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Em busca do interesse público perdido: As quatro dimensões de um instituto

3. Em busca do interesse público perdido

3.1 É possível domesticar o Cavalo de Troia?

Sem a pretensão de propor um tertium genus, é mais adequa- do “pensar a evolução histórica da disciplina como uma sucessão

de impulsos contraditórios”37: um encadeamento de idas e vindas,

progressos e retrocessos, muitas vezes involuntários e à revelia dos projetos teóricos, sejam eles autoritários ou garantistas. Algo de garantista a Revolução Francesa inaugurou. Mas talvez não tan- to quanto defendem os mais românticos.

na propriedade e na economia, as licitações. Não se pode dizer que seja indeterminado o interesse público presente na rescisão unilateral de um contrato administrativo que cause danos ao meio ambiente, ao consumidor ou ao patrimônio público; ou que seja indeterminado o interesse público inspirador de um tombamento ou de uma desapropriação; ou que seja indeterminado o interesse público a ser protegido em um procedimento de licitação. Em todos esses exemplos, é o princípio da supremacia do interesse público que está na base da atuação administrativa. Não o princípio aplicado livremente pela Administração, mas o princípio aplicado pela forma como está delimitado pelo ordenamento jurídico.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Org.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010. p. 98.

34 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Org.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito

administrativo. São Paulo: Atlas, 2010. p. 94-102.

35 GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do direito administrativo: uma crítica da crítica. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Org.). Supremacia do interesse

público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010. p. 28-60.

36 Além de atacar as críticas no mérito, os autores denunciam que objetivo por trás delas seria a prevalência de interesses econômicos neoliberais, teoria econômica essa que já estaria superada, além de serem ideias pretensamente originais.

37 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 18.

Provavelmente, a causa principal do desconforto dos autores mais modernos com os institutos tradicionais de direito público seja a sua especial capacidade de servir a regimes autoritários. De um modo geral, os institutos exorbitantes se acoplam muito efi- cientemente a regimes ditatoriais. Sob esse aspecto, condescen- der com a existência deles seria o mesmo que ter um Cavalo de Troia dentro do sistema democrático. Uma ameaça latente, que pode sair do seu estado de repouso em momentos de turbulência política e institucional. Essa constatação é ainda mais pertinente

no contexto brasileiro. Gustavo Binenbojm38 externa essa preocu-

pação nos seguintes termos:

É que, em grande medida, o uso arbitrário do dito princípio da supremacia do interesse público ocor- reu sob o manto dessa fluidez conceitual. Como o interesse público é um conceito vago, o Poder Pú- blico sempre desfrutou de ampla margem de liber- dade na sua concretização; a partir do momento em que concretizado, tal conteúdo passava a gozar de supremacia sobre os interesses particulares; assim, o voluntarismo dos governantes adquiria suprema- cia sobre os direitos individuais. Neste sentido, o exemplo histórico da justificação da malsinada dou- trina da segurança nacional a partir do princípio da supremacia do interesse público é eloquente e ir- respondível. Um princípio que tudo legitima não se presta a legitimar absolutamente nada.

Emblemático é o discurso proferido por Hely Lopes Meirelles39

na Escola Superior de Guerra, em 1972, em plena ditadura militar, mas apenas quarenta e seis anos atrás. Com o título “Poder de polícia e segurança nacional”, o administrativista sustentou em sua palestra que, em nome da segurança nacional (que é, inegavel- mente, um desdobramento do interesse público):

[...] é direito e dever do Estado, prevenir e reprimir toda conduta atentatória da segurança nacional, no

38 Idem, p. 104.

39 MEIRELLES, Hely Lopes. Poder de polícia e segurança nacional. Revista dos Tribunais, v. 61, n. 445, novembro de 1972, p. 296-297.

sentido global em que está conceituada. Além das atividades subversivas características pelo emprego da violência para a tomada do Poder, outras existem que podem influir na opinião pública e afetar a segu- rança nacional, tal como a divulgação de ideias e no- ticiários tendenciosos, por todos e quaisquer meios de comunicação falada, escrita ou expressa na ima- gem, pela imprensa, pelos filmes, pelo rádio ou pela televisão, as quais, por isso mesmo ficam sujeitas ao controle do Estado, através do poder de polícia. Essas limitações à imprensa são perfeitamente com- preensíveis e de adoção universal [...]. Não se nega – nem deve o Estado Democrático negar – liberdade à imprensa [...]. Mas essa liberdade não pode ser ili- mitada, porque descamba para a licença e a distor- ção. [...] para esses fins é que foi promulgada a nossa vigente Lei de Imprensa [...]. Mas não só nesse setor. [...]. Assim é no campo dos espetáculos públicos, [...] para impedir ou coibir a divulgação da ideia ou da imagem atentatória da moral ou incitadora da desor- dem que afeta a segurança nacional. Assim é nas re- uniões públicas em que o calor do debate pode gerar polêmica e esta degenerar em conflito social pertur- bador da ordem interna. Assim é nas greves nos ser- viços públicos e atividades essenciais à comunidade, em que a sua paralisação ou atraso no atendimento da população pode provocar danos irreparáveis e reação popular de conseqüências imprevisíveis. [...] Assim é, enfim, em todas as ações ou omissões indi- viduais ou coletivas.

Na parte inicial do seu texto, Hely recapitula noções essenciais da dogmática de direito administrativo, como o poder de polícia. Comparando essa exposição com a generalidade dos manuais de di- reito administrativo contemporâneos, pouca ou nenhuma variação

se percebe. Como pode o mesmo instituto servir a dois senhores40,

40 Trata-se de uma paráfrase do versículo bíblico de Mateus 6:24, segundo o qual “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. [...]”. O SANTO evangelho segundo S. Mateus. A bíblia sagrada: edição revista e corrigida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, cap. 6, v. 24.

a dois regimes constitucionais tão antagônicos? A preocupação dos críticos é procedente. Embora também seja forçoso reconhecer a pouca resistência que o direito pode oferecer à escalada autoritária. Por mais garantistas que sejam as instituições, de nada servirão se o próprio povo decidir solapá-las.

Ainda que o interesse público carregue em si um código ma- licioso, facilmente executável por usuários com inclinações auto- ritárias, ele não pode simplesmente ser abandonado. Isso porque são vários os diplomas normativos que lhe fazem menção. Um exemplo é a Lei de Processo Administrativo Federal, Lei Federal nº 9.784/1999, cujo art. 2º estabelece que a Administração deve obedecer ao princípio do interesse público. A própria Constituição lhe remete em diversas oportunidades, a exemplo do art. 3º, IV, que define como objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, e do art. 95, II, que garante aos juízes inamovibi- lidade, salvo por motivo de interesse público.

Se a própria ordem jurídica se refere ao interesse público como motivo para a prática de atos pelo Poder Público, é preciso concluir, por uma exigência de lógica, que existem interesses não públicos, que cederão lugar quando em confronto com os primei- ros. Talvez o equívoco da dogmática tradicional tenha sido rotular esses interesses não públicos de interesses privados, atribuindo a eles uma carga semântica de inferioridade, até egoísmo.

Por outro lado, se o interesse público equivaler ao resultado da ponderação in concreto, ele acabará se tornando um conceito vazio e inútil. Dizendo de outra forma: se o interesse público é o motivo ou a diretriz para a tomada de decisão pelo Poder Público, ele não pode ser, ao mesmo tempo, o produto final desse proces- so decisório. Por isso, é preciso reconhecer no interesse público algum conteúdo diretivo.

Ainda assim, permanece o problema da identificação dos in- teresses público e não público. Neste ponto, embora criticável sob alguns aspectos, é pertinente a abordagem que empreende Mar-

çal Justen Filho41. Enxergando alguma virtude no princípio, mas

41 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 150-164.

ao mesmo tempo reconhecendo a dificuldade de identificar o que venha a ser interesse público, o autor sugere que a primeira apro- ximação seja feita por exclusão, ou seja, pela identificação daquilo que ele não é. Nesse sentido, interesse público não se confundiria com os interesses do Estado, do aparato administrativo, do agen- te público, da sociedade, da totalidade dos sujeitos privados e da

maioria dos sujeitos privados42.

Não coincidiria com o interesse do Estado, pois este existe justa- mente para promover o interesse público. Logo, o interesse público é antecedente à própria criação do Estado. De maneira semelhante, também não coincidiria com o interesse da máquina estatal, já que este, no máximo, seria um interesse público secundário. Tampouco coincidiria com o interesse do agente público, pois isso representa- ria uma perniciosa manifestação de patrimonialismo.

Os critérios restantes demandam uma análise mais detida. Em última análise, o autor sustenta que o interesse público não se tra- duziria no interesse quer da sociedade, quer da totalidade dos in- divíduos ou da maioria da população (critérios aritméticos), pois isso constituiria autoritarismo e opressão sobre minorias. Seriam genuinamente públicos apenas os interesses indisponíveis, rela- cionados à promoção dos direitos fundamentais, notadamente a dignidade da pessoa humana.

Sem sombra de dúvida, trata-se de um esforço argumentativo louvável. Entretanto, a conclusão do raciocínio acaba não tendo muita aplicabilidade prática. Como visto, o autor defende que in- teresse público é aquele que promove direitos fundamentais, se- jam individuais ou coletivos, majoritários ou minoritários. Ora, se toda atuação estatal pode ser reconduzida, em tese, à satisfação de algum direito fundamental (ressalvada, obviamente, a prática de atos ilícitos pela Administração), e se são numerosíssimos os direitos fundamentais consagrados na Constituição, muitos deles contraditórios entre si, a solução fica sem utilidade prática. Por exemplo, até o chamado interesse público secundário contribui para a concretização de direitos fundamentais.

42 No mesmo sentido: MOURA, Emerson Affonso da Costa. Regime administrativo brasileiro

e constituição federal de 1988: aportes teóricos nas noções de interesse público,

Uma vez demonstrado que não é possível, simplesmente, abrir mão da noção de interesse público, e que, para não torná-la inútil, a identificação do que seja interesse público não pode ser resultado do processo de ponderação, é necessário formular um modelo teórico de interesse público que respeite a sua função diretiva, tenha utilidade, e seja compatível com a atual ordem constitucional.