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4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A MANIFESTAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL

4.2 Prisão civil versus Prisão penal

A prisão civil é de fato diversa da prisão penal, como bem explicitou o excelentíssimo ministro do Supremo Tribunal Federal. A prisão civil pode ser conceituada, segundo Álvaro de Villaça Azevedo, como “ato de constrangimento pessoal, autorizado por lei, mediante segregação celular, do devedor, para forçar o cumprimento de um determinado dever ou de uma determinada obrigação.”72

Destarte, consoante afirmado na decisão, esse tipo de prisão é um mero instrumento de coerção processual para constranger o devedor a adimplir a sua obrigação.

Já a prisão penal é uma punição ao indivíduo que transgrediu a ordem jurídica, lesionando um bem, que devido a sua enorme importância para a sociedade, é protegido pelo direito penal73.

Assim, a prisão penal é mais grave que a prisão civil, em virtude do maior grau de reprovabilidade da conduta do indivíduo que praticou um crime, em relação ao que apenas cometeu um ilícito civil. Por essa razão, o STF decidiu que os presos civis não podem ficar na mesma cela que os presos penais, pois os sujeitos foram encarcerados por condutas de naturezas diversas, ensejando, portanto, um tratamento diferenciado.

Ora, se a Constituição proíbe a prisão civil por dívida, que é mais leve, é óbvio que também resta proibida a prisão penal, que é mais gravosa. Conclusão lógica a qual pode chegar qualquer leigo, traduzida na célebre expressão latina a

minori, ad maius, ou seja se não se pode o menos, não se pode o mais.

O Ministro Celso de Mello partiu de uma premissa verdadeira, qual seja, a prisão civil é diversa da prisão penal, sendo aquela menos grave que essa, porém chegou, data vênia, ao entendimento totalmente absurdo de que a Lei Maior proíbe a prisão civil, mas permite a prisão penal por dívida.

Caso o legislador ordinário pudesse tipificar como crime qualquer fato da vida a seu bel-prazer, inclusive os expressamente proibidos pela Carta Magna, cairia por terra todos os direitos e garantias fundamentais, além de se ofender

72 AZEVEDO, Álvaro Villaça. PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 51.

73 Essa é teoria absoluta ou retributiva da pena. No entanto, com a evolução do Direito Penal, surgiram também as teorias relativas ou preventivas, teoria mista ou unificadora e a teoria da prevenção geral positiva - BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume 1: parte

profundamente a segurança jurídica. Se a Constituição diz que não é possível a prisão civil por dívida, não pode a legislação infraconstitucional tipificar o ato de dever como crime, cominando pena prisional, como forma de burlar a vedação da Lei Maior.

Esclarecedora é a assertiva de Hugo de Brito Machado sobre a questão:

Ressalte-se que a tese adotada pelo julgado em análise não coloca nenhum limite à liberdade do legislador na definição dos crimes. Presta-se como fundamento para a definição de qualquer conduta humana como crime. O legislador poderia, nela fundamentado, definir como crime o não-pagamento de qualquer dívida no prazo legal ou contratualmente estabelecido, e assim anular inteiramente a garantia constitucional.

[...]

A lei penal há de ter um fundamento sociológico. O bem jurídico atingido pela conduta que ela define como crime há de ser relevante ao ponto de merecer a tutela penal, e esta não pode ir além da tutela oferecida aos credores em geral, que não inclui a prisão do devedor, salvo as exceções expressamente admitidas pela Constituição.74

Como exposto no primeiro capítulo do presente trabalho, o Direito Penal é regido pelo princípio da ultima ratio, só devendo ser utilizado quando os demais ramos do direito não forem suficientes para tutelar o bem jurídico ameaçado, o que não ocorre no caso analisado. Conforme já asseverado, o erário pode ser resguardado pela imposição da pena de multa administrativa pelo Estado e pela ação de execução fiscal, não sendo necessária a criminalização do mero não pagamento de tributo.

Além do que a prisão do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 tem a nítida finalidade de coagir o sujeito a adimplir sua obrigação tributária e não de punir o indivíduo pela conduta realizada. Tanto é que se extingue a punibilidade com o pagamento do tributo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória75-76. Se o fim da norma fosse mesmo punir o sujeito pelo

74 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes Contra a Ordem Tributária. São Paulo: Atlas, 2008. p. 401. 75 Ibid. p. 405

76 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. HC 116828 / SP. DJ de 17 de outubro de 2013. Relator: Min. Dias Toffoli. EMENTA Habeas corpus. Crime contra a ordem tributária. Aplicação do princípio da insignificância. Tese não analisada pelo Superior Tribunal de Justiça. Impossibilidade de conhecimento pela Suprema Corte. Inadmissível supressão de instância. Precedentes. Não conhecimento do writ. Requerimento incidental de extinção da punibilidade do paciente pelo pagamento integral do débito tributário constituído. Possibilidade. Precedente. Ordem concedida de ofício. 1. Não tendo sido analisada pelo Superior Tribunal de Justiça defesa fundada no princípio da insignificância, é inviável a análise originária desse pedido pela Suprema Corte, sob pena de supressão de instância, em afronta às normas constitucionais de competência. 2. Não se conhece do habeas corpus. 3. O pagamento integral de débito – devidamente comprovado nos autos - empreendido pelo paciente em momento anterior ao trânsito em julgado da condenação que lhe foi imposta é causa de extinção de sua punibilidade, conforme opção político-criminal do legislador

comportamento praticado, em nada mudaria o contribuinte pagar o valor devido após a sua condenação, pois se a sentença já confirmou a materialidade do fato típico - não recolhimento do tributo no prazo legal – nada importaria o pagamento posterior, uma vez que ato punível já estaria comprovado.

Verifica-se, consequentemente, que essa prisão por dívida tributária enquadra-se perfeitamente no conceito de prisão civil, vez que ela é um instrumento de coerção ao pagamento dos valores devidos à Fazenda e não uma punição de um ato reprovável realizado. Não pode o legislador chamar de prisão penal, o que prisão civil na verdade é, pois, como leciona Hugo de Brito Machado, “se o legislador tivesse a liberdade de alterar arbitrária e ilimitadamente os conceitos utilizados nas normas jurídicas, estaria destruído todo o direito, que restaria desprovido do elemento sistêmico e de todos os princípios da lógica jurídica.”77

Ademais, o Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado no sentido de não admitir a utilização de sanções políticas, as quais são, no âmbito do Direito Tributário, “restrições ou proibições impostas ao contribuinte, como forma indireta de obrigá-lo ao pagamento do tributo, tais como a interdição do estabelecimento, a apreensão de mercadorias, o regime especial de fiscalização, entre outras”78, conforme o magistério de Hugo de Brito Machado.

Nesse sentido o julgamento do RE 666.405/RS, de relatoria do próprio Ministro Celso de Mello:

pátrio. Precedente. 4. Entendimento pessoal externado por ocasião do julgamento, em 9/5/13, da AP nº 516/DF-ED pelo Tribunal Pleno, no sentido de que a Lei nº 12.382/11, que regrou a extinção da punibilidade dos crimes tributários nas situações de parcelamento do débito tributário, não afetou o disposto no § 2º do art. 9º da Lei 10.684/03, o qual prevê a extinção da punibilidade em razão do

pagamento do débito, a qualquer tempo. 5. Ordem concedida de ofício para declarar extinta a

punibilidade do paciente. (grifei) Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC+116828+%29&base= baseAcordaos>. Acesso em: 07/11/2013

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região - TRF-5. Apelação Criminal : ACR 5935 CE 0013278-03.2004.4.05.8100. DJ de 15 de maio de 2009. Relator(a): Desembargador Federal Geraldo Apoliano. EMENTA: PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA ORDEM TRIBUTÁRIA.

PAGAMENTO INTEGRAL DA DÍVIDA PREVIDENCIÁRIA APÓS A SENTENÇA CONDENATÓRIA.

TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL DETERMINADA POR HABEAS CORPUS. PERDA DE OBJETO DA AÇÃO PENAL. RECONHECIMENTO DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE EM SEDE DE HABEAS CORPUS. NÃO CONHECIMENTO DA APELAÇÃO CRIMINAL. - Apelante que, no HC nº 3.210/CE, julgado na sessão do dia 19.06.2008, conseguiu a ordem requestada para extinguir a punibilidade em face do pagamento integral do débito, inclusive os acessórios, nos termos da Lei nº 10.684/2003 , trancando-se a presente ação penal.(art. 9º, parágrafo 2º) - Perda de objeto do recurso. Apelação

Criminal não conhecida. (grifei). Disponível em:

<http://www.trf5.jus.br/archive/2009/05/200481000132781_20090515.pdf>. Acesso em: 07/11/2013 77 MACHADO, Hugo de Brito. Estudos de Direito Penal Tributário. São Paulo: Atlas, 2002. p. 29. 78 MACHADO, Hugo de Brito.

“Sanções Políticas no Direito Tributário”, “in” Revista Dialética de

EMENTA: SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO – INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF) – Restrições estatais, que, fundadas em exigências que transgridem os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade em sentido estrito, culminam por inviabilizar, sem justo fundamento, o exercício, pelo sujeito passivo da obrigação tributária, de atividade econômica ou profissional lícita [...] – Impossibilidade Constitucional de o Estado legislaar de modo abusivo ou imoderado (RTJ 160/140-141 – RTJ 173/807-808 – RTJ 178/22-24 [...].79

Se não se admite a apreensão de mercadorias e a interdição do estabelecimento comercial, por exemplo, como forma de compelir o contribuinte a adimplir a sua obrigação tributária, como se pode admitir o cerceamento da liberdade do sujeito, bem muito mais caro ao indivíduo, como meio para se obter o pagamento de tributos?

Tal entendimento leva uma inversão total de valores, prejudicando gravemente a coerência da ordem jurídica, não podendo, portanto, prosperar. A liberdade é um dos direitos fundamentais mais caros ao ser humano, estando acima de pretensões patrimoniais, só devendo ser restringida quando necessário à harmonia do corpo social. Dessa forma, é inadmissível que se coloque o direito ao crédito em patamar superior ao direito à liberdade, razão pela qual a Constituição proibiu a prisão civil por dívida.

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