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É preciso (in)formar e solidarizar: o Boletim Sem Terra e as tensões da luta pela

Na história recente do Brasil, a década de 1980 foi significativa para delinear rumos políticos, econômicos, sociais e culturais do país. No seu transcorrer, a sociedade presenciou a denominada abertura política, o movimento Diretas Já, a posse do primeiro presidente civil após o Golpe Militar de 1964, a emergência de diversos e distintos movimentos sociais no campo e na cidade, greves de operários, criação de partidos políticos, disputas e tensões envoltas da Assembleia Constituinte, entre outros acontecimentos que se destacaram em âmbito nacional.

Dentre as novidades do período, os anos de 1980 registraram o nascimento e o desenvolvimento de um dos maiores e mais representativos movimentos sociais do campo da segunda metade do século XX – o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – conhecido nacionalmente pela sigla MST.Anteriormente à sua criação oficial, em janeiro de 1984, no Sul do Brasil, mais especificamente no estado do Rio Grande do Sul, em meio ao contexto das lutas pela terra, forjou-se um boletim chamado Boletim Informativo da

Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra, o Boletim Sem Terra. Em 1984, com a criação do MST, o boletim passou a ter o nome de Jornal dos Trabalhadores Sem

Terra, mais conhecido como Jornal Sem Terra.

Neste capítulo, o objetivo não é sistematizar a história do MST e a história do Boletim

Sem Terra / Jornal Sem Terra, mas elencar elementos de sua historicidade, relacionando-os à conjuntura do período em que nasceram, e destacar que suas histórias estiveram entrelaçadas. Isto é, ao longo do tempo o MST forjou o Jornal Sem Terra e este periódico se tornou, por sua vez, um importante instrumento político na organização do MST. Por meio de suas páginas, o Movimento registrou suas lutas, construiu representações sobre diversas questões políticas,dialogou com seus integrantes ecomsimpatizantes da luta pela terra.A preocupação

48 em recuperar aspectos da historicidade do Jornal Sem Terra está no fato de este impresso ser a fonte privilegiada da pesquisa. Entender sua produção e papel na organização do Movimento torna-se elementar para se compreenderem os discursos e as representações contidas em suas páginas. O Jornal Sem Terra é uma das fontes mais fecundas para a investigação e a reflexão sobre os meandros que envolvem a organização do MST e a luta pela terra no Brasil.

Como objeto de estudo, háescassez de trabalhos sobre o Boletim Sem Terra / Jornal

Sem Terra. No que diz respeito ao jornal como fonte, há diversos pesquisadores que se utilizam desse periódico, mas grande parte o utiliza de forma esporádica, não analisando sua continuidade ou descontinuidade, assim como as mudanças e permanências dos seus discursos. Dois autores que buscaram compreender a historicidade do Jornal Sem Terra e o papel fundamental desse periódico na organização do MST foram Fernando Perli e Antonio Alves Bezerra. As reflexões desses autores foram fundamentais, em especial, para a compreensão do jornal analisado.

Em sua dissertação de mestrado, Perli estudou o Jornal dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra, enfocando sua transição de boletim a tabloide84. O autor analisou a condição do

periódico que se marca pelo processo de ter sido um informativo da campanha de solidariedade aos movimentos regionais de luta pela terra nos estados do Sul do país até ter se tornado um periódico da organização do MST. O recorte temporal do trabalho compreende os anos de 1983 a 1987. No doutoramento, Perli investigou as estratégias de divulgação, as representações e a construção de uma política de comunicação do MST. Analisou não só a produção do Jornal Sem Terra, mas também a sistematização de outros meios de comunicação no Movimento (internos e externos) como os Cadernos de Formação, Cadernos

do Educando, Revista Sem Terra, página na internet, dentre outros85. O autor reflete sobre a

constituição dos meios de comunicação no interior do Movimento, sobre como ocorreu a participação de entidades solidárias na organização, na produção e manutenção destes meios de comunicação.

Antonio Alves Bezerra, em sua tese, estudou o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra no período de 1981 a 2001 e analisou a trajetória histórica e política do MST, assim

84 PERLI, Fernando. Sem Terra: de boletim a tabloide. Um estudo do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra. Entre a solidariedade e a representação (1983 – 1987). 2002. 200 f. Dissertação (Mestrado em História) –

Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2002.

85 PERLI, Fernando. A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação – estratégias, representações e política

de comunicação do MST (1981-2001). 2007. 333 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis.

49 como a de suas lideranças. Para tanto, os trabalhadores rurais sem-terra foram observados enquanto sujeitos históricos na luta pela terra, e não enquanto vítimas dos processos de exclusão aos quais foram submetidos historicamente. Nesse sentido, o autor reflete sobre as principais temáticas abordadas pelo jornal ao longo do período analisado por meio dos editoriais, artigos de opinião, entrevistas, notícias e imagens veiculadas no periódico86. Em

sua tese, Bezerra compreende o jornal não apenas como um objeto de comunicação no MST, mas sim como um instrumento de luta do Movimento para seu projeto de reforma agrária e justiça social para o campo e cidade.

O nascimento do Boletim Sem Terra ocorreu em maio de 1981 e sua produção, inicialmente87, esteve associada à luta do acampamento Encruzilhada Natalino, na região de

Sarandi, no estado do Rio Grande do Sul. No mês de dezembro de 1980, um grupo de famílias de trabalhadores rurais88, expropriadas de suas terras devido à “mecanização da agricultura,

ao consequente processo de concentração da propriedade e da política agrícola que se voltava para a agroindústria de exportação”89, acampou em Sarandi, com o intuito de chamar a

atenção da sociedade e pressionar o Estado para que fizesse desapropriação de alguma área de terra para assentá-las.

Sobre a história de luta e resistência deste Acampamento, Telmo Marcon explicita que, de um pequeno núcleo embrionário de sujeitos90 sem-terra, o Encruzilhada Natalino

contava, no final de julho de 1980, com mais de 600 famílias91. A organização e a resistência

do Acampamento representavam, no contexto e no bojo dos embates da luta pela terra, uma afronta ao Estado. É possível dizer que tal luta se configurava para além de um conflito local

86 BEZERRA, Antonio Alves. O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus Temas: 1981-2001. 2011.

312 f. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

87 Em seu início, o Boletim não tinha regularidade na sua produção. As edições eram publicadas de acordo com a

demanda e o acúmulo de materiais recebidos, conforme será tratado adiante.

88 Na tese, ao se fazer menção às ações dos sujeitos que lutaram pela terra, utiliza-se o termo trabalhadores

rurais, e não o termo camponês. Ao se optar por essa noção, não se nega a importância política que agrega o conceito camponês, sistematizado principalmente por José de Souza Martins em: Os camponeses e a política no

Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo histórico. 2ª ed. Petrópolis: Vozes. 1983. No MST, em vista da diversidade de sujeitos a compô-lo, a dimensão de trabalhadores rurais e camponeses é evocada simultaneamente. A partir da década de 1990, a própria organização do Movimento vem retomando a dimensão

política do termo camponês. Em contrapartida, no seu nome é evocado o termo trabalhadores rurais. Também, ao se utilizar o termo trabalhadores rurais, não se está dando ênfase apenas aos homens que lutaram e lutam no MST. Entende-se que as lutas e conquistas do e no Movimento vêm sendo edificadas pela heterogeneidade de sujeitos que o compõem – homens, mulheres, crianças, jovens, adultos.

89 IOKOI, Z. M. G., Os movimentos sociais e a luta pela terra, p. 247.

90 Quando se utiliza sujeito no trabalho, pensa-se, semelhantemente, às concepções de Eder Sader (1988, p. 51),

no sentido de se estar pesquisando um movimento social, que mantém a preocupação em construir uma identidade coletiva. Assim, os sujeitos seriam homens e mulheres que, de diversas e distintas formas, procuraram agir nos movimentos sociais no intuito de construírem sua própria história. Estes sujeitos são ativos e buscaram construir projetos coletivos de mudança social, partindo das suas próprias experiências de luta.

50 e viria contribuir com o anseio pela redemocratização do acesso à terra no país. No início da década de 1980, “diversos movimentos sociais revelaram, por meio de suas reivindicações, os limites e as contradições do modelo implantado no Brasil no período posterior ao golpe militar de 1964”92. Na compreensão de Debora Franco Lerrer, a ação das famílias acampadas

no Encruzilhada Natalino acabou “sendo considerada uma arena da luta contra a ditadura, tecendo um verdadeiro cordão de solidariedade em torno de si, que envolvia políticos da oposição, a Igreja e a sociedade em geral, conseguindo furar o bloqueio que a ditadura, já no seu ocaso, tentava lhe impor”93.

No que tange ao Acampamento, é interessante ressaltar que, de imediato, os sujeitos não tinham o objetivo de ocupar uma área de terra definida, sua intenção era chamar a atenção do governo do estado do Rio Grande do Sul para a necessidade de ele apresentar soluções para os problemas sociais. A formação do acampamento Encruzilhada Natalino também não foi resultado de combinações prévias entre os acampados. A sua organização desenvolveu-se, a princípio, pela ausência de condições materiais e pela falta de perspectivas de famílias de sem-terra e de minifundiários, ambas afetadas pela política que o Estado vinha desenvolvendo. Nesse sentido, a organização e a resistência do acampamento Encruzilhada Natalino marcaram a luta pela reforma agrária no país. Mais do que isso, demonstraram ao Estado e à sociedade em geral o poder de organização e maturidade política de sujeitos que, anteriormente, eram tidos como inertes por aqueles que dominavam e detinham o poder na região.

Conforme Marcon, o acampamento Encruzilhada Natalino se constituiu em um marco para a retomada da luta pela reforma agrária, pois recolocou em discussão a concentração fundiária no estado do Rio Grande do Sul, bem como as políticas implementadas pela

Ditadura Civil-Militar94 “no sentido de eliminarem os focos de tensão social no campo pela

transferência dos agricultores sem-terra ou dos pequenos proprietários para as regiões de fronteira agrária e agrícola”95.

92 MARCON, T., Acampamento Natalino: história de luta pela reforma agrária, p. 22.

93 LERRER, D. F., Trajetórias de Militantes Sulistas: nacionalização e modernidade do MST, p. 63.

94 A utilização do termo Ditadura Civil-Militar baseia-se nos estudos que analisam o Regime Militar a partir do

apoio e participação de setores influentes da sociedade brasileira, o que sugere a ampla participação de segmentos da população no golpe de Estado de 1964 e na trajetória da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido político criado em 1965 para apoiar os militares, que abrigou e articulou lideranças civis para dar sustentação ao regime político. Ver: DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe, Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1981; FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Arão (Orgs.). Revolução e Democracia (1964...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

51 Dom Tomás Balduíno, religioso e militante histórico na luta pela reforma agrária no Brasil, em um trecho de seu discurso proferido no Acampamento, em 25 de julho de 1981, elucida a importância da luta empreendida pelos sujeitos pertencentes ao Encruzilhada Natalino, não só para o estado do Rio Grande do Sul, mas também para todo o cenário nacional: “O que a mobilização do ABC representou em consciência no avanço na luta dos trabalhadores urbanos, esta manifestação de Encruzilhada Natalino representará de agora em diante para os trabalhadores rurais e sem-terra no Brasil”96. Com grande atuação nas causas

sociais, principalmente na luta pela terra junto à Comissão Pastoral da Terra (CPT), parecia que Dom Tomás Balduíno97 previa o significado daquela ação para fortalecer a luta pela

reforma agrária no território brasileiro.

Se, por um lado, os operários da região do ABC Paulista, no transcorrer das décadas de 1970 e 1980, tinham demonstrado a outros trabalhadores urbanos o poder da organização e resistência dos trabalhadores, dando um passo significativo com suas manifestações para a melhoria de salários e condições de trabalho; por outro, a luta pela terra e sua conquista pelos sujeitos do Encruzilhada Natalino ecoaram e trouxeram a milhares de trabalhadores rurais a esperança de que era possível, diante de muita luta e resistência, a conquista de um pedaço de chão para nele trabalhar e permanecer.

Naquele contexto, um dos principais responsáveis pelo nascimento do Boletim Sem

Terra foi Flademir Araújo, jornalista gaúcho, que, na época, trabalhava na Assembleia Legislativa do Estado. O envolvimento de Flademir com os trabalhadores rurais sem-terra coincide com a retomada da luta pela terra no estado do Rio Grande do Sul, no qual o acampamento Encruzilhada Natalino foi um marco. O jornalista esteve à frente da editoração do boletim e, posteriormente, à frente do Jornal Sem Terra durante seis anos. Ao ser entrevistado por Miguel Stedile enfatizou que “a idéia do jornal é diretamente ligada à Encruzilhada Natalino” e o objetivo central, num primeiro momento, era “solicitar o apoio das comunidades, das entidades, de outros setores ao acampamento”98. Em sua primeira edição,

na capa, é publicada a Carta dos Colonos Acampados em Ronda Alta, cujo intuito principal era chamar a atenção da sociedade e angariar apoio, de todo e qualquer tipo.

96 Trecho da fala de Dom Tomás Balduíno no acampamento Encruzilhada Natalino, em 25/07/1981. In: Tempo e

presença – Cedi; jul. 1981. p. 27.

97 Dom Tomás Balduíno faleceu no dia 02 de maio de 2014, no município de Goiânia/GO, em decorrência de

uma trombo embolia pulmonar.

98 ARAÚJO, Flademir. O Jornal se Transformou com o próprio MST. Entrevista concedida a Miguel Stedile.

Agosto de 2001. Disponível em: http://www.lainsignia.org/2001/agosto/cul_078.htm. Acesso em: 20/09/2011, às 22h14min.

52 Imagem 1 – Capa do Boletim Sem Terra. Porto Alegre, maio de 1981.

Editor responsável: Flademir Araújo

Percebe-se, pela capa da primeira edição, que o boletim era datilografado e mimeografado de forma artesanal. A primeira edição foi composta apenas por textos verbais escritos, sem qualquer tipo de imagens e de publicidade. Em destaque, a Carta dos Colonos

Acampados em Ronda Alta, que apresentava os acampados em Ronda Alta para o conjunto da sociedade, assim como o contexto difícil vivenciado pelas famílias, a posição do governo do

53 Rio Grande do Sul e do Estado brasileiro99 perante a situação e o pedido de apoio manifestado

em um momento textual no final da carta: “Solicitamos seu apoio, do jeito que der, para esta nossa luta. Ficamos muito contentes e agradecidos com esse seu apoio, pois queremos ficar aqui acampados até conseguirmos nossa terra para trabalhar”100.

Cabe registrar que foram impressos 700 boletins com o título Sem Terra; que, no primeiro ano, não havia um padrão de formatação definido; e que o número de páginas variava entre 8 e 16 folhas. A produção do boletim era realizada no município de Porto Alegre/RS e as entidades responsáveis por sua organização eram a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH/RS) e a Pastoral Universitária de Porto Alegre. O MJDH cedeu espaço em sua sede localizada na Rua dos Andradas, n. 1234, 22º andar, sala 2209, para que fossem confeccionados os exemplares do periódico. Em relação à procedência profissional das pessoas que colaboravam na editoração, a sua maioria era formada por estudantes de Jornalismo e/ou por profissionais que possuíam cursos superiores em áreas como História, Educação, Sociologia e Ciência Política.

O vínculo dessas pessoas com a luta pela reforma agrária foi criado nas Universidades em que estudaram, na participação em grupos e partidos de oposição à Ditadura Civil-Militar e na militância de sindicatos e de partidos políticos. A dedicação à produção do Boletim Sem

Terra nem sempre era integral, como é o caso de Flademir Araújo. Muitos jornalistas e demais colaboradores do boletim tinham experiência política em sindicatos e em entidades contrárias ao Regime Militar, com isso agregavam o trabalho de produção do periódico à causa dos sem-terra e a ações que questionavam o regime político que se vigorava.

O Boletim Sem Terra, assim como o MST, nasceu em um período ímpar da história recente do Brasil denominado transição democrática101. Os grupos políticos, as entidades e a

99 Em 1981, o governador do estado do Rio Grande do Sul era José Augusto Amaral de Sousa (Arena/PDS); e o

presidente do Brasil era João Baptista de Oliveira Figueiredo (Arena/PDS).

100Carta dos Colonos Acampados em Ronda Alta. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, maio de 1981, Ano I, nº 1. p. 1. 101 Há uma quantia significativa de autores que se dedicaram a entender o Regime Militar e o período de

transição democrática (1964-1985) no Brasil. Para uma visão mais aprofundada, ver: STEPAN, Alfred (Org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; VELASCO E CRUZ, S; SORJ, B. e ALMEIDA, M. H. T. (Orgs.). Sociedade e Política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983; DINIZ, E. A transição política no Brasil: uma reavaliação da dinâmica da abertura. Dados, n.3, 1985, p.329-46; KINZO, Maria D’Alva G. A Democratização Brasileira: um balanço sobre o processo político desde a transição. São Paulo em

Perspectiva. 15(4), 2001. p. 3-12; MOISÉS, José Álvaro; GUILHON ALBUQUERQUE, José Augusto (Orgs.).

Dilemas da Consolidação da Democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Arão (Orgs.). Revolução e Democracia (1964...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem Incompleta: a experiência brasileira. São Paulo: Editora SENAC, 2000; FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de A. Neves (Orgs.). O Brasil Republicano. O Tempo da Ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; REIS, Daniel

54 sociedade civil se organizavam em prol da redemocratização. Lutar pela reforma agrária no período também era lutar pela redemocratização do país. Nessa perspectiva, a luta dos trabalhadores rurais sem-terra ganhou visibilidade significativa e, de certa maneira, apoio da sociedade civil e de organizações políticas e religiosas102.

Pode-se dizer que o Boletim Sem Terra se transformou em um periódico de resistência da época, conjugando os interesses dos trabalhadores rurais sem-terra do acampamento Encruzilhada Natalino e a luta pela democracia. A princípio, o seu nascimento estava mais voltado ao objetivo de informar a população sobre o porquê as famílias estavam acampadas e ao de aglutinar apoio da sociedade e entidades civis, religiosas, sindicais e políticas aos trabalhadores, do que propriamente ser um instrumento na organização dos acampados. Esse apoio estava muito relacionado também a atender a necessidades materiais das famílias, por meio de arrecadação de alimentos, agasalhos, remédios, lonas para os barracos, dentre outras coisas.

Igor Felippe Santos, militante do MST desde o ano de 2004, coordenador do Setor de

Comunicação103, que atuava e acompanhava os veículos de comunicação do Movimento,

inclusive a editoração do Jornal Sem Terra, sublinha que o Boletim Sem Terra nasceu com três objetivos: propiciar a “equalização de informação das famílias que viviam no acampamento Encruzilhada Natalino”, comunicar-se com “os amigos e apoiadores” do acampamento e fazer o “diálogo com a sociedade” como um todo.

O Jornal Sem Terra nasce como um instrumento, em primeiro lugar pra contribuir na equalização de informação das famílias que estavam acampadas ali na Encruzilhada Natalino. O segundo objetivo do Jornal Sem

Terra era fazer essa comunicação com os amigos, apoiadores daquela

ocupação, daquele movimento, que também por que precisavam de

Arão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Orgs.). O Golpe a Ditadura Militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru/SP: EDUSC, 2004.

102 É significativo destacar também que, neste contexto, a luta pela terra se transformou em um dos maiores

focos de conflito e resistência no período. A partir dos conflitos e resistência dos trabalhadores rurais, o Estado criou o Estatuto do Trabalhador Rural em 1963 e o Estatuto da Terra no ano de 1964. Na visão de Leonilde Sérvolo de Medeiros, com a criação desses estatutos houve um reconhecimento legal de diferentes interesses no campo, o direito à representação política e a necessidade do Estado agir em momentos de tensão social. Criaram- se diversas organizações e entidades de representações tanto dos trabalhadores rurais como dos grandes proprietários de terras. “Estava em jogo não só uma adequação legal, mas, sobretudo, a produção de uma identificação, um conjunto de reivindicações e práticas políticas”. Salienta-se que, com essas ações do Estado, os