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PARTE A – BIOGRAFANDO UM LÍDER NEONAZISTA

A.2 O Que Uma Urna Pode Conter?

O vídeo que descrevo a seguir foi postado em dois fóruns neonazistas diferentes, por April Gaede, que providenciou o ritual de velório e cremação de David Lane. As Imagens 1 e 2 contêm frames capturados do vídeo para auxiliar a compreensão da descrição a seguir.

Sob fundo preto, uma tela abre um vídeo com uma música instrumental de fundo. A inscrição ―In Memory of David Eden Lane ‗Wodensson‘ ‖ é seguida de duas datas, ambas marcadas com a runa Algiz: 2 de novembro de 1938 e 28 de maio de 2007 (imagem 1a). A runa, utilizada pelo nazismo no programa de reprodução forçada Lebensborn42 (traduzido do alemão arcaizado, "fonte da vida") idealizado por Heinrich Himmler, tem o sentido de ―vida‖. No programa do partido, demarcava o ideal de superioridade racial do arianismo. É ela também que abre a grande exposição nazista Milagre da Vida43, que visa, entre outras questões, preparar o caminho para a grande perseguição às pessoas com anomalias congênitas e problemas de saúde mental, abrindo as portas para a operação Aktion T444.

42

Cf. Annette F. Timm, The Politics of Fertility in Twentieth-Century Berlin, Cambridge: Cambridge University Press, 2010; Henry Friedlander, The Origins of Nazi Genocide: From Euthanasia to the Final Solution (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1995 e Robert N Proctor, Racial Hygiene: Medicine Under the Nazis (Cambridge Massachusetts: Harvard University Press, 1989. Sobre o tema, a BBC fez um documentário sobre o

programa disponível na WEB.

43 Die Wunder des Lebens, Milagre, maravilha ou prodígio da vida. No anexo III, imagens da abertura da

exposição. As imagens foram recuperadas de minha dissertação de Mestrado, bem como a imagem dos Símbolos Rúnicos.

44 Para o partido, a medicina do século XX havia permitido o avanço da ―degeneração‖ racial e a proposta

eugênica se fundava em dois pressupostos fundamentais: a) o campo da medicina haveria perturbado o "equilíbrio natural", cuidando e permitindo o "fraco" sobreviver, enquanto b) os pobres e inadaptados estavam se reproduzindo a uma taxa que excedia a taxa de natalidade mais desejável do que grupos verdadeiramente arianos em toda a Alemanha (PROCTOR, 1988). A operação Aktion T4 visava esterilizar e eliminar os indesejáveis. Voltarei a esse ponto mais adiante.

Figura 4

Voltando ao vídeo, ainda na imagem 1a, na primeira data, atribuída a seu nascimento, a runa está em posição normal, mas na segunda, aparece invertida. A imagem desaparece e surge uma fotografia de David Lane (imagem 1b), de braços cruzados, com uma parede de pedras no fundo, o martelo de Thor num colar sobre o tórax (adereço vendido em muitos sites neonazis), braços cruzados e um relógio no pulso esquerdo. Veste uma camiseta branca por baixo da camisa simples cinza. É a foto mais partilhada de Lane em todos os sites.

Novamente, a imagem é mudada. Entramos no vídeo propriamente dito. Surge uma mesa e uma pequena urna, que será inserida posteriormente na pirâmide. A imagem faz close na urna e percebe-se que nela estão gravadas as mesmas datas; o título "Wodensson", dado a Lane por si mesmo, que significaria filho de Wotan; e uma inscrição em runas. Isto pode ser visto nas Figuras 2,a,b,c,d.

O vídeo prossegue e nos é apresentada a caixa funerária para as cinzas de Lane: uma pirâmide dourada. Numa das faces, o brasão da The Order, o grupo da Irmandade Silenciosa a que pertenceu (imagem 1e). Numa segunda face, outra inscrição em runas nos é

apresentada (parte dela pode ser vista na imagem 1f). Na terceira, um complemento do texto. Na quarta face da pirâmide, de base quadrada, uma terceira mensagem, ainda em runas. Observando a mensagem em runas que cobre três das faces da pirâmide, noto que formam catorze palavras. Elas são um criptograma da famosa frase de Lane, em que cada som (no caso do Th, por exemplo) do inglês é substituído por uma runa (elas eram um alfabeto primeiramente sonoro, depois escrito). Não é uma tradução, nem uma transliteração, mas um código: as runas substituem as letras do alfabeto inglês. O mesmo acontece com grupos com outros idiomas. A correspondência entre sons e letras pode ser vista na figura 3. As runas também foram usadas no nazismo, tanto para servir de siglas a exposições, divisões e grupos internos, como para evocar símbolos nórdicos, essenciais para os mitos do nacional- socialismo.

A imagem retorna ao brasão da irmandade (imagem 1e), e a música passa a ser vocalizada. Enquanto isso, o artesão vai trabalhando inscrições na urna funerária. Ele acrescenta o nome David Eden Lane acima do título da urna (2 a). Passam-se dois minutos e vinte e seis segundos, na edição do vídeo, e a urna apresenta-se finalizada (2d).

A imagem muda e surge o texto das 14 palavras. As letras evocam runas, para assegurar a marcação nórdica (as figuras 3 e 4 e 5 demonstram alguns aspectos das runas).

Figura 5. O Uso das Runas

Figura 6 – Alfabeto Rúnico e utilização na codificação inglesa.

Elaborada pela autora, na plataforma Canva. Fonte da imagem: Omniglot, encyclopedia online of writing systems and languages.www.omniglot.com

Figura 7 – Runas, Nazismo e Neonazismo

O vídeo fecha com uma imagem da suástica, e acima dela as palavras ―14 words‖, obviamente, assegurando às 14 palavras um lugar tão importante quanto o símbolo nazista. Elas são seguidas de uma exclamação, como se fosse um vocativo, e abaixo da suástica pode- se então ser lido: David Lane: Defiant Until Death. Ele desafiou até a morte. A idéia aqui é de que Lane desafiou o sistema até morrer, mas também deixa transparecer que as 14 palavras lhe asseguram desafiar a própria morte, pois para o movimento, são elas, as 14 palavras, que lhe garantem a eternidade, como as cinzas distribuídas.

A linguagem usada como invocação está presente sempre. A imagem está um tanto transparente e no plano de fundo um pôr do sol bastante avermelhado. A idéia de um pôr do sol é importante. Na obra profética de Lane ele mesmo se compara ao Deus Sol Osíris que morre ao pôr do Sol e se levanta toda manhã. A ideia de perpétuo retorno está assegurada a cada vez que se repetem as 14 palavras: nelas, ele renasce todo dia. Esta imagem encerra o vídeo.

Ao anunciar o Ritual de Cremação, April informou aos membros do movimento:

<etno7> Queridos amigos,Tenho a honra de ser a pessoa que foi contactada após a morte de David Lane, e quem recebeu o dever de cuidar do corpo dele. Eu sinto que isso é uma grande honra, bem como um privilégio, e estou trabalhando duro para criar uma homenagem adequada ao homem e seus trabalhos. </etno VNN - Fórum>

Em seguida, ela anuncia o ―privilegiado e honroso‖ ritual de cremação, a produção das catorze pirâmides para conter as urnas funerárias e a formação da Irmandade das 14 palavras, composta de mulheres brancas, dedicadas à memória de Lane, à conservação de suas cinzas e à proliferação de sua obra. A grande maioria dessas mulheres pertencia à Irmandade da WAU, que posteriormente se veria em uma querela: as cinzas de Lane, cerca de dois anos depois da cremação, foram objeto de uma barulhenta disputa45. A propriedade uma das pirâmides virou objeto de questionamento, envolvendo uma das mulheres presentes no ritual e a divisão australiana do grupo Combat1846. Um décimo quarto da metade de Lane

45 material acerca da contenda em alguns sites e fóruns. Cf.

http://www.splcenter.org/blog/2009/03/11/women-for-aryan-unity-accuse-combat-18-of-purloining-sacred- ashes/, http://www.splcenter.org/blog/2008/10/31/tales-from-the-creeps-a-white-nationalist-horror-story/, e sites neo-nazis.

46 Combat18 (C18) é uma organização neonazista. Originou-se no Reino Unido, e posteriormente se expandiu

para os EUA e outros países. Vários membros do movimento já foram acusados e/ou condenados por numerosas mortes de imigrantes, negros, pessoas com deficiência e membros de outros grupos neonazistas. O "18" em seu nome é derivado das iniciais de Adolf Hitler.

estaria supostamente localizada em Perth, Austrália Ocidental, mais de 9.000 quilômetros de onde ele morreu, em Indiana, talvez levada por uma das mulheres presentes no ritual fúnebre.

O fato é que para uma das líderes da WAU, Victoria "Vickie" Cahill47, o grupo Combat18 teria se apropriado indevidamente das cinzas, por meio de "mentiras". Ainda segundo elas, o grupo teria enviado ―ameaças de estupro e espancamento" para Cahill e outros membros da WAU quando elas protestaram exigindo as cinzas de volta. Cahill, nascida em Dublin, Irlanda, mas muito presente na cena neonazi canadense e estadunidense, sempre se definiu como uma ―bruxa pagã celta‖, e passou grande parte de sua vida arrecadando dinheiro para presos nazistas e neonazistas de diversas associações, inclusive para a Stille Hilfe48.

O grupo que ameaçou a WAU defende ações consideradas ilegais e ―psicopatas‖ por muitos outros grupos neonazistas, por defenderem qualquer medida que julgarem necessária, até mesmo uso de bombas, veneno, atentados diversos, contra outros membros brancos49. Muitos membros da WAU, que vieram da National Aliance, julgam que eles são ―uma vergonha para o movimento‖, que para fora, insiste em se vender como ―um só povo‖. Há uma dupla condenação: por traírem a raça (ameaçando a WAU) e por traírem a imagem de unidade da raça exteriormente.

<etno8>"Queremos que essas cinzas de volta, nem que eu tenha que ir a Austrália"</etno WAU>, Cahill escreveu no fórum Stormfront e em outros lugares no dia 9 de março de 2009. Uma violentíssima discussão se seguiu, invocando os ―verdadeiros valores arianos‖. Não se sabe quem ficou com as cinzas de Lane, mas uma pergunta me nasceu: quem é este homem, cujas cinzas geram disputas desse porte entre neonazistas?

47 Victoria "Vickie" Cahill é uma neonazista muito conhecida dentro do movimento. Embora seja irlandesa de

nascimento, é monitorada por pelo menos quatro inteligências: da Irlanda, do Canadá, dos EUA e do Reino Unido. Apenas no Stormfront, o maior fórum neonazi do mundo, ela postou mais de 13 mil mensagens até dezembro de 2017.

48 A Stille Hilfe für Kriegsgefangene und Internierte, a Assistência Silenciosa para Prisioneiros de Guerra e

Pessoas Internas, é uma organização fundada em 1951, para prestar ajuda a nazistas (em caso de doenças ou prisões, por exemplo). Entre suas fundadoras está Gudrun Burwitz, filha de Heinrich Himmler.