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Primeiros Desenvolvimentos na Investigação em Criatividade

PARTE I O PENSAMENTO CRIATIVO

1.2 Primeiros Desenvolvimentos na Investigação em Criatividade

Durante muito tempo a criatividade permaneceu exterior às fronteiras da ciência; banida não apenas por cépticos que pretendiam manter a ideia do “génio inato”, mas também por cientistas, cuja justificação eram dificuldades alegadamente inultrapassáveis. Apesar do fenómeno da criatividade ser tão antigo como a própria humanidade, só no século XX começa a ser estudado pela ciência. Antes disso, a criatividade era considerada uma dádiva de Deus ou a força inata de um génio [cf. STERNBERG & LUBART 2004: 5]. Da Antiguidade até ao Classicismo, o ser criativo era admirado como criatura perfeita e génio divino, como está patente, por exemplo, no título de um livro de Wittkower e Wittkower (1985): Nascidos bajo el signo de Saturno. Na sua obra, os autores explicam a crença de então na criatividade inata de alguns “eleitos”: artistas com um temperamento demoníaco ou perturbações psíquicas [ROMO 1996: 3]. A criatividade era vista como um segredo eterno. Era pessoal e inacessível.

Em finais do século XIX, a criatividade viu finalmente ser-lhe atribuído um significado de ordem prática. Para além dos artistas, também os cientistas passaram a ser admirados como génios. Um dos mais conhecidos estudos desta época é o de Galton(1869), que no entanto não analisava os processos mentais do génio, antes procurava entender qual era a quota-parte hereditária dos pensadores geniais. Apesar de a sua obra se ter

tornado um clássico, os resultados das suas investigações foram fortemente

contestados [ver WIRZ 1970]. E em vez de se entender melhor os processos criativos, reforçou-se o mito do génio criativo, cuja capacidade de criação continuou a ser considerada inata, misteriosa e incontrolável, tal como se manifestava nos grandes cientistas criativos como Darwin, Newton ou Einstein.

Na obra frequentemente citada Génio e Follia (1864), do psiquiatra e médico forense de Génova Cesare Lombroso, as marcadas anomalias dos génios eram até consideradas como a única fonte dos seus rasgos criativos [in WIRZ op. cit.: 18 e GUNTERN 1991: 27]. E assim, numa interpretação negativa, a criatividade enquanto desvio das normas estatísticas era comparada por Lombrosoe outros psiquiatras do seu tempo à loucura ou a um processo degenerativo do cérebro. Lombroso considerava a inspiração criativa “o equivalente de um ataque epiléptico focalizado, durante o qual numa região circunscrita do cérebro há uma descarga bio-eléctrica sincrónica de todas as células nervosas” [in id. ibid.]. Também Lange-Eichbaum, que em 1928 publicou a obra em vários volumes

Genie, Irrsinn und Ruhm24, chegou à conclusão de que génio e demência não podem ser

dissociados na maioria dos casos, apesar de não estar de acordo que apenas as pessoas mentalmente perturbadas fossem capazes de grandes prestações criativas.

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Na Alemanha, esta grande obra da sua vida entrou para a literatura como “o maior resumo do problema do génio” [WIRZ 1970: 18].

Só em meados do século XX o conceito de criatividade foi demarcado do conceito de génio. As dificuldades experimentadas para definir criatividade também têm a ver com a diferenciação entre criatividade como “característica única” ou como “característica que todas as pessoas em princípio possuem”. Para ir ao encontro deste problema, Silvano ARIETI [1993], por exemplo, distingue entre “criatividade ordinária” e “grande

criatividade”. Sob “criatividade ordinária” o autor entende a capacidade de um indivíduo normal, quando se demarca um pouco do habitual, quando quer provocar mudanças e melhorar aquilo que já existe [ibid.: 18]. Por oposição, a “grande criatividade” seria para o autor a de um Shakespeare ou de um Newton. Outros autores distinguem entre “criatividade primária” e “secundária” [Maslow in DE LA TORRE 1996: 44], entre a “pessoa criadora” e a “pessoa criativa” [DE LA TORRE loc. cit.] ou entre as “pessoas brilhantes” (que expressam ideias inabituais, são interessantes e estimulantes, mas não produzem nada de valor perdurável), “pessoas pessoalmente criativas” (que vivem o mundo de modo incomum e original) e “pessoas criativas” (que modificaram a nossa cultura numa área fundamental) [CSIKSZENTMIHALYI 2003: 44].

É sob a influência da teoria de sistemas, que conduz a uma abordagem sócio-cognitiva, que tais diferenciações vão desaparecer, na medida em que agora a criatividade é entendida como a capacidade de um sistema vivo (indivíduo ou grupo de indivíduos), nomeadamente em função dos elementos que o compõem, da interacção desses elementos e da interacção do sistema com outros sistemas da sua área. (Ver também o capítulo 3.1 deste trabalho.)

A verdadeira investigação da criatividade, cientificamente fundamentada, teve início nos anos 1950 nos Estados Unidos, impulsionada por eventos políticos e tecnológicos. Em pleno período da Guerra Fria foram os russos, e não os americanos, quem a 4 de

Outubro de 1957 lançou para o espaço o Sputnik, o primeiro satélite artificial. Depois de passado o primeiro choque, os americanos, que se viam ameaçados na sua supremacia, deram início a um gigantesco programa de armamento tecnológico que acabaria por levar ao desembarque na Lua em 1969. Por motivos meramente pragmáticos, investiram também grandes somas de dinheiro na investigação da criatividade, pois pretendiam estar na posse de um teste psicológico de criatividade que permitisse o reconhecimento e incentivo de indivíduos criativos [cf. GUNTERN 1991: 29 s e GUILFORD 1994: 13 ss]. Assim, a questão da essência da criatividade surgiu no âmbito da investigação da inteligência e aqueles que tinham participado no desenvolvimento do teste de

inteligência procuravam a partir de agora conhecimento pormenorizado sobre os rasgos de personalidade da pessoa criativa. Joy Paul GUILFORD designa os anos 1950 nos EUA como “una verdadera batalla de intelectos” [in ibid.]. No texto sobre a evolução da investigação da criatividade até aos anos 1970 “La Creatividad: pasado, presente y futuro” [1971/1994], GUILFORD distingue entre as tendências anteriores a 1950 e as que vieram posteriormente. O autor critica aí os psicólogos da primeira época que estavam já demasiado ocupados tentando decifrar processos mentais elementares, como os do

sentimento, da percepção e da memória, pelo que raramente dedicavam um parágrafo das suas obras ao tema da criatividade e, quando isso acontecia, faziam-no dando asas à imaginação [id. ibid.: 10]. Além do mais, no âmbito do conceito então reinante do “conducionismo” não havia nem necessidade nem lugar para investigações sobre o pensamento criativo.

Decisiva para a investigação da criatividade foi a conferência “Creativity”, que

GUILFORD proferiu em 1950 na American Psychological Association. Os resultados das suas investigações e das de outros que se lhe seguiram (como MacKinnon, Stein, Torrance, Gardner, Sternberg, etc.) contribuíram para acabar definitivamente com o conceito mítico de criatividade. GUILFORD desenvolveu uma teoria da criatividade em que descrevia competências e atitudes que detinham um importante papel no

pensamento criativo. Criatividade é finalmente reconhecida como uma capacidade mental de todos, que pode ser desenvolvida e aperfeiçoada até um determinado nível. A condição decisiva para isso foi o facto de ter sido ultrapassada a limitação imposta pelo “behaviorismo” àquilo que era observado, às relações estímulo–reacção e ao condicionamento. Foi também reconhecido que o pensamento criativo é demasiado complexo para ser entendido através das sistematizações técnicas de um teste, como por exemplo os testes de escolha múltipla. Depois de ultrapassadas essas barreiras científico-teóricas, novos métodos empíricos puderam finalmente ser desenvolvidos. A abordagem conceptual da primeira fase da investigação da criatividade cientificamente fundamentada veio da psicologia e da psicanálise freudiana dos anos 1920 e o seu interesse primário foram as características de personalidade típicas do indivíduo criativo. Um dos estudos mais conhecidos é o de MacKinnon [comentado, entre outras obras, in GUILFORD op. cit.: 14 s e in PUENTE FERRERAS 1999: 24 s], que analisava os traços de carácter e as forças motrizes da motivação de escritores, arquitectos e matemáticos reconhecidos. MacKinnon e os seus colegas de investigação examinaram sobretudo a relação entre o quociente de inteligência (Q.I.) e as prestações criativas, aspecto que será também analisado no capítulo 2.2 deste trabalho.

E. P. TORRANCE [1962/1969] foi o primeiro investigador que analisou o pensamento criativo de uma perspectiva pedagógica, ou seja, em que medida é que o potencial criativo se altera com a idade e o desenvolvimento da criança, sob a influência do meio social de aprendizagem envolvente. Baseando-se em resultados empíricos, TORRANCE e os seus colegas procuraram identificar as circunstâncias situacionais que permitiam melhorar os resultados criativos dos alunos. Tomando como base os estudos de TORRANCE, Saturnino DE LA TORRE [1991, 1996, 1997] e David DE PRADO [1996, 2001] desenvolveram modelos para a formação de professores com vista ao incentivo da criatividade durante a escolaridade, em que a elaboração do programa curricular escolar e a delineação de métodos de medição, para DE LA TORRE, e o

desenvolvimento de novos métodos de ensino e de técnicas de criatividade, para DE PRADO, se encontram em primeiro plano25.

No início dos anos 1960, Rhodes propôs que se investigasse o fenómeno da criatividade com base em quatro dimensões: a pessoa criativa, o processo de criação, o produto resultante e o meio envolvente em que alguém é criativamente activo [ISAAKSEN, PUCCIO & TREFFINGER 1993: 149]. Esta subdivisão em quatro “pês” (Person, Process,

Product, Press) foi reformulada no final dos anos 1960 por Morris STEIN [1974] e ainda

hoje é reconhecida e aplicada universalmente na investigação da criatividade [por exemplo, in HIGGINS & WIESE 1996; STERNBERG & LUBART 1997;

CSIKSZENTIMIHALYI 2003].

Determinante para a orientação da investigação da criatividade, sobretudo dos anos 1970, foi a obra Applied Imagination, já publicada desde 1953, cujo autor, Alex F. OSBORN, descreveu o pensamento criativo como um pensamento que resolve problemas, tendo introduzido técnicas e princípios com a ajuda dos quais o processo criativo de resolução de problemas pode ser melhorado. Em 1954 OSBORN fundou a

Creative Education Foundation, que ainda hoje existe, e em 1955, em conjunto com

Sidney J. PARNES, fundou o Creative Problem Solving Institute (CPSI) em Buffalo. Este último continua a ser, actualmente, uma instituição dominante na área do fomento da criatividade: todos os anos se encontram em Buffalo investigadores da criatividade e estudantes de todo o mundo para um “curso de treino da criatividade”. PARNES, que trabalhou de perto com OSBORN e que dirigiu de 1967 até 1984 a fundação Creative

Education Foundation, desenvolveu no seu livro Creative Behavior Guidebook princípios

do pensamento criativo, em que são tidos em conta diversos estilos de pensamento e diferentes personalidades. O significado dos estilos cognitivos no processo criativo foi mais tarde aprofundado pelos seus colegas ISAAKSEN e LAUER [2003] e por

STERNBERG e LUBART [1997] (cf. capítulo 2.6).

Como demonstraremos ainda na Parte II, diversos colaboradores do CPSI e outros investigadores da criatividade desenvolveram, sobretudo nos anos 1970, vários métodos e técnicas que se tornaram conhecidos sob a designação “técnicas de criatividade” e que continuam a ser trabalhados até hoje. Anualmente chegam ao mercado numerosas publicações sobre este tema, sobretudo nas áreas das ciências da economia e da gestão26, e nos últimos anos também, de modo crescente, na área do design27.

25 De 1998 a 2002, DE PRADO dirigiu o “MICAT – Master Internacional de Creatividad Aplicada Total” no departamento “Métodos e técnicas de investigação em ciências do comportamento e da aprendizagem” da Universidade de Santiago de Compostela, onde também DE LA TORRE leccionou numerosos cursos.

26 Exemplos disso são obras como as de DE BONO publicadas em 1982, 1985, 1992, 1996; DE

BRABANDERE 1998; GELB 1999; GUNTERN 1991, 1992, 1994; HIGGINS & WIESE 1996; LUTHER & GRÜNDONNER 1998; MICHALKO 2000, para nomear apenas alguns de uma lista aparentemente interminável.

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São disso exemplo obras como as de ADAMS 1979/1986; ROUKES 1988; BAXTER 2000; KELLEY & LITTMAN 2001; MYERSON 2001 ou PRICKEN 2002, 2003.

STERNBERG avalia esta abordagem da criatividade – de onde resultaram os métodos heurísticos, e que hoje, devido ao seu êxito comercial, é sobretudo representada por Edward DE BONO – como demasiado pragmática e, cientificamente falando,

insuficientemente fundamentada [2000: 5]. No que diz respeito a DE BONO, esta crítica não parece totalmente justa, uma vez que o seu conceito de “pensamento lateral” e as “técnicas de criatividade” a ele associadas – em comparação com muitos outros “consultores de criatividade” que se orientam pela prática – são fundamentados e exemplificados de modo muito profissional (teremos ainda a oportunidade de voltar a falar de DE BONO neste trabalho, assim como do seu conceito e obras).

Resumindo, podemos afirmar neste ponto que, desde os anos 1950, a criatividade é reconhecida como uma capacidade que todos os seres humanos possuem e que, mediante a utilização de determinados processos mentais, pode ser aplicada na resolução de problemas em todas as áreas profissionais.

Hoje em dia há um reconhecimento generalizado de que o segredo do génio não reside em forças misteriosas, mas antes na interacção de variados aspectos (que abordaremos ainda no decurso da Parte I deste trabalho) e, da perspectiva do indivíduo, em

determinados processos mentais e na intensa dedicação a um trabalho que simultaneamente motiva o indivíduo criativo e o satisfaz.

Constatamos assim, no que diz respeito à investigação da criatividade, que durante o último século, se evoluiu lentamente do paradigma28 do “génio com dotes sobrenaturais” para o paradigma da “pessoa criativa inovadora” que através de processos de

pensamento metódicos e em interacção com outros sistemas é capaz de criar algo de novo e original. A criatividade é actualmente uma variante democrática da genialidade.

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