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O precedente no common law

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (páginas 37-41)

II. A DOUTRINA DOS PRECEDENTES NO COMMON LAW

2.2. O precedente no common law

No Estado de Direito, os cidadãos devem ter razoável certeza a respeito das regras e padrões “segundo os quais sua conduta será julgada.”77 Nesse sentido, os precedentes buscam compatibilizar a criação do Direito pelos tribunais, com os valores de segurança jurídica, isonomia, eficiência e legitimidade.

Assim, se por razões de equidade e de integridade, casos semelhantes devem receber o mesmo tratamento, por motivos idênticos, e em respeito aos mesmos valores, situações diversas dever ser tratadas diferentemente.78

Salienta-se, então, que a obrigação de seguir as decisões anteriores garante a previsibilidade do Direito, sua estabilidade e continuidade, tendo em vista que a solução aplicada a uma causa determinará o desfecho das demandas assemelhadas. No mesmo sentido, preserva-se o tratamento isonômico entre os jurisdicionados, impondo-se aos magistrados que, ao apreciarem um litígio, reflitam não apenas quanto à resposta a ser dada à hipótese sob exame, mas,

76SOUZA, Marcelo Alves.Do precedente judicial à súmula vinculante, p. 44.

77MACCORMICK, Neil.Retórica e o estado de direito: uma teoria da argumentação jurídica, p. 22.

78 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes. O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo, p. 202.

igualmente, a todos os demais conflitos que se enquadrem em uma mesma categoria de similitude; exige, portanto, a busca de um fundamento jurídico objetivo, que seja dotado de pretensão de universalidade.79

Nesse sentido, o sistema de precedentes vinculantes faz com que as cortes ajam em duas dimensões: resolvem conflitos, e isso diz respeito ao passado, e têm o papel de fazer Direito, criando regras para o futuro.80

No entanto, o uso dos precedentes deve ser encarado “como algo que, ao mesmo tempo, orienta as pessoas e obriga os juízes, não imobiliza as relações sociais ou impede a jurisdição de produzir um direito consentâneo com a realidade e com os novos tempos”.81

Desse modo, é importante salientar que, frente à pretensão dos precedentes de se estabelecerem no tempo, estes não são perpétuos e imutáveis.

Aliás, sua possibilidade de alteração é algo essencial para a própria sobrevivência de sua doutrina. Mesmo quando se pretenda afastar a aplicação de determinado precedente, fica o julgador vinculado ao seu enfrentamento. Efetivamente, os precedentes também podem se tornar inadequados em virtude de alteração das condições culturais, políticas, sociais, econômicas ou tecnológicas do meio sobre o qual incidem, demandando, em razão disso, a modificação de sua norma. O Direito não constitui um corpo estático ou incomunicado com a realidade sobre a qual incide. Ao contrário, ele é produto de interações com ela. Por isso, se grandes mudanças fáticas e valorativas ocorrem, disso resultará a alteração dos padrões normativos.82

Outro ponto importante, sobre o respeito aos precedentes, faz referência a que sua aplicação pode inibir a criação judicial, na medida em que, estabelecida

79 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes. O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo,p. 69,70.

80WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil lawecommon law. In:Revista de Processo. Ano 34, n° 172, p. 130.

81MARINONI, Luiz Guilherme.Precedentes obrigatórios. 2 ed., p. 214.

82 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes. O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo,240,241.

uma determinada regra, ela tivesse de ser cegamente observada pelos tribunais inferiores. Nesse sentido, Frederick Schauer observa que a adoção do stare decisis pressupõe uma redução da sensibilidade dos magistrados para as particularidades dos casos. Por isso, ao mesmo tempo em que aplaca o risco de decisões contraditórias e erradas, atenua a perspectiva de se alcançarem soluções ótimas, do ponto de vista da justiça do caso concreto, limitando tanto o mau quanto o bom juiz.83

Nesse sentido, se evidencia que, apesar da vinculação obrigatória do precedente, o juiz futuro deve sempre justificar sua decisão no caso concreto, já que, o uso de precedentes não impede o dever argumentativo de bem fundamentar suas decisões,84 sobretudo no que se refere à apreciação fática e seu enquadramento na ratio decidendi, examinando se ela atende às necessidades concretas do direito material levado a sua tutela.

Nessa perspectiva, deve-se considerar que o precedente obrigatório é, antes de tudo, uma decisão judicial e, como tal, deve ser justificada. No caso do precedente, a regra de direito ali materializada deve ser universal, na medida em que os argumentos empregados em sua fundamentação possam ser repetidos em um caso em que estejam presentes as mesmas circunstâncias relevantes do caso precedente.

De acordo com o principio de objetividade, as cortes estão obrigadas a motivar suas decisões a partir de argumentos que sejam universais, ou seja, de argumentos passiveis de aplicação não apenas às partes do caso sob exame, mas a todos aqueles que se encontrem em situação idêntica e que poderão submeter e que poderão submeter seus conflitos ao Judiciário no futuro. O stare decisis representa uma concretização deste principio. Neste sistema, os tribunais estão cientes de que, se escolherem aplicar uma determinada solução para os litigantes de hoje

83SCHAUER, Frederick. Rules, the Rule of Law, and the Constitution. Constitutional Commentary, p.69.

84MARINONI, Luiz Guilherme.Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do processo, p. 109.

poderão ser obrigados a aplicar a mesma solução para todas as demandas idênticas que venham a surgir. Por isso, desencoraja os magistrados de decidir com base em argumentos que não desejem aplicar a todos aqueles que se encontrem em uma mesma situação.85

De outro lado, resulta imperioso perceber, também, que a doutrina da obediência aos precedentes em nada impossibilita a existência de leis escritas. Os precedentes podem e devem versar sobre a interpretação das leis e das questões de Direito, sejam elas escritas ou não.

Assim também, os precedentes podem possuir ou não efeitos vinculantes.

Se os possuírem, desempenharão a função de fonte formal do Direito. No entanto, ainda que não tenham tal efeito, servem para fornecer subsidio para a argumentação das partes, para a motivação das decisões judiciais, e possibilitam, ao longo do tempo, a consolidação do entendimento sobre determinada matéria.86

Depois do exposto, é interessante destacar que, apesar das diferenças e aproximações, já notadas, entre o common lawe ocivil law, atualmente não existe dúvida de que, no civil law, os juízes desempenham um novo papel a respeito da criação do Direito. Assim, os precedentes vinculantes mostram-se compatíveis tanto com os sistemas jurídicos do common law quanto do civil law. Aliás, muito mais do que um mero efeito das decisões, a vinculação das razões das decisões judiciais tornou-se instrumento imprescindível à defesa do Estado de Direito e da própria ordem constitucional que o constitui, em qualquer sistema jurídico.

85 “Under the participle of objectivity, courts are obliged to reason from propositions that are universal, that is, propositions the courts are ready to apply not merely to the parties to the immediate dispute, but to all similarly situated disputants who may come before them in the future.

Stare decisis gives effect to this concept too. Under stare decisis a court is on notice that if it chooses to apply a given proposition to resolve a dispute between these litigants today, it may be obliged to apply the same proposition to all similary situated disputants in the future. Thus stare decisis discouragens a court from deciding cases on the basis of propositions it would be unwilling to apply to all similarly situated disputants”. (EISENBERG, MELVIN Aron. The nature of the Common Law, p. 47-48).

86 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes. O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo, p. 66.

Efetivamente, um dos objetivos de um Estado Democrático de Direito é ser imprescindível a busca de segurança jurídica. Consequentemente, não existe problema em se procurar essa segurança jurídica no respeito aos precedentes já que, como foi dito, não existe incompatibilidade entre civil law e precedentes. A vinculação dos entendimentos emitidos pelas Cortes Supremas há muito tempo deixou de ser exclusividade dos países docommon law.

Desse modo, o respeito aos precedentes é uma prática aceita por quase todos os países,87 ainda que a França não reconheça expressamente esta realidade. Mais do que isso, os países de civil law foram capazes de adaptar a teoria dos precedentes para respeitar a sua própria tradição, que é a interpretação das leis. Em nenhum momento, porém, o ordenamento jurídico dessas nações foi prejudicado ou deixou de ser eficaz. No sistema peruano, arraigado nos dogmas do civil law, o respeito aos precedentes obrigatórios não foi uma questão tradicionalmente estudada. A concepção vem sendo paulatinamente alterada. O constitucionalismo, como apontado, é o principal fator de arranque dessa mudança.

Finamente, efetuada uma análise geral sobre o uso dos precedentes, merece importância fazer um estudo sobre a teoria do stare decisis assim como dos elementos que o compõem, tema que será tratado no item seguinte.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (páginas 37-41)