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O positivismo legal: a foraclusão do sujeito da ciência do direito e o f-ato da codificação como operação jurídica

No documento O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL (páginas 150-163)

O POSITIVISMO JURÍDICO COMO ATO DISCURSIVO E CONDIÇÃO DA CRÍTICA NA RAZÃO JURÍDICA

4.1 DUAS VERTENTES DO POSITIVISMO JURÍDICO E UM CAMPO DISCURSIVO

4.1.1 O positivismo legal: a foraclusão do sujeito da ciência do direito e o f-ato da codificação como operação jurídica

O movimento moderno da codificação se insere no contexto do racionalismo iluminista. As codificações dos séculos XVIII e XIX não deveriam repetir o passado, mas servir de garantia ao futuro.

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Elas se opõem, portanto, ao modelo de codificação justiniana. O Corpus Iuris não correspondia senão a uma compilação de leis anteriores, a uma antologia jurídica. Não representava uma obra da razão humana, mas da tradição histórica. Não significava uma descontinuidade com o passado, mas sua continuidade. Não correspondia assim ao ideal de uma autêntica codificação moderna.

Esta, com efeito, não podia estar sujeita às arbitrariedades da história. Não podia ser mera extensão do costume, ou seja, do direito consuetudinário, porque a sociedade moderna, uma sociedade em transformação, exigia um projeto racional. À transformação social, deveria corresponder, portanto, o poder de transformação da razão humana, razão jurídica.

A codificação representava um ato de autoridade e, pois, de positivação do direito, supostamente sustentado na Razão. O direito posto pela codificação não era um direito autoritário, arbitrário, mas racional — supostamente racional. A positivação, porque positivação codificada, não se reduzia à vontade da autoridade, não era uma positivação sem razão. Ao contrário, era a própria positivação da Razão — obra humana, de um homem que se supõe naturalmente racional.

A codificação surgia assim como positivação racional, ou, ainda, como a “[...] positivação do direito natural”5. Se ela é revolucionária, ela representa em primeiro lugar não uma determinada revolução historicamente situada, mas a revolução da Razão, uma razão universal. Essa naturalização e universalização da razão, uma razão supostamente emancipatória do homem, já é, aliás, um resultado das revoluções modernas, ou melhor, do desconhecimento — um desconhecimento estruturante do funcionamento do campo jurídico — do efeito de conservação e mestria que a revolução opera6.

Isso vale para a ciência do direito, já que na modernidade — ao menos no que ela tem a ver com instrumentos de controle do positivismo — o discurso científico está do lado

5

BOBBIO, O positivismo jurídico..., 1995, p. 54. 6

Lacan (O seminário - livro 17, 1992, p. 196): “[...] a aspiração revolucionária só tem uma chance, a de culminar, sempre, no discurso do mestre” ou na “[...] razão de Estado [...]”. (WEBER, Economia y sociedad I, 1974, p. 639). Como o sabem Durkheim (Capítulo 2, seção 2.1) e Weber e afirma Lacan (O seminário - livro 17, 1992, p. 196), “[...] isso é o que a experiência provou”. O tema da revolução em Lacan (também em Durkheim e Weber) mostra que o absolutismo do significante não é do registro cronológico e de um tempo linear, não é natural ou pré-moderno, mas radicalmente moderno e, pois, estruturante das relações jurídicas e de poder, através da mediação discursiva, em que o sujeito e seu gozo estão implicados, ainda que por efeito de uma posição de objeto. A Revolução inscreve uma falha constitutiva do sistema, que só é assumida como falta insatisfatória, condição de uma suposta realização no futuro, por efeito de uma posição de gozo, que se lê no discurso histérico. Como diz P. Bruno (Satisfação e gozo, [19--], p. 80): “[...] nós sabemos no que a histérica é constituinte da revolução psicanalítica — eu disse constituinte, da mesma forma que na Revolução Francesa dizia-se a ‘Assembléia Constituinte’ – que é de demonstrar na sua relação com o Outro que a essência do desejo, para cada um, é de ser insatisfeito [...]”

do mestre7 e se alicerça no ideal universitário8. Ora, é nesse contexto de ideal científico e moderno — o qual faz do próprio sujeito um sujeito suposto — que se pode entender como natural o ato codificatório, que então produz um limite à contingência social e à radicalidade da positivação9, constituindo o projeto jurídico moderno como suposta garantia do progresso social. O futuro social, a transformação social, a revolução social deve assim ser uma revolução controlada juridicamente. Nesse sentido, a concepção moderna de código serve ao controle da sociedade e à sua planificação global.

Esse controle pela razão jurídica, razão universal, prescindia, em princípio, mesmo de uma razão técnica. O sujeito de direito por excelência era, com efeito, não o especialista, mas o cidadão. Kant, por exemplo, enalteceu o traço liberal da codificação prussiana, marcada pelo caráter popular e simplicidade da linguagem10.

Essa idéia de uma linguagem simples e clara é que faria do direito um direito acessível a todos. A distinção entre juristas e cidadãos comuns só faria sentido, segundo Siéyès, enquanto não promulgado o código. Operador do direito e cidadão não seriam assim lugares simbólicos e diferenciados, instituídos pela positivação do direito, mas, ao contrário, noções apriorísticas que se uniam na justificação do direito codificado. Nesse sentido, Siéyès propunha, no artigo 84 do projeto de lei por ele apresentado, a seguinte regra transitória:

No presente e enquanto a França não for liberada dos diferentes costumes que a dividem e um novo código completo e simples não for promulgado para todo o reino, todos os cidadãos conhecidos com o nome de juristas (gens de loi) e atualmente empregados nesta qualidade serão por direito inscritos no registro dos elegíveis para o júri.11

O artigo 32 do mesmo projeto esclarecia o pressuposto racional da codificação: “[...] os legisladores subseqüentes se preocuparão em dar aos franceses um novo código uniforme

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Cf. LACAN, O seminário - livro 17, 1992, p. 140. Segundo ainda Lacan (ibid., p. 140), “[...] é isto precisamente que não se pode dominar, não se pode amestrar”.

8

LACAN, O seminário - livro 17, 1992, p. 97. 9

Cf. LUHMANN, Sociologia do Direito I, 1983b, p. 234-235. 10

Cf. WIEACKER, História do Direito privado moderno, 1993, p. 368-369. Desse modo, o projeto moderno de codificação é compatível seja com o absolutismo ilustrado, seja com uma sociedade revolucionária, como na França (Ibid.). O ideal kantiano insere-se nos impasses, a que nos referimos acima, da razão de estado e da aspiração revolucionária, e só é esclarecido no contexto da relação Kant com Sade, que discutimos no Capítulo 2. Aliás, como diz Dunker (O cálculo neurótico do gozo, 2002, p. 49-50, grifos do autor), “[...] há, em Sade, um projeto social de instituição de uma nova lei, não mais fundada na interdição e na moral cristã, mas no imperativo do acesso universal e natural ao gozo”: “‘Franceses, um esforço a mais se quereis ser republicanos’, o capítulo mais importante de A filosofia na alcova, procura mostrar como tal imperativo é uma espécie de coroamento, de ultrapassamento necessário e conseqüente da Revolução Francesa.”

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de legislação e um novo procedimento, reduzidos um e outro à sua mais perfeita simplicidade.”12.

Esse projeto, que nunca foi aprovado, insere-se no processo de codificação continental-europeu. O princípio da codificação, estabelecido na Constituição de 1791, teve consecução na França através de vários códigos que, segundo Aubry e Rau, “[...] constituem um dos mais belos títulos da glória de Napoleão [...]” e formam “[...] um conjunto de tal modo claro, coerente e completo que, de todas as legislações européias, são poucas as que podem ser comparadas à legislação francesa”13.

Se o Código Civil de 1804 é considerado um marco, não o é desde um ponto de vista simplesmente cronológico, mas em razão do enorme impacto histórico, formal e de conteúdo que provocou, repercutindo inclusive na legislação de outros países14.

O Código Civil não se caracteriza, aliás, tanto pela ligação genérica às idéias de nação ou cidadania, mas pela demarcação desde a constituição de um espaço próprio de atuação individual. O Code, com efeito, não é decorrência imediata do espírito iluminista, que ainda é compatível com o absolutismo ilustrado, mas deve ser relacionado a um modelo constitucional liberal, em que os campos público e privado encontram-se naturalmente demarcados. A ênfase não está na atuação absoluta, excessiva do Estado, ainda que atuação pretensamente ilustrada. Supõe-se que o Estado liberal não intervém senão excepcionalmente: ele não protege o cidadão a ponto de neutralizar a sua própria ação; ele o protege para lhe garantir a liberdade. O Estado de direito liberal supostamente reconhece os homens como essencialmente livres e naturalmente inscritos em um campo de atuação com liberdade. Todos são igualmente livres para atuar... em razão de um duplo desconhecimento, estruturante do campo jurídico: em primeiro lugar, desconhece-se o efeito da estatística que marca, recorta, constitui, inventa o corpo social15; em segundo lugar, desconhece-se que a não intervenção do Estado se inscreve como um modo de intervir16, usando para isso a letra do direito.

É nesse contexto que o Código Civil francês vem supostamente assegurar a igualdade e a liberdade, no espaço privado, econômico, até o ponto de se transformar na fonte principal do direito. Nesse sentido, ele e os códigos civis que influenciou “[...] deixaram de

12

SIÉYÈS apud BOBBIO, O positivismo jurídico..., 1995, p. 67. 13

Cf. AUBRY; RAU, Droit civil français, 1936, p. 35, tradução nossa. 14

Cf. BOBBIO, O positivismo jurídico..., 1995, p. 63-64; WIEACKER, História do Direito Privado moderno, 1993, p. 386; 390.

15

Cf. REVEL, Nascimento da Estatística, 1990, p. 122 et seq. 16

ser a refração no plano civil das idéias individualísticas da constituição para passarem a dimensão central do direito positivo do Estado”17.

A descontinuidade entre o princípio iluminista, ou mesmo constitucional, e o efetivo processo de codificação se explica, porque este não pode ser dissociado, de um lado, do contexto revolucionário francês e, de outro, de um processo de tecnicização crescente, desde a elaboração até a aplicação do Código pelos intérpretes da Escola de Exegese.

A Revolução em seus primeiros momentos não era ambiente favorável à realização

do projeto codificatório18. A pressa em fazer tabula rasa do passado não permitia a

elaboração de uma legislação sistematizada. Na primeira fase da revolução, as filosofias de Montesquieu e Voltaire e suas idéias acerca da lei não levaram senão a “[...] uma produção legislativa entusiástica e febril [...]”, expressão dos “[...] interesses da nova sociedade burguesa [...]”19.

Os projetos de codificação desse momento revolucionário não foram adiante. Combacères, por exemplo, foi responsável por três projetos de Código Civil, apresentados em 1793, 1794 e 1796. Eles são importantes para mostrar o deslocamento de ênfase no processo de codificação francês, em que o ideal jusnaturalista presente no primeiro projeto cede pouco a pouco lugar a uma tendência tecnicista:

O terceiro projeto [...] representa um passo avante (do ponto de vista da maior elaboração técnico-jurídica e da maior conformidade à experiência jurídica tradicional); ou, se se prefere, um passo atrás (do ponto de vista do abandono dos princípios do jusnaturalismo racionalista). Combacères realmente se deu conta de que a oposição dos juristas tradicionalistas (que, no clima moderado do Diretório, haviam readquirido voz em assembléia) tornava impossível a realização de um ‘código de natureza’, simples e unitário, tal como ele havia almejado. O projeto de 1796 apresenta, portanto, por um lado uma maior elaboração técnica (compunha-se de 1.004 artigos) e, por outro, uma notável atenuação das idéias jusnaturalistas Também esse terceiro projeto não foi aprovado. Contudo, teve uma maior importância histórica, visto que foi o único dos três projetos apresentados por Combacères que exerceu uma certa influência na elaboração do projeto definitivo do Código Civil (embora os membros da comissão preparatória tenham tentado obscurecer as relações de seu projeto com todos os anteriores).20

O projeto definitivo do Código Civil, elaborado por uma comissão instituída por Napoleão, representa uma reação ao primeiro período revolucionário. O Código Civil, para ser uma autêntica manifestação da cidadania e da nação, devia ser moderado. Não podia se constituir na radicalização dos ideais do iluminismo. A certeza e segurança jurídicas deviam

17

Cf. CANOTILHO, Direito Constitucional..., 1999, p. 117, grifo do autor. 18

Cf. WIEACKER, História do Direito Privado moderno, 1993, p. 387. 19

Ibid., p. 387-388. 20

ser garantidas não pelas concepções jusnaturalistas, mas pela elaboração de um código propriamente jurídico, técnico21.

Essas duas tendências do projeto definitivo (moderação e tecnicismo) servem à justificação da nova ordem e controle do fenômeno da positivação, já que aqui o questionamento ao direito natural não deve significar abertura à contingência, mas, ao contrário, a possibilidade de afirmação de uma significação supostamente unívoca, própria a um verdadeiro eu, o eu burguês, que supostamente representa a unidade nacional.

O Código de Napoleão é, com efeito, expressão da classe revolucionária. A nova ordem jurídica, ordem liberal, é ordem burguesa. O código é moderado, no que ele tem de ordem, mas é essa mesma ordem, ordem racional, que introduz uma falta: ela é imoderada, parcial, excessiva — excessivamente burguesa.

Se, portanto, o Código de Napoleão é um código feito à imagem do burguês — esse mestre da modernidade —, essa é uma imagem jurídica que, estruturada a partir de um ponto cego, não serve senão à legitimação de um projeto de poder — um projeto e um poder

imoderados.O jurista identificado ao positivismo legal desconhece — um desconhecimento

estruturante do campo jurídico — esse efeito de poder e o estatuto estruturalmente falho do direito. Se há uma falha, uma lacuna, esta é entendida pelo jurista como excepcional e negativa, que pode e deve ser tecnicamente controlada.

O trabalho técnico do jurista é, numa palavra, responsável pela codificação. Ou seja, o f-ato da codificação não é apriorístico, imediato, como queria Siéyès, mas efeito retroativo da operação jurídica22. Se tal efeito retroativo e produtivo é desconhecido enquanto tal, se a decisão do direito é tomada como meramente técnica, natural, isso não é resultado de qualquer ilusão individual, psicológica, ou mesmo patológica, porque se trata de uma ilusão

mais radical, uma ilusão funcionalmente necessária23, constitutiva do funcionamento do

campo jurídico e responsável pela instituição e foraclusão do sujeito da ciência do direito.

21

Desse modo, “[...] o projeto definitivo abandonou decididamente a concepção jusnaturalista [...] O Código de Napoleão representa, na realidade, a expressão orgânica e sintética da tradição francesa do direito comum. Em particular, foi elaborado com base no Tratado de direito civil, de Pothier, o maior jurista francês do século XVIII”. (BOBBIO, O positivismo jurídico..., 1995, p. 72).

22

Isso, como vimos, pode ser reportado à concepção lacaniana de discurso e à autopoiese social de Luhmann. Não se trata assim de simplesmente denunciar o que alguns chamam de crise da codificação. A propósito, vale citar ainda o que diz Eco (Tratado geral de Semiótica, 2002, p. 40) no capítulo sobre a teoria dos códigos, quando trata da função sígnica: “[...] os signos são o resultado provisório de regras de codificação que estabelecem correlações transitórias em que cada elemento é, por assim dizer, autorizado a associar-se a um outro elemento e a formar um signo somente em certas circunstâncias previstas pelo código.” Desse modo, “[...] poder-se-ia dizer que não é correto afirmar que um código organiza signos; um código proveria regras para GERAR signos como ocorrências concretas no curso da interação comunicativa [...] em todo caso, o que entra em crise é a noção ingênua de signo, que se dissolve numa rede de relações múltiplas e mutáveis”. (Ibid., p. 40, grifo do autor).

23

Um sujeito que se faz foracluído. Um sujeito suposto, que se sustenta na suposição de legitimidade dos ideais e instituições modernas. Por isso mesmo, não se trata de negar o positivismo legal, e sim de situá-lo, na sua razão enganada, estruturante da nova ordem jurídica.

A nova ordem burguesa, justamente porque corresponde a uma representação pretensamente unívoca, exclui outras representações — relacionadas, por exemplo, ao particularismo feudal, ao regionalismo corporativo e à valorização do trabalho — incompatíveis com o primado individualista da liberdade econômica e contratual24.

A nova ordem exclui essas representações, as silencia, no momento mesmo que as inclui... como exteriores e desviantes do direito, e ainda que as faça suscetíveis de integração ou emancipação... lá, no futuro. A nova ordem, ao incluir, instituir o outro, o diferente, o exclui... duas vezes. A exclusão é redobrada e naturalizada, na suposição da objetividade da ordem simbólica, ordem moderna e no desconhecimento de que se trata de uma exclusão constitutiva da ordem e da razão jurídicas.

O Código Civil não reconhece assim os direitos naturais, senão aqueles propriamente jurídicos, incluídos na nova ordem, em especial o direito de propriedade e o direito de contratar. Desconhece-se — um desconhecimento estruturante do funcionamento do campo jurídico — que tais direitos são o resultado de um ato de violência — violência simbólica, real25: eles são feitos naturais, são naturalizados por efeito dos próprios procedimentos jurídicos institucionalizados, que, como vimos, constituem práticas ideológicas, o que não quer dizer práticas irracionais, já que são constitutivas da razão jurídica, uma razão constitutivamente enganada. Exemplo dessa racionalidade é o funcionamento institucional que faz com que a lei sequer se submeta ao controle jurisdicional de constitucionalidade, devido a uma concepção rigorosa do princípio da separação de poderes. Um rigor que produz resultado, ou seja, a racionalidade se anula a si mesma, em

24

As “[...] relações econômicas encontram tradução no plano jurídico, desde as primeiras constituições liberais em três institutos: o direito de propriedade, a liberdade de empresa [...] e a liberdade contratual – esta última a serviço fundamentalmente da liberdade (de contrato individual) de trabalho”. (MOREIRA, A ordem jurídica do capitalismo, 1978, p. 147, grifos do autor). Nesse contexto é que se insere o seguinte comentário de Lacan (O seminário - livro 11, 1990, p.202, grifos do autor): “A liberdade, vocês sabem, antes de mais nada, é como a famosa liberdade de trabalho, pela qual a revolução francesa, parece, se bateu — pode bem ser também a liberdade de morrer de fome, é mesmo ao que isso levou durante todo o século dezenove, é por isso que foi preciso, depois, revisar alguns princípios. Vocês escolhem a liberdade , muito bem!, é a liberdade de morrer. Coisa curiosa, nas condições em que lhe dizer a liberdade ou a morte!, a única prova de liberdade que vocês podem fazer nas condições que lhes indicam, é justamente a de escolher a morte, pois aí, vocês demonstram que têm a liberdade de escolha. Nesse momento, que é também aliás um momento hegeliano, pois é o que chamamos de Terror, essa repartição inteiramente diferente é destinada a pôr em evidência para vocês o que é, nesse campo, o essencial do vel alienante, o fator letal.”

25

função da “[...] ‘inutilidade de um controle de constitucionalidade confiado a um corpo exclusivamente político’”26.

Nesse contexto, o critério de validade da norma jurídica — a pertinência ao código — tende a ser absolutizado. O código, conjunto de normas jurídicas, supostamente completo e coerente, representa propriamente a constituição da nova ordem jurídica. Ele é a fonte de direito, enquanto tal. Ele unifica e ordena, ao inaugurar uma ordem jurídica que se representa como perfeitamente unificada. Se a França pré-revolucionária, a França tradicional, do passado, era uma França dividida entre um direito costumeiro e um direito escrito, agora o direito é um direito unificado e moderno. O Código de Napoleão não é apenas direito escrito, mas direito positivo e, pois, direito novo, que faz corte com o passado. Na França do século XIX, no moderno direito francês, a lei é o direito, por excelência - direito positivo, direito burguês. E o Código de Napoleão, justamente porque legislação codificada, todo o direito. O professor Bugnet sintetizava esse princípio universitário do positivismo legal: “Não conheço o direito civil; apenas ensino o Code Napoleón [...]”27.

A razão jurídica era assim identificada ao direito escrito e codificado, exigindo instrumentos técnicos de controle contra as incertezas da lei positiva. Esse controle técnico era a um só tempo sintomático: ele apontava para uma falta, para uma defasagem entre a lei e a realidade, que se instaurava no momento mesmo da aplicação do direito. Um controle e um sintoma, pois, que tinham uma razão de ser: o princípio positivista da onipotência do legislador (e conseqüente completude do ordenamento jurídico) confrontava-se com a impositividade da decisão. A sociedade moderna exige decisão para os conflitos que são próprios ao seu funcionamento complexo; o juiz não pode abster-se de decidir. Era isso, com efeito, que determinava o art. 4º do Código: “O juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpável de justiça denegada.”28.

Ao juiz, portanto, competia realizar os atos de interpretação (no caso de obscuridade) ou integração (nos casos de insuficiência ou silêncio da lei). Essa separação entre interpretação e integração era um modo de controlar o problema da lacuna, colocando-a

26

Cf. EINAUDI apud CAPPELLETTI, O controle judicial de constitucionalidade..., 1984, p. 95, n. 74. 27

BUGNET apud GILISSEN, Introdução histórica ao Direito, 1986, p. 516. Com isso o Professor Bugnet mostra um desconhecimento mais radical, aliás estruturante do funcionamento do campo jurídico: ele desconhece o alerta freudiano de que ensinar, assim como analisar e governar, é impossível. A propósito, ver o que dissemos na introdução a respeito das profissões impossíveis, às quais Lacan acrescenta a do cientista e, esta tese, a do cientista do direito, do operador do direito, do jurista.

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como excepcional, ou seja, admitida apenas nos casos de insuficiência e silêncio da lei, em

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