• Nenhum resultado encontrado

RECONHECIMENTO E VALORIZAÇÃO DA VIDA CULTURAL DA COMUNIDADE

O LÚDICO NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

5.2 RECONHECIMENTO E VALORIZAÇÃO DA VIDA CULTURAL DA COMUNIDADE

Para tratar dessa segunda categoria destinada à Educação Lúdica para Jovens e Adultos, é necessário, em primeiro lugar, compreender que a educação não se resume à escola, e sim, se constitui como responsabilidade de toda a sociedade. Isso torna-se possível por meio da articulação de diferentes grupos sociais que fomentam espaços e práticas de convivência, como a família, a igreja, associações de bairros, meios de comunicação, escola, etc. Na Sociedade da Informação, torna-se claro que o papel desta instituição formal de ensino não está restrito à transmissão de conhecimentos, já que existem diversos outros veículos sociais de transmissão (diferentemente da escola de 50 anos atrás, antes da popularização da televisão e do computador).

Apesar das observações realizadas no tópico anterior sobre as percepções dos estudantes acerca da escola, compreende-se que os conhecimentos que tais sujeitos já construíram ao longo de suas trajetórias de vida são importantes como ponto de partida para a aprendizagem de conteúdos sistematizados, para a construção de valores e habilidades para a sua atuação no contexto social. Além disso, a própria vivência cultural do educando revela e valida experiências que nem sempre são percebidas por eles mesmos e pelo educador e ajudam a construir aprendizagens mais amplas, consistentes e profundas, evitando a limitação da compreensão da realidade centrada no referencial de mundo do educador ou do livro didático.

Quando me refiro aos conhecimentos prévios da turma, estou tratando tanto dos conhecimentos acerca da realidade imediata, quanto do panorama social mais abrangente. Assim, aprender representa uma reflexão ampliada sobre o próprio estado da vida cultural, bem como o entendimento de que todo ser humano faz parte de uma totalidade maior, que influencia as relações sociais em menor escala. Partindo desses pressupostos e tomando como referência o aprendizado da leitura e da escrita, o educador ajuda a possibilitar um processo de descobertas de conhecimentos frente à sociedade onde participa, já que, ao ingressar na escola, o

adulto já domina a língua falada e se utiliza do código escrito para comunicar-se, ainda que de forma restrita. A necessidade do adulto está relacionada à descoberta de conversão dos conhecimentos da língua falada para o sistema escrito e este se apresenta como um dos objetivos dos primeiros anos de escolarização do adulto.

Além da língua falada, observa-se que grande parte dos analfabetos tem um vasto campo de conhecimentos adquiridos na vivência com o mundo a serem compartilhados com os demais colegas em sala de aula. Tal bagagem de conhecimento certamente não foi construída no contexto escolar, e sim adquirida com a experiência de inúmeras situações que exigiram desses adultos o pensamento, reflexão e atuação na dinâmica social. Detecta-se, assim, a ilusão de muitos educadores de que a escola se apresenta ao adulto como o principal espaço de aquisição de conhecimentos, em detrimento das múltiplas práticas sociais, nas quais o jovem ou adulto participa, conforme analisa a autora Marta Durante (1998):

É na escola, no processo de pensar sobre o próprio conhecimento, que o individuo aprende a se relacionar com o conhecimento descontextualizado, independentemente das suas relações com a vida imediata. Tal conhecimento pode ser constituído em outras instituições sociais, mas, em nossa sociedade letrada, a escola é a instituição privilegiada para essa função. (DURANTE, 1998, p. 25).

Esta forma de pensamento, que seleciona a prática escolar como a principal oportunidade de formação dos seres humanos, desconsidera a possibilidade do sujeito aprender e se relacionar com outras formas de ver, analisar e intervir na realidade cultural. Na verdade, a sociedade é composta por diversos locais de aquisição de conhecimentos, pois o sujeito aprende em todos os espaços onde há vida social: família, amigos de rua, associações de moradores, local de trabalho, televisão, bibliotecas, etc. Todos estes locais se constituem enquanto espaços de aprendizagem e de convivência que ampliam as fronteiras da compreensão sobre o mundo e a vida em sociedade. A consideração da autora mostra que a escola é um local específico de formação, mas não é o único. Da mesma forma, o letramento é concebido como o processo que pode ser desencadeado pela escola, mas vai além dos seus limites temporais e territoriais, conforme destaca a autora:

A alfabetização (domínio do sistema alfabético) constitui apenas um tipo de prática de letramento. Entendendo o letramento como um conjunto de práticas sociais que se utiliza da escrita, ampliam-se as agências de letramento para além da escola, abrangendo a família, a igreja, o trabalho, as organizações populares etc. (DURANTE, 1998, p. 25).

Mais do que um ambiente educativo, formado por professores, funcionários e família, a escola pode estimular a construção da busca e do desejo de aprender, onde o “aluno não deve meramente ‘passar pela escola’, essa etapa precisa ser prenhe de significado” (MIRANDA, 2001, p. 20). Além disso, é necessário construir instrumentos que possibilitem o desenvolvimento das habilidades e capacidades humanas.

Nesse sentido, compreende-se que a comunidade apresenta diversas oportunidades de discussão e interação social, constituindo-se como espaços de construção da cultura. A participação do adulto em grupos comunitários ajuda-o a compreender melhor a sociedade em que vive, com todas as suas contradições. Assim sendo, compreende-se que a construção de uma cultura coletiva e solidária se dá por meio das interações sociais que ocorrem na escola e fora dela. O convívio em diferentes grupos (família, escola, instituições comunitárias) possibilita que os sujeitos tomem a consciência de que a individualidade se constitui como um direito adquirido, mas que não pode existir em detrimento da exclusão de demais sujeitos. Quando a participação comunitária é restrita, pode ocorrer a percepção da própria condição (de analfabeto, excluído, pobre, etc) como um estado individual, sem uma compreensão mais ampliada sobre a sociedade.

Desse modo, compreendo que este processo coletivo de desenvolvimento cultural ainda está em fase de amadurecimento na atual sociedade pseudodemocrática, onde os cidadãos ainda não se apropriaram do sentido de participação coletiva e de solidariedade. No que tange a esta reflexão, Paulo de Salles Oliveira (2001) esclarece-nos sobre a construção de uma cultura pautada na solidariedade:

Uma cultura solidária emerge à medida que as interações sociais se fundam numa base comum, na qual os participantes se voltam um para o outro,

compondo um campo mutuamente compartilhado. Estabelecendo-se uma rede de influências, em que direitos e responsabilidades são construídos, acertados e cultivados por meio de práticas, costumes, crenças e auto-regulamentações comuns, inspirados em bases igualitárias. Nesta teia, forçosamente também dinâmica e contraditória, cada qual tende a interiorizar a idéia de que a liberdade de ação individual não pode ser ilimitada e irrestrita se, para além, existe um projeto mais generoso, visualizando a possibilidade de que todos possam crescer na solidariedade. (OLIVEIRA, 2001, p.16).

Na construção desse tipo de cultura solidária construída pelos sujeitos sociais, é notório que o lúdico adquire um caráter amplo e profundo. Assim, ao se refletir sobre a importância do lúdico para a construção desse tipo de participação social, compreende-se que atividades como jogos, brincadeiras, interpretação de poemas e músicas, dentre tantas outras oportunidades de interação lúdica, abrem a possibilidade do sujeito se reconhecer de forma inserida em um conjunto de situações coletivas. No jogo, as decisões são tomadas frente à atitude do outro em busca de uma unidade do grupo, ainda que exista a competição em relação ao adversário. No jogo em grupo, há determinadas ações individuais, mas sempre tende para a retomada da participação coletiva. Geralmente, quando o sujeito tem uma tendência de centralizar a ação para si ou de buscar resolver todas as situações sozinho, o grupo logo se manifesta para sinalizar ao colega que a sua participação se dá dentro de uma estrutura coletiva do jogo.

Tal situação esteve bastante presente na aplicação de jogos na pesquisa- ação com jovens e adultos. Em todo grupo, há alguns sujeitos que têm uma predisposição a manipular ou centralizar as ações do jogo. Nessas situações, os adolescentes e adultos sinalizavam a conduta do colega, mostrando a necessidade de coletividade da atividade lúdica, ainda que tal compreensão não fosse tão explícita para eles. A fala de Admeuza, estudante, mostra este aspecto de forma bastante explícita:

“Peraê, professora. O jogo é pra todo mundo jogar ou é só pra alguns? Tem gente aqui que quer fazer tudo e não deixa o outro fazer nada. Às vezes, a gente tá ainda pensando, aí vem o outro e dá a resposta. Aí não dá tempo da gente matutar. Eu achava que a aula era de todos, mas tem gente aqui que não entende que todo mundo aqui quer jogar e quer aprender. Se continuar assim, com esse egoísmo todo, eu não vou mais querer participar de jogo nenhum”. (Admeuza Boa Morte de Oliveira, 36 anos, estudante da alfabetização de jovens e adultos).

A atitude da estudante demonstra, apesar de estar situada no lugar da queixa e do aborrecimento, a sua compreensão sobre a atitude lúdica, enquanto participação coletiva e solidária. Em outras palavras, a estudante quis sinalizar que o grupo precisava aprender a ser mais solidário com a presença, a participação e a aprendizagem do outro. Dessa maneira, compreendo que a participação em atividade lúdica amplia o sentido para a construção de uma cultura solidária em sala de aula, mesmo de forma lenta, no interior de inúmeras contradições sociais. De tal modo, a postura do educador é a de compreensão de que a sociedade ainda está em um estágio bastante restrito no que se refere ao sentido democrático de participação.

A atual sociedade ainda está pautada na estrutura social de exclusão e competitividade e está, aos poucos, vislumbrando estimular a participação representativa, que ainda está muito distante de tornar-se uma democracia participativa. Nesse aspecto, compreende-se que para os estudantes jovens e adultos a participação em atividades lúdicas, que se constitui como uma metáfora para a participação social, é um processo ainda muito novo. Por esta razão, tal processo requer a compreensão do ritmo do outro para conscientizar-se coletivamente. Por outro lado, é significativo compreender que este não é um processo espontâneo que se dá de forma natural na sociedade, e sim um procedimento social imbuído de ação e reflexão conjuntas, em busca da emancipação social e extinção da exclusão social que tanto aflige o país. Por isso, Oliveira (2001) afirma que:

Para que esse processo venha a se realizar como cultura solidária, resgatando a força atuante dos sujeitos sociais, particularmente dos que foram deixados para trás, essa produção gestada em comum precisaria exprimir a recusa de todas as formas de exclusão social, que até sufocaram qualquer aspiração emancipadora e democrática. Estamos, pois, diante de uma cultura peculiar, que livro algum contém e matéria nenhuma poderia ensinar. É uma cultura que se realiza e se adquire fazendo. Não se trata, porém, de um fazer qualquer: e sim de um fazer conjugado à reflexão. (OLIVEIRA, 2001, p.21).

Tal posicionamento nos mostra que o percurso para a construção de uma sociedade mais democrática, solidária e acolhedora é marcada pelo constante

aperfeiçoamento e comunhão, visto que nenhum sujeito se humaniza e se conscientiza isoladamente. Todos os seres humanos, segundo Paulo Freire (1977), são seres inacabados e, por isso mesmo, passíveis de mudanças individuais, sociais e históricas, e esta mudança se dá por meio da convivência coletiva com outros sujeitos sociais, em um processo permanente de ação e reflexão. No que se refere à emancipação do público da EJA, compreende-se que todo sujeito tem a possibilidade se conscientizar da sua importância para a construção dessa cultura solidária, pois

A tarefa plural em que solidariamente nos colocamos, dentro de nossas possibilidades, é ajudar a decifrar a singularidade de nosso caminho, transformando e democratizando as relações sociais onde as pessoas – sobretudo pessoas simples – se vêem reduzidas à condição de coisas, passíveis de serem relegadas, excluídas. (OLIVEIRA, 2001, p. 22).

Desse modo, o universo lúdico configura-se como um conjunto de possibilidades de fomento para a ação solidária que existe em cada sujeito no campo social, apesar desta encontrar-se atualmente esquecida e fragmentada. Para fomentar a ação solidária, é importante o incentivo à construção de um outro tipo de sociabilidade entre os sujeitos. Assim, a aprendizagem, por meio da ludicidade, possibilita que o ser humano resgate a sua participação na ação de aprender e de se solidarizar com o outro, compreendendo que o ato de aprender não se dá separadamente do contexto social. De tal modo, para a construção de práticas mais solidárias e humanizadas, é necessário o incentivo à contemplação, ao autoconhecimento dos sujeitos e ao despertar das potencialidades individuais para atuar no contexto cultural.

Tais sinalizações apontam para um processo repleto de esperança tão necessário para a atuação em um tipo de educação que busque humanizar o próprio ser humano. Porém, acredito que tal humanização precisa partir também da formação individual de cada sujeito, incentivando-o para a participação em instâncias sociais mais amplas. Tal educação adquire um caráter de formação integral, buscando reatar o ser humano consigo mesmo, com o outro e com a sociedade e, ao mesmo tempo, ressignificando as dimensões cognitivas,

emocionais, corporais e sociais de cada indivíduo. É nesse sentido que o próximo item tratará sobre a importância da ludicidade para a formação interna e integral do sujeito, como possibilidade de ampliação da compreensão da vida de forma plena e não-fragmentada. O item, a seguir, busca fazer um contraponto à atual sociedade e ao mercado de trabalho baseado na competitividade, discutido no capítulo anterior.