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2. ANÁLISE DO FILME O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?

2.1. Preparação

Enquanto o livro de Fernando Gabeira parece caminhar para uma tentativa de redenção do próprio narrador, que espreme a ferida dos anos de chumbo ao contar sua história assumindo seus erros e quebrando paradigmas, o filme de Bruno Barreto parece seguir para um outro rumo, para a perpetuação desses estigmas. Em O que é isso, companheiro? (1997), o espectador é apresentado a uma série de estereótipos que compõem o imaginário identitário nacional, especialmente sobre os tempos da ditadura militar.

O início do filme é um bom exemplo disso. A obra começa com um clipe de sequência de fotografias em branco e preto do clichê do Rio de Janeiro dos anos de 1960, precedidos pelo letreiro “Rio de Janeiro / Início dos anos 1960” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?, 1997): baía de Guanabara, calçadão de Copacabana, cenas alegres, personagens sorridentes, contexto de praia, mulheres bonitas, bondinho do centro, barraca de frutas, feira livre, Garrincha e o Maracanã, além de um close nos rostos de dois homens, um negro e um branco, apontando para a diversidade do povo carioca. Toda a sequência se dá ao som de Garota de Ipanema, de Tom Jobim, um dos maiores clássicos da música brasileira e símbolo de uma geração.

O uso destes relatos fotográficos também sugere um tom documental ao filme. São fotografias que, aparentemente, não foram produzidas exclusivamente para o filme, mas imagens que realmente foram fotografadas na época. Sendo assim, encaminham o espectador para uma expectativa de realidade, de vídeo-documentário. Este é, talvez, o primeiro elemento passado do livro para o filme: o assumir-se realidade. No livro de Gabeira (2009), o fato de se tratar de um jornalismo literário, faz com que o leitor espere verossimilhança no texto. Ao iniciar o filme com tal sequência, Barreto (1997) faz o mesmo com seu espectador, dizendo a ele que se trata de uma representação da realidade.

Essa sequência inicial é um mecanismo do audiovisual para trazer contextualização. Em um livro escrito ou em uma reportagem jornalística, a contextualização de um período pode se tornar muito longa, exigindo certa lógica narrativa. No produto audiovisual, não há a necessidade de narrativas mais longas, é possível construir esses contextos com textos descritivos, por exemplo, por meio de fotos que representem determinada época.

Corroborando com o aspecto documental que o início do filme sugere, a sequência de fotos é interrompida com um fade to black 12no momento em que a canção diz “Ah, por que tudo é tão triste?”. Ao tornar-se toda preta, surgem na tela as palavras: “Em 1964 o governo democrático é deposto por um golpe de estado militar” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?, 1997). Dessa maneira, o leitor é inserido em um contexto real, percebendo que se trata de um retrato de algo que de fato existiu. O fato de a frase aparecer sobre um fundo preto também é carregado de significados. Atado ao conteúdo da frase, a cor de fundo sugere escuridão, tempos sombrios, seriedade. Se fosse uma tela branca, certamente a mensagem seria diferente.

Ainda com a frase na tela, a música Garota de Ipanema dá lugar a um coro gritando palavras de ordem: “O povo, unido, jamais será vencido!” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?, 1997). Há também uma transição da frase inicial para a seguinte: “Em dezembro de 1968, a junta militar que governa o Brasil decreta o Ato Institucional nº 5 pondo fim à liberdade de imprensa e todos os direitos do cidadão” (1997). Então, iniciam-se cenas (não mais fotos) de uma manifestação popular, ainda em preto e branco. Há um salto temporal na narrativa, assim como no livro, quando o narrador transita entre os anos livremente.

A sequência inicial, composta por diversas imagens que simbolizam uma determinada época, acompanhada por uma das icônicas músicas nacionais e por símbolos da sociedade carioca e brasileira de meados do século XX, acaba por ratificar uma imagem identitária nacional:

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre "a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas (HALL, 1998, p. 51).

Hall comenta acerca da construção de identidades por meio de histórias que são contadas. Gabeira (2009) conta sua história em 1979, ano da publicação de sua primeira edição. Ainda inserido nos anos de chumbo, o autor desenvolvia aspectos representativos da identidade de sua geração. Ele não dispunha do benefício do distanciamento temporal. Ao contrário de

Barreto (1997), que arquiteta seu filme já com um olhar histórico para o que se passou, permitindo-lhe maior lace em suas observações.

Dá-se, portanto, que a sequência inicial de seu filme é, sem dúvida, parte de uma construção identitária brasileira. O que se há de criticar, ainda, é que ele irá usar tal construção para defender ideias controversas do que tenha sido a ditadura militar e os movimentos insurgentes de esquerda. É importante notar, outrossim, que as técnicas que serão mencionadas a respeito de movimentos de câmera, enquadramento, diálogos e descrições são de extrema relevância, pois formaram a linguagem audiovisual usada com esse propósito de construção simbólica.

Neste início de filme vê-se a transposição de elementos do livro. O começo do livro (GABEIRA, 2009) é rápido, agitado e tenso. Essa tensão é passada para o audiovisual com o auxílio do recurso verbal (letreiros em fundo preto) e com as cenas subsequentes de manifestações populares. Essas cenas rápidas de manifestações remontam à agitação da obra escrita por Gabeira (2009).

Em seguida, a câmera faz um tilt down13 de uma faixa de protestos para o personagem principal, em primeiro plano, de braços dados com companheiros de luta. Câmera, então, se aproxima e, da esquerda para a direita, passa a mostrar os rostos dos personagens em primeiro plano e com maior detalhe. Fernando Gabeira é o do meio. Tal maneira de construir a cena leva em consideração o aspecto estético, na medida em que os movimentos são agradáveis ao espectador, isto é, no âmbito sintático, a cena está coesa. No âmbito semântico, o movimento inicial de tilt, é uma estratégia de apresentação de personagens. Essa estratégia é muito comum no cinema, em documentários e, até mesmo, em vídeo-reportagens, uma vez que mostra o objeto aos poucos, induzindo o olhar do espectador para algo que ele está começando a conhecer. Contribuindo para essa apresentação do personagem, o movimento de aproximação dos rostos demonstra ao espectador que eles serão importantes para a narrativa. É quase um pedido do diretor: “preste atenção neles, porque serão importantes”. Ainda, o fato de Gabeira estar em posição central indica que ele é o principal da história, ele é o herói, aquele que conduzirá a narrativa.

13 Movimento de câmera na vertical, podendo ser de cima para baixo (down) ou de baixo para cima (up). Neste caso, o movimento se deu com a câmera fixa em um ponto, movendo-se apenas a “cabeça” da câmera.

A sequência seguinte apresenta o contexto particular desses personagens apresentados. Há uma transição para cena aérea, com imagens de helicóptero, mostrando a caminhada, aparentemente pacífica, dos manifestantes. Neste momento, surge o letreiro com o nome do filme: “O que é isso, companheiro?”

Ao sumir o letreiro, a cena se inicia com sons de sirene. Aparece um destacamento de militares marchando, armados, em direção aos manifestantes. Cena de corre-corre. Manifestantes fugindo dos militares, atirando pedras em viaturas. Militares batendo com cassetetes na população, jogando bombas de efeito moral.

Essa sequência após o nome do filme é muito agitada e carregada de tensão. Remete claramente ao início do livro de Gabeira (2009), que comtempla as mesmas características, usando de estratégias para o texto escrito. Foi desta maneira que Barreto (1997) concluiu sua primeira transposição livro-filme. É de se notar, portanto, como as produções de significado do início da obra escrita (GABEIRA, 2009) foram transpostas para o audiovisual, ainda que em parte.

O filme apresenta nesta sequência inicial citada o contexto temporal da narrativa. Situa o espectador no momento dos anos de 1960 no Brasil, com ênfase para lugar e tempo. A sequência seguinte, por sua vez, irá apresentar com um pouco mais de detalhes os seus personagens principais. A ênfase salta de lugar e tempo e vai para os personagens.

A cena que se segue acontece na casa de Fernando Gabeira. É uma cena no interior da casa, com os três personagens que apareceram de braços dados na manifestação, agora, assistindo à chegada do homem na lua, pela televisão. Aqui, Barreto (1997) irá usar de duas técnicas literárias conjugadas para começar a formar seus personagens: o diálogo e a descrição. Primeiramente, enquanto a cena alterna enquadramentos fechados dos rostos, com contra-planos da televisão, é possível observar elementos na casa que remetem a posicionamentos políticos de Fernando e seus companheiros. É possível observar, acima do sofá onde estão sentados, um quadro com o rosto de Ernesto Che Guevara pendurado na parede. Guevara é um símbolo dos movimentos esquerdistas na América Latina e, um quadro com seu rosto em lugar de destaque da casa já inicia a construção ideológica de seu morador.

Ao mesmo tempo, a conversa entre os três também é entretecida de jargões e revela muito sobre eles. Enquanto assistem à cena de Neil Armstrong pisando pela primeira vez na

lua, Fernando e César menosprezam o feito, enquanto Artur defende os norte-americanos. Essa conversa deles se torna expressiva tendo em vista que o período em que se passa a história também é marcado pela chamada Guerra Fria. O mundo estava dividido entre capitalistas e comunistas e as dissenções políticas brasileiras também se enveredavam com este cenário ao fundo. Assim, Fernando e César vão se mostrando esquerdistas, defensores dos ideais comunistas. Daí a razão pela qual menosprezavam o feito norte-americano. Fernando chega a ironizar os Estados Unidos, dizendo que ficou realmente feliz quando Gagarin14 chegou ao espaço, e ainda mais feliz quando enviaram a cachorrinha Laika. Dessa maneira, o posicionamento político alinhado ao pensamento da União Soviética e, por conseguinte, contrário à ditadura que se instaurou no Brasil fica evidente nos três amigos.

Essa sequência na casa de Fernando irá aparecer para o espectador alternada com cenas de uma festa. A câmera caminha mostrando (descrevendo) um ambiente luxuoso, de gala. Ouvem-se conversas em inglês. Americanos também assistem ao pouso do homem na lua, satisfeitos: “Custou apenas 180 milhões de dólares” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997), chega a comentar um deles, dizendo que é o melhor programa de televisão que já assistiu e argumentando que se tratava de um ato político (em referência à Guerra Fria). Então, Charles Elbrick aparece sentado em um sofá, ao lado da esposa. Ele está mais sereno que os outros e nega a afirmação do colega, chamando-o de cínico. “Está errado, John. É uma grande vitória para o mundo todo”, afirma o embaixador. Este quadro demonstra um Elbrick estereotipado, bom moço, alheio aos jogos de interesse políticos.

As cenas seguem alternando. De volta à casa de Fernando, a discussão continua a mesma. Agora é possível observar na parede da sala um cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, um dos maiores cineastas brasileiros. Glauber encabeçou o movimento conhecido como Cinema Novo, que surgiu do descontentamento de jovens artistas brasileiros em relação às produções cinematográficas norte-americanas.

O diálogo que se segue é, contudo, menos realista. As falas dos personagens são muito mecanizadas e não convencem o público. Em determinado momento, Fernando diz, ainda a respeito do astronauta: “Pelo menos ele teve a grande aventura da vida dele. Não é para isso que estamos no mundo? Bom, vamos deixar a lua e vamos voltar para terra”. (O QUE É ISSO,

COMPANHEIRO? 1997). Esse tipo de frase não ajuda a evidenciar o realismo proposto pelo diretor.

Embora não seja um diálogo realista, o assunto discutido pelos amigos auxilia no entendimento de como a esquerda da época interpretava os acontecimentos recentes. Fernando segue seu discurso lembrando que já estão há 6 meses vivendo sob a opressão do AI-5 (Ato Institucional número 5), com a extrema direita no poder, e é justamente esse contexto que é trazido como justificativa do personagem para sua entrada na luta armada. Ele e César demonstram interesse pelo movimento de resistência armada que se articula no Brasil, enquanto Artur, que se mostrará um excelente antagonista no filme, se posiciona de maneira contrária.

Artur é um personagem que não aparece no livro de Gabeira (2009). Sua participação no filme é muito interessante, porque assume um papel de questionador das decisões de Fernando (personagem), como uma ideia de duplo ou de sua consciência.

A cena que se segue é uma demonstração disso. É noite e Fernando e Artur estão caminhando por uma calçada enquanto discutem se a decisão de entrar para a luta armada é razoável ou não. Este diálogo é marcado por jargões da esquerda da época: “isso é um pensamento pequeno-burguês. [...] A realidade está madura para a revolução” (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997). Artur, nesta cena, aparece novamente como um outro eu de Fernando. Ele faz questionamentos que colocam o personagem principal diante de duas opções: reiterar suas convicções e acatar com a jornada que lhe espera ou desistir dos próprios ideais e aceitar o contexto social e político em que vive. Essa confrontação, no livro, se dá entre o narrador e si mesmo. Uma das melhores maneiras de transpor consciência de personagens para o audiovisual é criando outro personagem, como no caso de Artur. Outros filmes farão isso com conversas em frente ao espelho e monólogos audíveis. No caso de O que é isso, companheiro? (1997), a criação de um novo personagem serve muito bem a esse propósito.

Fernando mostra-se convicto de que a luta armada é a única solução para destituir o governo militar. Na manhã seguinte, chega um homem à casa de Fernando. Ele aparece contra a luz, em frente à janela, com o rosto todo enegrecido, impossível de identificar. Um personagem que é apresentado sem rosto, sem identidade pessoal. Ele é o homem que levará Gabeira para conhecer um grupo de luta armada. Mais a frente, o espectador saberá que esse

personagem é Marcão, codinome utilizado por Franklin Martins15, embora o filme não transmita essa informação.

Marcão surge na narrativa sem rosto próprio, representando a obscuridade da luta armada brasileira. Esta ausência de identidade também pode ter sido utilizada com a finalidade de representa-lo como um cidadão qualquer, sem nada de especial. Desta forma, não é o indivíduo que se levanta contra a ditadura, mas a sociedade. Esta não tem rosto, não tem face. É todos e não é ninguém.

No documento Uma análise de O que é isso, companheiro? (páginas 52-58)

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