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Bom dia, eu queria que o senhor falasse a respeito do so frimento, quando o senhor cita o campo de concentração.

O carcereiro que há em nós

Plateia 3: Bom dia, eu queria que o senhor falasse a respeito do so frimento, quando o senhor cita o campo de concentração.

Edson Passetti: O carcereiro ele exerce um controle vigilante, ele exerce esse controle porque quer. Ele escolheu fazer isso. Aí eu vou voltar lá no “Eichmann em Jerusalém”, no que eu considero espetacular naquele

livro, ou seja, como Hannah Arendt mostra no desenrolar do processo, como um sujeito se defende com base no “eu só estava cumprindo o meu trabalho”. Isso se expandiu a todas as profissões, cujo escudo é o direito. Todos estão no seu trabalho e esse trabalho sempre é visto como uma coi- sa dignificante, necessária, fundamental, destinado a você. A abolição in- terna do carcereiro é a condição também para você abolir o carcereiro da prisão. Abolir a prisão é umas das coisas mais difíceis quase impensáveis. Os dados estatísticos mostram em relação ao conjunto da população, que é percentualmente quase irrelevante. Eu vejo isso, em especial, quanto aos chamados jovens infratores, que do ponto de vista sociológico a estatísti- ca é traço. Mas, é fundamental para a sociedade que exista a prisão para jovens. As pessoas não abrem mão disso, não abrem mão da prisão. Por- que a prisão, e Foucault tinha razão, ela é importante porque é a imagem do medo. É na prisão que existe tudo o que a lei tem de mais solidificado: a capacidade de punir. É o que não pode, mas aplicado seletivamente, pois nem a lei nem a prisão são para todos. Nesse sentido, as alternativas colocadas para prisão,hoje em dia, se traduzem em medidas socioedu- cativas para jovens, ou em penas alternativas para adultos, com diversos programas também de liberdade semiaberta. Todas essas coisas são in- teressantes para serem analisadas, porque cresceram. No Brasil, criança e jovem sempre são matrizes, de qualquer coisa punitiva no passado e de monitoramento hoje em dia. Não foi à toa que em 1964, em 16 de de- zembro, se criou a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, elaborada para se tratar crianças e jovens como problema de Segurança Nacional. E isso em de 1964, dezembro, início da ditadura civil-militar. Porque é formando crianças e jovens que se obterá o adulto cidadão, responsável governável e assujeitado. Então, as penas alternativas, por exemplo, no Brasil, começaram a ganhar corpo a partir da aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente que, nesse ponto em especial, já estava contem- plado no antigo Código de Menores de 1978. Então, você nota que para se chegar às penas alternativas, chegou-se, inicialmente, a um conjunto de práticas biopsicossociais que diziam respeito ao controle de crianças e de jovens cometendo os chamados atos infracionais. Quando se colocou o problema das penas alternativas no Brasil, a justificativa era que com sua introdução teríamos a redução das prisões, da construção das prisões,

redução de vagas nas prisões... Não foi isso o que ocorreu. O Estatuto da Criança e do Adolescente, diz que a prisão, ou seja, a internação somente deve ocorrer em último caso. Vocês na área do Direito sabem muito bem que não é assim. Os psicólogos também sabem muito bem que não é as- sim. O que aconteceu? O regime das penas alternativas criou uma puni- ção de comportamentos criminalizados em progressão geométrica, sem redução do número de prisões ou vagas nas prisões. As prisões cresceram assustadoramente, estão superlotadas e funcionam quase da mesma ma- neira. Então o que acontece do ponto de vista do carcereiro? Há dentro da prisão, hoje em dia, uma maneira de administrar, em que os próprios prisioneiros organizados, participam da sua gestão administrativa. Posso dar o exemplo: Primeiro Comando da Capital, em São Paulo. É, o legal e o ilegal funcionam muitíssimo bem na gestão prisional, porque não existe capitalismo sem ilegalismo e não há legalidades sem ilegalidades. Ponto. Isso ganhou uma dimensão surpreendente, não só no governo da própria prisão. Os carcereiros são tanto aqueles do sistema prisional propriamen- te dito, quanto os produzidos pela própria chamada população sujeitada através do assujeitamento. Do ponto de vista externo, que nós chamamos de penalização a céu aberto, o que acontece? Neste caso, o carcereiro se desdobra, porque um carcereiro é tanto o sujeito que faz a chamada visto- ria da aplicação das medidas, como a própria comunidade com o Conse- lho Tutelar. O Conselho Tutelar é um micro tribunal. Ele funciona, nessa direção, acoplado à escola, mas o que eu noto como mais extraordinário: é a proliferação dos programas de monitoramento de infratores levados a cabo pelos próprios infratores com a função de criar uma situação fa- vorável de atração e integração dentro da comunidade. Então, a noção de carcereiro como nós a conhecíamos na sociedade disciplinar ganhou ou- tra dimensão. Ela não está mais circunscrita ao sujeito que tem um deter- minado desempenho funcional dentro da prisão. Mas se expande inter- namente pelo redimensionamento com a gestão compartilhada da prisão com prisioneiros organizados, e para o exterior coma penalização a céu aberto, quando os carcereiros se multiplicam, a outra faceta do cidadão- -polícia, como governo das condutas. Não há redutores de punição, mas, ao contrário, este é exponenciado. Não há mais uma identidade de carce- reiro. Hoje é possível, inclusive, que o próprio infrator se transforme em

um carcereiro. Portanto, as políticas alternativas, do ponto de vista penal, produzem uma variedade de punições e não uma redução de punições.

Sobre as micropolíticas e se eu trabalho com isso. É. Eu trabalho ba- sicamente com isso. Minha reflexão procurou situar um pouco questões relativas à soberania, às disciplinas, aos controles vistos a partir dessa du- pla relação entre as relações de poder ascensionais e descensionais. Se nos restringirmos apenas à macro política, consideraríamos a democracia re- presentativa e participativa, enquanto produção de políticas públicas. Po- rém se você analisar os fluxos de micropolítica verá isso tudo acontecer no âmbito do pastorado e como as relações de poder se estabelecem entre diversas forças que configuram uma relação indissolúvel entre sociedade civil e Estado. Essa distinção teórica, por exemplo, que sempre percorreu as humanidades, a Sociedade Política, a Sociedade Civil, ou o Estado e a Sociedade Civil, ela se dilui justamente a partir das análises da micropo- lítica, e nesse sentido penso que os cursos do Foucault como “Segurança de Território e População”, por exemplo, são muito importantes para ver que nunca houve essa separação do ponto de vista histórico contínuo.

E com relação ao sofrimento, essa é uma pergunta de psicanalista... A noção de sofrimento sempre vem acompanhada da noção de falta. Falta algo. Para você ter o sofrimento você precisa da falta. Esse é o grande, vamos dizer assim, o grande achado que as humanidades encontraram e principalmente o liberalismo. Seja no campo da psicologia, da psica- nálise, das ciências sociais, da própria filosofia. Você precisa ter uma fal- ta e essa falta sempre tem que ser preenchida e, no limite, a falta a ser preenchida, ela é de responsabilidade dessa categoria de entendimento chamada Estado ou do psicanalista, afinal capitalismo se funda na dis- seminação da crença na escassez. Então, se você preencher alguma coisa “x” que eu não sei qual seja, haverá uma contenção do sofrimento espe- cífico. Agora, a superação do sofrimento, também exige que você tenha uma disposição à adaptabilidade. Penso que a categoria de resiliência, por exemplo, ela é muito cabível para se discutir o chamado sofrimento hoje, porque ela funciona no âmbito do redutor, porque na medida em que eu passo a me ver como um sujeito resiliente, eu me adapto com mais rapidez à adversidade, produzo com certa elasticidade e não mais sob as

fronteiras rígidas, reduzo certa escassez. Ou seja, você pode produzir uma contestação, mas deve ser elástico, para saber voltar à condição original. E isso é um redutor de sofrimento importante para tirar esta categoria da psicanálise e transferi-la para a psiquiatria e seu vínculo com a agilidade nas superações para a produção de produtos com o investimento em me- dicalização das condutas. É também redução da falta pela produção de algo novo, pelo ocupar-se com algo, ser chamado a produzir alguma coisa nisso que era a antiga falta, produzindo um redutor de sofrimento. Penso que devêssemos fazer outra pergunta: será que o sofrimento é a categoria mais interessante, ou buscar outras categorias que sejam opostas à do so- frimento para funcionar como uma resistência à resiliência? Hoje em dia há vários trabalhos que tratam como sinônimos resiliência e resistência. E este me parece um grande equívoco ou forma de captura, ou melhor, a produção de uma nova verdade que imobiliza resistências (...).

Plateia 4: Antes nós estávamos falando da sensação de paralisação, e