação fílmica que se fundamenta o âmago deste trabalho.

O Prólogo é a introdução ao filme, é ele que nos exibe aos personagens e a história sobre a qual o filme se desenvolve. Lars von Trier se utilizou dessa linguagem aproximada à literatura para poder estruturar o filme: a apresentação através do prólogo e o desenvolvimento dos capítulos seguintes, até o epílogo, onde o filme se fecha, como num livro. O próprio diretor confessa o porquê de utilizar essa estética literária: “O conceito de fazer em capítulos foi tirado de ‘Barry Lyndon’, um dos dez melhores filmes para mim. Foi surpreendente quando Nicole Kidman me disse que Stanley Kubrick falou a ela que odiava filmes longos” (JENKINS, 2009). Essa abertura dada pela introdução é a síntese do filme: todos os outros acontecimentos giram em torno dos fatos ali apresentados pela primeira vez.

Há um diferencial proposto por essa abertura, que começa a partir da textura dos planos34 em si: utilização da técnica slow motion35, em preto e branco, tendo como fundo a música Lascia Ch’io Pianga, de Händel, uma ária da ópera Rinaldo. Levando

34 O plano consiste na parte do filme situada entre dois pontos de corte. É o tempo que a câmera leva entre uma

cena e outra, podendo ter a duração de segundos ou horas.

85 em consideração a estética dessa sequência36, o filme parece conduzir o espectador para a intimidade da história de forma leve, sutil. O tom dramático valorizado tanto pela música quanto pela ausência de cor carrega as imagens de beleza. Nos minutos que se seguem há um claro embate entre a beleza estética da cena e o horror que a história - contada sem diálogos ou por uma palavra sequer - está prestes a nos evidenciar.

São estes os planos essenciais do filme, nas quais, pela ausência das palavras e através da clareza cinematográfica, um conceito parece se desvelar: a Queda do homem. A letra da música de fundo aponta um indicativo sobre o momento: “deixe- me chorar pelo meu destino cruel (...), que a dor possa romper os laços da minha angústia”.

No documento Flavia Santos Arielo.pdf (páginas 83-87)