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A problemática do decisionismo e a fuga às funções básicas do órgão jurisdicional

CAPÍTULO II O PODER JUDICIÁRIO E SUA CONJUNTURA FUNCIONAL

2.3. A problemática do decisionismo e a fuga às funções básicas do órgão jurisdicional

Uma das maiores críticas que se faz à discricionariedade judicial é a contaminação que as decisões judiciais sofrem de agentes externos ao Direito, principalmente fatores subjetivos, como aspectos políticos e morais adotados pelos aplicadores da lei. Nesse sentido, denota-se do estudo de Lênio Luiz Streck, em sua obra Precisamos Falar Sobre Direito e Moral (2019), como tais fatores afetam a realidade da Democracia no Estado de Direito brasileiro, uma vez que a criatividade das decisões, hoje em dia, já ultrapassou, e muito, os limites defendidos pela Constituição, para a interpretação inovativa saudável, por parte do Judiciário.

Streck (2019) inicia sua crítica ao decisionismo criativo, principalmente no âmbito brasileiro, ressaltando essas influências externas, que num Estado Democrático de Direito, vêm afetando a normatividade, e consequentemente, a vida dos cidadãos. Streck (2019) delineia os três principais fatores que, nos últimos anos, procuram influenciar as decisões judiciais, quais sejam a política, a economia e a moral, sendo que, para Streck (2019), esta última é a que mais causa prejuízos ao Direito.

Streck (2019) explica que, numa Democracia, onde há uma ideia de abrir mão de certas liberdades para a convivência harmônica de todos, de acordo com as leis, confundir Direito com moral é basicamente envenenar todos os princípios democráticos de um Estado, pois o primeiro não pode se submeter ao segundo. De acordo com Streck (2019), “ [...] na Democracia não é a moral que deve filtrar o Direito e, sim, é o Direito que deve filtrar os juízos morais” (STRECK, 2019, p. 11). Nesse sentido, defende Streck (2019) que o Direito deve estar acima da Moral, de modo que não pode se deixar levar por paixões pessoais para ser aplicado, uma vez que a moral pressupõe juízos de valores e opiniões diferenciadas, e o Direito, a validade de uma norma, não pode ficar refém dessas divergências, que são completamente subjetivas. Nas palavras de Streck (2019):

[...] por mais que um discurso moral, político ou econômico seja tentador, ele deve pedágio ao Direito. Alguém pode até confessar que matou alguém, mas, se essa confissão for produto de uma intercepção telefônica ilícita, deve ser absolvido, porque a prova foi ilícita. Esse é o custo da democracia. Você pode pensar o que quiser sobre

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o réu; mas, como autoridade, só pode agir com responsabilidade política. [...] E, assim, o custo da democracia é que a acusação, o Estado, deve ter o ônus da prova. Não é o juiz que faz a prova nem é o juiz que intui provas. A Teoria da Prova é condição de possibilidade. (STRECK, 2019, p. 14).

Em sequência, Streck (2019) procura entender de que forma a moral interfere nas decisões judiciais. Inicialmente, Streck (2019) afirma que judicialização da política é um instituto diferente do ativismo judicial, e aduz que o primeiro nem sempre será ruim, no sentido democrático, já que, quando os órgãos estatais se desvirtuarem de seus objetivos, faz-se necessário o Judiciário interferir para restituir a ordem estatal. No entanto, o segundo sempre será ruim para a Democracia, uma vez que decorre de comportamentos e visões pessoais dos juízes e tribunais.

Nesse sentido, Streck (2019) defende que o Judiciário deve se abster de utilizar a moralidade dos juízes, e mesmo a moralidade das ruas, para proferir suas decisões. Para Streck (2019), o Direito é quem deve controlar a moral, definindo o primeiro como o limitador da segunda, retirando as influências julgadoras moralistas da sociedade da função do Judiciário. Segundo Streck (2019), “O Direito exige um elevado grau de autonomia, e ignorar a lei, cedendo aos predadores externos, é um luxo ao qual os juristas não se podem dar” (STRECK, 2019, p. 29).

Em outras palavras, Streck (2019) quer dizer que toda a sociedade, e mesmo os compositores do Poder Judiciário, possuem valores morais intrínsecos e pessoais, com os quais conduzem suas próprias vidas privadas. Contudo, no que se refere ao Poder Judiciário, que não é um ente pensante, dotado de subjetivismo moral, este não pode e não deve ceder aos luxos da moralidade social. O referido órgão deve obediência ao Direito, e deve aplica-lo de maneira indiscriminada, sempre submetido ao ordenamento jurídico, sendo sua responsabilidade política abolir pré-conceitos para interpretar as leis, mesmo que o resultado da hermenêutica aplicada seja visto como moralmente errado. Afirma, ainda, Streck (2019), que a demasiada intervenção da moralidade na aplicação do Direito faz a sociedade retornar ao estado de natureza descrito por Hobbes5, onde a lei que mais vale é a lei da moral coletiva, e quem pensa

o contrário é tomado, praticamente como um herege.

5Em sua teoria, Hobbes afirmava que a sociedade somente poderia ser considerada civilizada quando estivesse sob o jugo de um contrato. Antes disso, o homem vivia num estado de natureza, onde seria absolutamente livre (sem nenhum tipo de lei ou determinação interferindo no seu agir), racional (fazia uso da sua racionalidade para exercer sua liberdade) e iguais (iguais em racionalidade e liberdade). Nesse estado de natureza o homem está sempre atrás dos seus objetos de desejo, e para conseguir o que se deseja, o homem faria tudo aquilo que estivesse ao seu alcance, de forma que essa busca geraria conflitos de desejos, já que todos fariam de tudo para conseguir o que se deseja. Dessa forma surge uma guerra de todos contra todos, e por estar nesse estado constantemente, o homem sente-se inseguro e com medo. Além disso, nesse estado de natureza, como os homens estão muito

58 Streck (2019) ainda critica a atuação do Judiciário brasileiro, desde as escolas de Direito, até o Supremo Tribunal Federal, aduzindo que a confusão entre Direito e moral se tornou tão grande, que defender que o órgão jurisdicional se atenha às leis se tornou um problema de cometimento de injustiças, perante os olhos da moralidade social. Streck (2019) ainda defende que, uma vez que se permita a discricionariedade do Judiciário, deve esta ser controlada da mesma forma que a jurisdição controla a discricionariedade dos demais Poderes, para se evitar arbitrariedades por parte daquele órgão, uma vez que “Quando o Direito é livre (da Lei), dependemos do intérprete. E, se dependemos dele, contrariamos o próprio Estado de Direito, pois passamos a nos submeter a discricionariedades, arbitrariedades [...], subjetivismos e quetais. Eu defendo a necessidade de critérios” (STRECK, 2019, p. 50).

Ainda, sobre o problema da interpretação, Streck (2019) ressalta a importância da existência do aspecto textual para que a hermenêutica se dê de forma efetiva e correta, relacionando, no que tange ao Direito, a existência da norma escrita e a interpretação dos juízes, que não deveria saltar longe da letra da lei. Streck (2019) afirma que não existe interpretação fora do texto escrito, e é em torno dessa relação que ele desdobra sua crítica com relação ao ativismo judicial, uma vez que, em seu ver, o que o Judiciário faz, ao agir de forma ativista, é transpassar os ditames legais escritos, inventando nova normatividade, como se isso fosse algo natural, apenas se apegando à literalidade da lei quando lhe é conveniente. Nas palavras de Streck (2019):

Pois parece que nossos juristas têm resistindo à voz dos textos. Eles chamam e os juristas atendem apenas quando interessa. Por isso, temos um encontro de águas bem peculiar: tudo vira política e ideologia. Quando convém, os Tribunais (e os Juízes) apegam-se à letra da lei; no dia seguinte, também porque convém, fazem ouvidos moucos, canibalizando o próprio material que compõe o Direito (STRECK, 2019, p. 93).

Seguindo ainda este raciocínio, Streck (2019) defende que a interpretação dos juízes, ao aplicar a normatividade, deve sim levar em conta o caso concreto, mas ressalta que a subjetividade da decisão deve parar por aí. Para Streck (2019), a interpretação de uma norma pode variar sim, de acordo com cada caso, uma vez que a lei possui características gerais, contudo, alerta que o caso narrado não deve ser um ponto de partida para a invenção de regras que não existem. Por isso, Streck (2019) critica veementemente a cultura da produção

ocupados na tentativa de se auto protegerem, não há trabalho produtivo, nem tranquilidade para gerar riquezas, inexiste motivação para construir ou explorar, não há espaço para as artes, ou seja, não há produção de nada de útil para uma sociedade.

59 jurisprudencial, pois nem sempre os fatos serão exatamente iguais uns aos outros, e muitas vezes a analogia feita pelo Judiciário se torna uma verdadeira fabricação de normas.

Na continuidade de sua crítica à atuação do Judiciário, Streck (2019) procura definir este modus operandi jurisdicional, aduzindo que, atualmente, os juízes não procuram mais julgar conforme a legislação, intrinsecamente, mas sim julgar conforme a subjetividade pessoal de cada um, fazendo a “justiça” se basear em aspectos morais, e não legais. Segundo Streck (2019), “Como se o Judiciário, entre a lei e o que ele considera justo, optasse pelo segundo, como em uma espécie de jusnaturalismo envergonhado” (STRECK, 2019, p. 114). Streck (2019) ainda profere críticas à intromissão da mídia e das redes sociais nas decisões judiciais, e em como o Judiciário se deixa levar por estes subjetivismos, onde, segundo Streck (2019), o órgão Estatal acaba ficando receoso de aplicar a lei conforme deveria ser, por medo (ou pela necessidade de se auto afirmar como poder) de se postar contra o senso comum.

Streck (2019) ainda defende que, a única forma, prevista constitucionalmente, para que o Judiciário atue de forma mais ativa perante a normatividade, de forma legítima, sem prejudicar o aspecto democrático do Estado, é através do controle de constitucionalidade, afirmando que “[...] uma lei para não ser aplicada deve ser declarada inconstitucional. Ou se faz uma interpretação conforme a Constituição. Ou uma declaração de nulidade parcial sem redução de texto, ou uma nulidade parcial com redução de texto [...] Fora isso, estamos saindo do terreno da Democracia e entrando no decisionismo e seus congêneres” (STRECK, 2019, p. 115).

Streck (2019) também critica a formação dos juristas nas inúmeras faculdades de Direito distribuídas pelo solo nacional, dizendo que muito da culpa na atual administração das decisões judiciais se dá pela falta de criticidade nas universidades jurídicas. Nesse sentido, Streck (2019) afirma que a falta de pensamento crítico dos juristas em formação, somado à falta de preparo dos professores dessas instituições, que apenas preparam o estudante para concursos e provas de Ordem, e não para a vida profissional, está destruindo a profissão, e consequentemente, destruindo o próprio Direito.

Denota-se, portanto, que o decisionismo e a interferência de aspectos externos à normatividade estão cada vez mais influenciando os juízes em sua função precípua de defender e aplicar as normas e principiologias definidas constitucionalmente em nosso país. Contudo, alegar tais práticas de forma genérica pode não transpassar de forma correta a dimensão do fenômeno político-jurídico verificado no Brasil, a partir da Constituição de 1988, que se mostra único, tamanha complexidade teórica e prática constatadas nessas atuações. Dessa forma, a

60 partir dos pontos aqui levantados, propõe-se estudar afinco algumas decisões proferidas pelo Judiciário brasileiro, principalmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, para verificar de que forma as atuações mais ativistas dos operadores do Direito estão colidindo com as próprias diretrizes fundamentais estabelecidas na Carta Magna de nosso país, além de se buscar entender o que está levando esses juízes a agirem dessa forma, bem como os reflexos sociais de tais ações.