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Princípios físicos da câmara escura e quando eles deixam de “funcionar”

1. INTRODUÇÃO

2.8 Princípios físicos da câmara escura e quando eles deixam de “funcionar”

Segundo o princípio fundamental da assim chamada óptica geométrica, os raios de luz se propagam em linha reta. Há vários exemplos que sugerem esse princípio, como a observação do caminho percorrido pela luz que sai de um projetor de filmes ou através da câmara escura. No caso da câmara escura, por exemplo, alguns dos raios de luz que são emitidos pelo objeto a ser projetado, passam através de um pequeno orifício e atingem o aparato no interior dela (Figuras 6 e 7). Assim sendo, a luz que sai do ponto mais alto do objeto atingirá o aparato no ponto mais baixo da imagem projetada, formando uma imagem invertida.

Figura 6- O traçado de raios numa câmara escura. Fixe a atenção em dois pontos do objeto (a vela, fora da caixa), e imagine que deles emanam muitos raios de luz. Note que apenas um dos raios que emanam de um desses pontos, a ponta da chama, passa pelo orifício. O mesmo vale para os raios que emanam de um ponto da base da vela; apenas um deles passa pelo orifício. Assim, percebe-se porque a imagem criada (no fundo da caixa) é nítida, maior e

invertida.

.

Figura 7- É idêntica à figura anterior, exceto pelo fato de o objeto dessa vez, estar mais longe. Note que a imagem no fundo da caixa dessa vez é menor

Ao longo dessa dissertação, perceber-se-á que essa premissa (a luz se propaga em linha reta) funciona bem, “até demais”. Como foi argumentado mais acima, na secção 3.3.3, isso poderia levar a um obstáculo verbal: tudo o que for relacionado com a luz será associado à ideia de linha reta. Quer dizer, poderia parecer que a imagem se forma na câmara escura “porque a luz se propaga em linha reta”. Há aqui a possibilidade de um obstáculo verbal, dado

que uma formulação mais aceitável seria a de que “a formação da imagem numa câmara escura pode ser interpretada a partir da ideia de propagação retilínea da luz”. O leitor notará que na primeira formulação, há uma relação de causa e efeito (porque), enquanto que na segunda, o que há são possibilidades.

Câmaras escuras podem aparecer na natureza, e nesse caso, a fonte de luz mais comum é o próprio sol. Um orifício num telhado de zinco produzirá, sob a luz do Sol, um disco de luz no solo, e esse disco terá a forma circular. Um aspecto que passa despercebido é o de que esse disco é uma imagem do Sol, o qual tem também, no céu, o aspecto de disco.

Mas o senso comum atribui a essa forma circular uma mera projeção do orifício, que é ele também (em geral) circular. Mas o Sol, em raras ocasiões, não apresenta essa forma circular; estamos falando de eclipses. Em 26 de fevereiro de 2017 ocorreu um desses eclipses, (figura 8) foi obtida nesse dia. Como parte do disco solar foi obstruída pela Lua (a Lua, nessas ocasiões, está interposta entre o Sol e a Terra) o Sol não aparece mais como um disco, mas sim como um disco do qual foi “extraída” uma parte, também circular, mas de diâmetro um pouco menor. A foto a seguir apresenta vários desses discos porque a lâmina de alumínio, usada para obstruir a luz do Sol, possuía vários orifícios, e cada um deles foi responsável por cada uma das imagens.

Se essa dissertação fosse concluída por aqui, com a luz sendo tratada como possuidora da propriedade de se propagar em linha reta, seu valor maior seria perdido. Por isso, a continuação natural (na perspectiva bachelardiana, apresentada na sessão 3.3.3) das atividades da câmara escura, seriam atividades nas quais tudo o que foi visto...não funciona! Ensinar não é propiciar aos alunos uma coleção de experimentos que “funcionam”. Essa coleção de experimentos deve ser associada ao contexto no qual ela funciona. Dito de outra forma, o conhecimento humano não deve ser apresentado de forma excessivamente prescritiva; esse risco é minimizado no decorrer da dissertação no momento em que são propostas atividades exploratórias, investigativas, como é o caso. Para esclarecer melhor esse ponto, continuar-se-á um pouco mais e apresentar-se-á ao leitor alguns conceitos, ligados à luz com onda. Esses conceitos parecem contrapor-se ao que foi apresentado até aqui, incluindo a imagem abaixo.

Mas, é importante que os alunos percebam isso, ambos os conceitos são úteis, e são empregados até hoje pelos cientistas e professores. Mas, hora um conceito é mais “prático” (a luz em linha reta na câmara escura) ora o outro (a luz como onda para explicar as cores de um CD).

Considere-se então a manipulação dos experimentos de interferência e difração da luz. Percebe-se imediatamente que o comportamento retilíneo não permite previsões aceitáveis. Já o comportamento ondulatório, como será apresentado abaixo, permitem previsões, testáveis no ambiente escolar, muito mais empolgantes.

O experimento de interferência com a luz, feito pela primeira vez por Thomas Young, em 1801, foi determinante para estabelecer-se a natureza ondulatória da luz – somente ondas podem interferir ou difratar. Nesse experimento, uma onda plana incide sobre obstáculo, munido de duas fendas estreitas, e difrata-se em cada fenda, divergindo radialmente (Figura 8). As ondas provenientes de cada fenda superpõem-se e interferem construtiva e destrutivamente, em certo ponto, dependendo da diferença de fase entre elas. Devido a este efeito, observam-se,

Figura 8- Imagem do Sol, formadas sobre uma folha de papel colocada no solo, a partir de orifícios em uma lâmina de metal, no eclipse ocorrido em 26 de fevereiro de 2017. A

formação das imagens se dá a partir dos princípios da óptica geométrica descritos anteriormente.

em um anteparo colocado na frente das fendas, regiões em que a intensidade da luz é máxima, alternadas com outras em que a intensidade é mínima.

Figura 9- Experiência de fenda dupla de Young. À esquerda, ondas de maior comprimento de onda incidem na fenda dupla; à direita ondas de menor comprimento incidem

na mesma fenda. Note as regiões de interferência construtiva, algumas delas marcada com pequenos círculos.

A difração da luz consiste em contornar obstáculos colocados em sua trajetória. No experimento de Young, ele usou um obstáculo, O1, contendo uma minúscula fenda; e na sequência, outro obstáculo, O2, com duas minúsculas fendas. Usando um feixe de luz monocromática, ele a fez passar pela primeira fenda. Após os obstáculos, Young colocou um anteparo para projetar a luz (Figura 9). Para a surpresa de Young, apareceram franjas claras e escuras. Com isso ele pôde concluir que, se houve a formação de franjas, a luz sofreu difração ao passar pelas minúsculas fendas. Portanto, nesse contexto, a luz tem um comportamento ondulatório.

Então, um aspecto importante no desenho do produto que surgirá dessa dissertação é justamente o de, além de explicitar o significado de certas palavras ou expressões (“a luz é um raio”) esclarecer que esse significado se dá dentro de um contexto, e perde sentido se o contexto for modificado. Por isso, a atividade com a câmara escura (na qual a luz é percebida como se propagando em forma de raio) “termina” com a exploração de um fenômeno de difração da luz, justamente um fenômeno no qual a ideia de luz como raio “deixa de funcionar”. Entender o significado de uma palavra ou expressão equivale então a compreender seus limites, a identificar suas fronteiras. Têm-se aí um caminho aberto para a superação de alguns dos obstáculos verbais que surgem ao estudar óptica (Figura 10).

Figura 10- Quando a perspectiva corpuscular deixa de “funcionar”. Na imagem à esquerda, um CD gravável tem sua etiqueta retirada por meio de fita adesiva. Na figura da direita, uma lâmpada fluorescente é fotografada; em frente à lente dessa câmara (pode ser a de um telefone celular) é colocado o CD, praticamente transparente, sem a etiqueta.