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2. Bastet e Sekhmet: os testemunhos

2.2. Sekhmet

2.2.4. Sekhmet nas fontes de carácter religioso

2.2.4.2.2. Recensão tebana

No capítulo 15, versão de Barguet, tem-se: «Ó Sekhmet, rica em magia, senhora de Acheru, ó deusa senhora que está no céu, salva o Osíris N, guarda-o, protege-o do poder dos mortos e dos mortos! Esconde-o, esconde-o dos mortos e dos mortos, e de todas as coisas malvadas, neste mês, no festival do décimo quinto dia, neste ano, e a tudo o que lhe pertence»313. Sekhmet como protectora do defunto bem como ligada ao lago sagrado do templo de Mut.

No capítulo 17 aparece-nos «Aqueles que estão encarregues dos seus braseiros, eles são a imagem do Olho de Ré e a imagem do Olho de Hórus. (…) Quanto a Uadjit, senhora da chama devoradora, ela é o Olho de Ré. Quanto aos que dela se aproximam, significa que a confederação de Set está perto dela, pois o que está perto dela está ardente»314. Há aqui uma união de Sekhmet, o Olho de Ré ígneo, com Uadjit. É também perceptível que todos aqueles cuja profissão era relacionada com fogo, ou braseiros, estavam ligados ao Olho de Ré, e

311 Idem, p. 96. 312 Idem, p. 98.

313 BARGUET, P., LM, p. 48. 314 GOELET, O. et al., BD, p. 116.

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possivelmente a Sekhmet, poderendo indicar uma certa patronização por parte da deusa a este tipo de artífices. Observa-se, ainda, uma associação entre o Olho de Ré e o Olho de Hórus e a ligação com a deusa Uadjit poderá estar no jogo de palavras entre o Olho de Hórus (udjat) e o nome da deusa.

O defunto proclama no capítulo 26, versão de Barguet, que «Sekhmet, a divina, fortalece-me»315, evidenciando, por um lado, o papel protector no submundo por parte da deusa leoa, e por outro, reforçando a sua qualidade enquanto deusa.

Consta no capítulo 39: «Ó Ré, a tua tripulação… possas tu descansar aqui, pois as tuas posses estão ali. Traz para a casa, traz o teu Olho, para a casa, traz o que é bom»316. Este excerto dá azo a duas interpretações: Que Ré traga para a casa o seu Olho e o que é bom; Que Ré traga para a casa o seu olho que é bom. Se for este o intuito do texto, então qualquer que seja a forma do Olho (Sekhmet, Hathor, Uadjit) deverá ser encarado como algo benéfico, apenas punitivo para quem merece.

Diz o morto no capítulo 57: «Ó Hapi (…), possas tu conceder-me poder sobre a água, tal como Sekhmet que salvou Osíris naquela noite de tempestade»317. Este pequeno excerto informa-nos que Sekhmet detém algum tipo de poder sobre a água e que em algum momento, numa noite de tempestade, Sekhmet salvou Osíris. Não se encontrou qualquer referência a este salvamento ou a esta noite em específico. É notório o facto de o pedido ser feito a Hapi e não directamente a Sekhmet, parecendo haver, novamente, medo de um confronto directo com a deusa leoa e o deus do Nilo surge qual intermediário.

No capítulo 66 o defunto proclama que «Eu sei que fui concebido por Sekhmet e gerado por Satet. (…) Eu sou Uadjit que veio de Hórus»318. Uma vez que este texto servia de modelo

para várias pessoas, a crença, nesta altura, parece ser a de que os homens eram concebidos pela deusa leoa, ideologia que parece ter sido recuperada dos PT. A diferença é que no Império Antigo estes textos destinavam-se exclusivamente aos monarcas, agora era generalizado para quem os pudesse pagar. Não se deixa de fazer notar, porém, que no mesmo texto (o texto funerário na sua totalidade) está patente Sekhmet como a deusa que concebe o humano, e Sekhmet, a deusa que inspira temor.

Está escrito no capítulo 95 que «Eu sou aquele que ofereceu protecção durante o tumulto, que defendeu a grande deusa na guerra. Eu ataquei com a minha faca, eu acalmei

315 BARGUET, P., LM, p. 72. 316 GOELET, O. et al., BD, p. 118. 317 Idem, p. 120.

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Ach319, eu agi em nome da grande deusa na guerra»320. Mais à frente, no capítulo 100 tem-se: «eu tornei a grande deusa poderosa no momento da sua acção»321. Por último, no capítulo 131 aparece-nos «Eu invoquei a grande deusa. (…) Eu tomo posse da grande deusa»322. Esta deusa poderia ser qualquer uma, mas o facto de se falar aqui em guerra poderá ser um indício de que se refere a Sekhmet. De qualquer forma, podemos questionar-nos sobre esta guerra aqui mencionada. Se se tratar, de facto, da deusa guerreira então somos informados de que houve uma guerra, que Sekhmet recebeu protecção ao participar nela e que ela recebeu força daqueles que a protegiam. O passo alusivo a tomar posse da deusa não faz sentido, tendo em conta as afirmações anteriores, porém este sentido de posse poderá ter uma noção protectora, no sentido em que o falecido tomou posse da deusa não para si, mas para usufruir da sua protecção.

Lê-se no capítulo 136 B: «Eu sou nobre do senhor da justiça, a quem Uadjit concebeu»323, e se Uadjit é misturada com Sekhmet, então estamos perante a mesma situação analisada antes no capítulo 66. Resta perceber se Uadjit concebeu o falecido ou o senhor da justiça. De qualquer forma pode entender-se Sekhmet-Uadjit como a deusa que concebe.

No capítulo 145, versão de Barguet, encontra-se o excerto: «à medida que entrei na casa de Isdés, eu exaltei os assassinos de Sekhmet no interior do Castelo de Neit»324, o que expressa claramente que Sekhmet tem entidades à sua disposição.

Relembre-se o capítulo 164, versão de Barguet:

«Saudações a ti, Sekhmet-Bastet-Ret, senhora dos deuses, portadora de asas, senhora do tecido vermelho, senhora da coroa branca e da coroa vermelha, a que está à cabeça do seu pai; não existem deuses mais eminentes do que ela; grande de magia na barca dos Milhões de Anos, prestigiosa de aparição no local do silêncio, mãe de Pa-ChKS, esposa real do Leão-HQ, forma da senhora e da dama dos túmulos, Mut no horizonte do céu, ao coração apaziguado, a bem- amada, que reprime a desordem, a paz está no teu punho, tu que estás constantemente na frente da barca do teu pai para derrotar o malvado! Tu ofereces maet na frente da sua barca. Tu és a Devoradora que não deixa de descansar/que não dá descanso. SPYTKHR-SPSRMKK-RMT é o teu nome, tu és o grande sopro ardente que SQNQT tem na frente da barca do teu pai, HRP- GKChRChB na verdade, como dizem os Negros, os Antiu da Núbia. Glória a ti que és mais valente que os deuses! A Ógdoade exulta por ti, e as almas vivas que estão nos seus sarcófagos estão cheias de louvor pelo teu prestígio, pois tu és a mãe delas, a mais primordial de todas,

319 Divindade com uma possível origem estrangeira, ligada aos desertos ocidentais e dos oásis da área da Líbia,

podendo ser associado a Set. WILKINSON, R. H., The Complete Gods and Goddesses of Ancient Egypt, Londres: Thames and Hudson, 2003, p. 98.

320 GOELET, O. et al., BD, p. 123. 321 Idem, p. 126.

322 Idem, p. 132. 323 Idem, p. 133.

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aquela que lhes preparou um lugar de repouso na Duat misteriosa. Preserva os seus ossos, salva- as do terror, santifica-as no lugar da eternidade, salva-as da sala malvada/dos malvados! A alma do deus de cara feroz da Enéade, a filha do deus de cara feroz, que oculta o seu corpo da serpente, do malfeitor, que o seu nome não seja descoberto: o Leão misterioso é o nome de um, o Filho, o anão, é o segundo. Olho Sagrado, Sekhmet, a grande, senhora dos deuses, é o teu nome, tit é o nome de Mut, tu que santificas almas, preserva os seus corpos! Que eles se salvem do local de execução dos criminosos que estão na sala malvada/dos malvados, que eles não sejam presos! A deusa disse com a sua própria boca: Farei como dizes, deusas, pequenas da Andorinha, que executaram para ele os rituais funerários»325.

Optou-se por repetir na íntegra este capítulo pelo facto de na parte final ser orientado exclusivamente para Sekhmet e não para a divindade sincrética, como se não fosse suficiente invocar Sekhmet-Bastet-Ret, como se o poder de Sekhmet enquanto deusa individual fosse diferente e igualmente necessário.

Profere o falecido no capítulo 174: «Eu fui concebido por Sekhmet, foi Chesmetet quem me deu à luz»326. É uma variante da fórmula encontrada no capítulo 66, analisado supra. Alterando apenas a deusa que dá à luz, mantém-se Sekhmet como a deusa da concepção, podendo ser sintomático do significado e do papel atribuído à deusa leoa, o que não deixa de ter sentido já que a viagem pelo Além era difícil e quem melhor que Sekhmet, a deusa guerreira e da destruição, para salvaguardar a sua prole na dura jornada.

Por fim, no capítulo 179 diz o morto relativamente aos seus inimigos que «eu tenho poder sobre ele como Sekhmet, a grande»327. Esta descrição, apesar de curta e simples, define

a noção egípcia da deusa leoa, colmatando com um epíteto já observado: a grande. Pode, ainda, inferir-se sobre algo nas entrelinhas: o facto de ser aqui invocado o nome de Sekhmet, neste contexto, parece significar que ela seria, de facto, uma das deusas mais poderosas.