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Reflexões sobre Etnomatemática

Desde que D’Ambrósio apresentou suas ideias sobre Etnomatemática, diversos trabalhos no âmbito nacional e internacional, contribuíram para um

5 VERGANI, Tereza. Educação Etnomatemática: o que é? Ed. Flecha do Tempo. Natal, 2007.

aprofundamento teórico nesse campo de conhecimento, principalmente na expansão de grupos de pesquisas e em trabalhos de mestrado e doutorado.

Um dos primeiros trabalhos desenvolvidos no Brasil foi de Marcelo Borba (1987) com crianças da favela Vila Nogueira – São Quirino, em Campinas - SP, a primeira dissertação no campo da Etnomatemática. Outro importante trabalho desenvolvido no Brasil foi a dissertação de Nelson Carvalho (1991) com os indígenas Rikbaktsa do noroeste do Estado de Mato Grosso, intitulado

“Etnomatemática: o conhecimento matemático que se constrói na resistência cultural”.

Em se tratando de uma proposta epistemológica que seja uma referência ou uma teorização do que vem a ser Etnomatemática, buscamos por diversas pesquisas e seus autores, visando assim construir um conceito que atenda às necessidades propostas neste trabalho. Nessa perspectiva, para Monteiro (2006, p.

14), a Etnomatemática é “[...] uma proposta educacional e filosófica comprometida com os grupos menos favorecidos que nos desafia a buscar meios que nos revelem essa trama imposta pelos grupos dominantes para que possamos denunciá-la e, com isso, transformá-la”.

Enquanto que para Vergani (2007), a Etnomatemática tem um papel mais amplo e compreensivo, que promove o conhecimento mútuo entre diferentes grupos;

e, tem a convicção de que:

[...] a etnomatemática tem uma missão no mundo de hoje que transcende o interconhecimento das alteridades socioculturais. Cabe-lhes apontar um caminho de transformação crítica das nossas próprias comunidades ocidentais, solidariamente abertas a outras formas de refletir, de saber, de sentir e de agir (VERGANI, 2007, p. 9).

Dessa forma, as preocupações em dar visibilidade aos conhecimentos de um determinado grupo social não se limitam aos simples conhecimentos matemáticos, mas sim, como eles são gerados, sistematizados e difundidos, e “[...]

compreender essa matemática exige compreender muitos aspectos adjacentes a ela, e faz-se necessário buscar também compreender outros saberes que estão articulados com seus saberes” (SILVA, 2013, p. 24).

Não se pode olhar apenas para os aspectos que estão relacionados com a área de interesse do investigador, pois adjacente ao ato de contar, medir, entre outros aspectos estruturantes do modo de ser, fazer e conhecer, estes são suporte para a matemática daquele grupo social. Nessa mesma vertente, Knijnik et al. (2012,

p. 26) nos dizem que as práticas matemáticas são compreendidas não como transmissão de informações, “[...] mas, que estão constantemente reatualizando-se e adquirindo novos significados, ou seja, são produtos e produtores da cultura”.

Ainda nessa perspectiva, podemos dizer que todo ser humano desenvolve conhecimento e na interação com o outro gera a comunicação, novos significados são adquiridos, e nesse sentido, antes do conhecimento ocidental os povos já tinham o seu próprio conhecimento. O homem cria maneiras próprias para sua sobrevivência e transcendência, desenvolvendo um conjunto de artes ou técnicas para explicar fatos e fenômenos ligados ao seu ambiente natural e cultural (D’Ambrósio, 2009b).

Para representar o aspecto transdisciplinar da Etnomatemática, Silva (2013) faz uma representação semelhante a uma rosássea, com o propósito de nos dizer que Etnomatemática “[...] não é e nem pode ser caracterizada por apenas uma ou um conjunto limitado de disciplinas”, e que “[...] nenhum domínio é ou poderia ser absoluto em si mesmo”. Dessa forma, na intersecção das circunferências que compõem a rosássea, compreendemos o encontro dos diversos saberes que formalizam o conhecimento, ou seja, “[...] podemos dizer que nenhum saber ou conhecimento pode ser visto como um fenômeno explicável isoladamente” (SILVA, 2013, p. 27-28).

Figura 1: Pavimentação dinâmica de saberes e conhecimentos.

Fonte: Silva, 2013, p. 27.

Compreende-se que essa representação vai além de um conjunto de disciplinas, pois ao elencar diversos saberes fortalece a proposição de que todos os seres humanos têm um determinado saber e que esses saberes estão constituídos dentro das diversas culturas. As explicações do autor em relação à Etnomatemática atentam para:

Nela podemos perceber que suas pétalas possibilitam um caminho (diálogo) que nos leva às diferentes áreas de conhecimento, ou seja, nos possibilitam visitar outros universos epistemológicos conforme a nossa necessidade de entendimento de um determinado fenômeno. Se fosse necessário localizar o domínio propriamente dito da Etnomatemática nesse contexto, diríamos que ela está (ou se encontra) na fluidez do centro de intersecção das áreas de conhecimento (SILVA, 2013, p. 27).

Nessa perspectiva, foi realizada uma adaptação na “rosássea” organizada por Silva (2013, p. 27) com o propósito de apresentar de forma objetiva e dinâmica uma possível compreensão e entendimento sobre Etnomatemática. A essência da rosássea que o autor propõe se mantém para a adaptação. A interpretação para as reticências tem a mesma relação, são situações vivenciadas que não nos permite descrever, ou seja, “[...] áreas de domínios que não são explicitadas como merecem ser, como por exemplo, os cheiros, os movimentos, os olhares, o som dos movimentos, etc., e que são tão importantes quanto qualquer pétala da rosássea (SILVA, 2013, p. 27)”.

Nessa perspectiva, realizamos uma adaptação na rosássea de Silva (2023), em que há a presença de duas rosásseas que se complementam e ampliam a compreensão sobre Etnomatemática, sendo que “primeira rosássea” refere-se aos diversos saberes e fazeres dos mais diferentes grupos, e a “segunda rosássea”, às diversas culturas.

As duas rosásseas juntas em uma perspectiva de sobreposição ao se fundirem em uma única rosássea expressam o Programa Etnomatemática, que busca entender o saber/fazer matemático ao longo da história da humanidade e reconhecer outras formas de pensar matematicamente, tendo um olhar histórico, social, cognitivo e pedagógico, sobre os diversos saberes de diversas culturas (D’AMBRÓSIO, 2009b).

Nesse cenário, de diversos saberes e diversas culturas, estão os povos indígenas e as comunidades tradicionais não indígenas, como quilombolas, ribeirinhos, pescadores, que são exemplos de sociedades com as quais nós podemos aprender a respeito de sua cultura, adaptação, resistência em meio a

tantas desigualdades e preconceitos, mesmo assim buscaram formas de sobreviver e transcender. “A beleza da flor não está numa ou num conjunto de pétalas, mas sim no seu conjunto, inclusive no lugar onde ela se encontra” (SILVA, 2013, p. 27).

Figura 2: Rosásseas do conhecimento etnomatemático

Fonte: Elaborado pela autora, 2017.

Essa configuração, de fato ousada, é uma maneira de compreender a dinâmica da Etnomatemática que se preocupa com os saberes e fazeres das diversas culturas, no sentido de fortalecer e dar visibilidade aos diversos conhecimentos dos que estão à margem da sociedade. Há diversas situações que envolvem conhecimentos matemáticos formalizados, que não são valorizados e em muitos casos nem são mencionados.

Assim, a construção das rosásseas representa uma elucidação sobre as características marcantes da Etnomatemática em que os pontos de intersecção culminam nos diversos saberes e nas diversas culturas. Se pensarmos que elas podem ser sobrepostas, esses dois pontos se fundem, e nesse momento, configura-se o conceito configura-semelhante sobre Etnomatemática defendido por D’Ambrósio. Todos os saberes que estão na primeira rosássea fazem parte das diversas culturas que constituem a segunda rosássea, não há saber que não possa estar presente nas diferentes culturas.

O autor explica que esses diversos saberes das diversas culturas geram conhecimentos constituídos pela interação entre grupos comuns, os quais se comunicam através de códigos e símbolos organizando um conhecimento que é compartilhado pelo grupo (D’AMBRÓSIO, 2009b). A compreensão de cultura se dá no sentido de que diversas pessoas são organizadas em espaços, nos quais seus membros são semelhantes, permitindo uma vida em sociedade.

Podemos ter como exemplo as culturas indígenas, em que seus membros compactuam dos mesmos ideais, realizam tarefas semelhantes, têm um estilo de vida próprio, seus artefatos e mentefatos têm significados míticos para o seu grupo.

Consequentemente, o que é próprio das culturas indígenas não terá o mesmo significado e também não atingirá os objetivos para outras culturas.

Quando falamos das diversas culturas, vale ressaltar que cada cultura apresenta uma maneira própria para sua sobrevivência no tempo e no espaço em que estão inseridas, de forma que nenhuma é melhor ou pior que a outra, mais correta ou menos certa ou ainda, mais verdadeira do que a outra, ou seja, todas são singulares e únicas.

A associação, simbiótica, de conhecimentos compartilhados e de comportamentos compatibilizados constitui o que se chama cultura. A cultura se manifesta no complexo de saberes/fazeres, na comunicação, nos valores acordados por um grupo, uma comunidade ou um povo. Cultura é o que vai permitir a vida em sociedade (D’AMBRÓSIO, 2009b p. 59).

Nessa perspectiva, Silva (2013) apresenta uma compreensão sobre cultura que vai ao encontro das palavras descritas no fragmento anterior:

Cada cultura atribui significados, sentidos e destinos à existência do grupo, balizando as suas próprias regras e constituindo-se de verdades relativas aos atores sociais que nela aprenderam porque e como existir. Dessa forma, demonstram o quanto a subjetividade do olhar influenciado pelo contexto sociocultural é determinante na elaboração e sistematização dos saberes. Podemos dizer ainda que essa é uma característica que reflete uma concepção de saberes como produção coletiva, onde a experiência vivida e os valores culturais sistematizados se entrelaçam dando singularidade à forma como produzem tais saberes em cada momento da existência do grupo (SILVA, 2013, p. 31).

Ao longo da história da sociedade é possível perceber que os diferentes grupos sociais buscam seus espaços na tentativa de serem compreendidos. O que esses grupos almejam é que as diferentes formas de viver e de agir sejam respeitadas. É isso que a Etnomatemática tem como princípio, ou seja, dar voz e vez para que todos possam manifestar, revelar, expor suas diferenças e essas serem

valorizadas, fortalecidas e difundidas. Partindo desse pressuposto, D’Ambrósio (2009b) explica:

Todos os povos, pensados como a mesma espécie humana, e todas as culturas, pensadas como integrando uma civilização planetária, exigem um novo pensar e um novo relacionamento de saberes e de fazeres que muitas vezes se manifestam diferentemente (D’AMBRÓSIO,2009b, p.49).

É com esse intuito que a representação das rosásseas se fundamenta, ou seja, compreende-se que há diversos saberes que são constituídos nas diversas culturas e que todo esse conhecimento é gerado, sistematizado e difundido entre os diversos grupos sociais. O autor diz ainda:

Sempre existiram maneiras diferentes de explicações, de entendimentos, de lidar e conviver com a realidade. Mas agora graças aos novos meios de comunicação e de transporte, as diferenças serão notadas com maior evidência, criando necessidade de um comportamento que transcenda mesmo as novas formas culturais. Eventualmente o tão desejado livre arbítrio, próprio do ser [verbo] humano, poderá se manifestar num modelo de transculturalidade que permitirá a cada indivíduo atingir sua plenitude (D’AMBRÓSIO, 2009b, p. 62).

A partir dessa concepção, podemos considerar que o povo Rikbaktsa buscou outras maneiras de sobreviver e transcender em sua dinâmica cultural, devido às influências dos não indígenas pós-contato. Essas relações sociais construídas com o outro imprimiram novas necessidades, criando outros mecanismos de sobrevivência e transcendência. As mudanças que ocorreram no contexto indígena, nesse caso do povo Rikbaktsa, provêm da necessidade em valorizar o sujeito humano e sua identidade cultural, buscando compreender a sociedade de maneira global.