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1. Introdução

1.2 A Reforma Psiquiátrica no Brasil

Nos anos 1970 o Brasil foi palco de diversos embates políticos que compunham o cenário de redemocratização do país.

É neste cenário de redemocratização e luta contra a ditadura, relacionando a luta específica de direitos humanos para as vítimas da violência psiquiátrica com a violência do estado autocrático, que se constituiu o ator social mais importante no processo de reforma psiquiátrica. (AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2068)

Entretanto, é impossível falar da Reforma Psiquiátrica sem contextualizar o

“movimento sanitário” que tomou forças nessa época. Esse movimento defendia mudanças dos modelos de atenção e gestão nas condutas referentes à saúde, além de pleitear por saúde coletiva, pela equidade na oferta de serviços e pelo protagonismo dos usuários e dos trabalhadores dos serviços de saúde (BRASIL, 2005).

Embora a discussão de saúde mental estivesse circunscrita ao processo da reforma sanitária, a reformulação das práticas psiquiátricas se constituía em um processo amplo e complexo (AMARANTE e NUNES, 2018), assim trilhando sua própria história dentro de um “contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar” (BRASIL, 2005, p.01).

Com a crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico e com os esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, a Reforma Psiquiátrica no Brasil foi tomando forma e força dentro da sociedade brasileira (BRASIL, 2005, p.01). O primeiro momento do processo de participação social na reforma se deu com a formação do Movimento dos Trabalhadores em

Saúde Mental (MTSM) em 1978, que foi “primeiro sujeito coletivo com o propósito de reformulação da assistência psiquiátrica''. (AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2068).

[...] o MTSM se autocaracterizava por ser "múltiplo e plural", isto é, por articular não só profissionais de todas as categorias, mas simpatizantes não-técnicos. Talvez por inspiração das bandeiras de

"desinstitucionalização" do saber e das práticas psiquiátricas [...]

Nesse sentido, o MTSM prefigura, de certa forma, o formato organizacional que predominou no movimento de reforma sanitária (RAMOS, 2004, p. 1075)

Em 1986, em meio à crise financeira da Previdência Social e de mudanças políticas, muitos dos participantes do MTSM se envolveram em propostas de reformulação da assistência médica e de saúde, e nesse cenário foi convocada a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que revolucionou a forma de participação social na elaboração de políticas públicas. Após a 8ª Conferência, que havia temáticas brandas, foi decidido que seria importante convocar debates mais específicos, dentre eles a discussão de Saúde Mental (AMARANTE e NUNES, 2018).

Com a convocação do II Congresso Nacional do MTSM no ano de 1987 em Bauru, foi posto que não bastariam apenas as mudanças institucionais e a modernização de serviços. “Por essa razão, o MTSM retomou suas lutas originais de questionamento ao saber psiquiátrico e a institucionalização” (HEIDRICH, 2007, p.106-107). A partir desse momento, o movimento assumiu a denominação de Movimento Nacional da Luta Antimanicomial e adotou o lema “Por uma sociedade sem manicômios”.

“Por uma sociedade sem manicômios” revela duas transformações significativas no movimento. Uma, que diz respeito à sua constituição, na medida em que deixa de ser um coletivo de profissionais para se tornar um movimento social, não apenas com os próprios “loucos” e seus familiares, mas também com outros ativistas de direitos humanos. Outra, que se refere à sua imagem-objetivo, até então relativamente associada à melhoria do sistema, à luta contra a violência, a discriminação e segregação, mas não explicitamente pela extinção das instituições e concepções manicomiais. A partir de então se transforma em Movimento da Luta Antimanicomial (MLA). (AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2069).

Esse projeto de ruptura radical e de transformação da assistência em saúde mental estava afirmado na carta de fundação do movimento, o Manifesto de Bauru, que teve como uma das referências, a Reforma Psiquiátrica Italiana (ROSA, 2016).

Manifesto de Bauru

Um desafio radicalmente novo se coloca agora para o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Ao ocuparmos as ruas de Bauru, na primeira manifestação pública organizada no Brasil pela extinção dos manicômios, os 350 trabalhadores de saúde mental presentes ao II Congresso Nacional dão um passo adiante na história do Movimento, marcando um novo momento na luta contra a exclusão e a discriminação.

Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agente da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta racionalizar e modernizar os serviços nos quais trabalhamos.

O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada.

O manicômio é a expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.

Organizado em vários estados, o Movimento caminha agora para uma articulação nacional. Tal articulação buscará dar conta da Organização dos Trabalhadores em Saúde Mental, aliados efetiva e sistematicamente ao movimento popular e sindical.

Contra a mercantilização da doença!

Contra a mercantilização da doença; contra uma reforma sanitária privatizante e autoritária; por uma reforma sanitária democrática e popular; pela reforma agrária e urbana; pela organização livre e independente dos trabalhadores; pelo direito à sindicalização dos serviços públicos; pelo Dia Nacional de Luta Antimanicomial em 1988!

Por uma sociedade sem manicômios!

Bauru, dezembro de 1987 - II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental.

Com esse manifesto adotou-se a bandeira “Por uma sociedade sem Manicômios”, foi definido o dia 18 de maio como Dia Nacional da Luta Antimanicomial, e foi fundado o Movimento pela Luta Antimanicomial, composto por usuários dos serviços de saúde mental, seus familiares, trabalhadores, sindicatos,

conselhos profissionais da área de saúde, parlamentares, artistas e todos aqueles que apoiassem a luta (GRADELLA JR., 2012). O manifesto tinha como objetivo:

o fim dos hospitais psiquiátricos pelo gasto inútil de verbas públicas e forma de atenção ultrapassada, sem resolutividade, excludente e violenta. Sua proposta era a criação de serviços substitutivos em saúde mental, tais como: CAPS (Centro de Apoio Psicossocial), NAPS (Núcleo de Apoio Psicossocial), Hospital-dia, Ambulatórios, Unidades Básicas de Saúde com Equipes Mínimas (1 psiquiatra, 1 psicólogo, 1 assistente social), Emergência Psiquiátrica, Leitos Psiquiátricos em Hospital Geral, Enfermaria Psiquiátrica em Hospital Geral, Centro de Convivência, bem como outras formas de atenção com conteúdo não manicomial. A loucura concebida como desrazão, como erro, como periculosidade (Iluminismo) transforma-se para a noção de diferença, de produção de vida, de subjetividade.

(GRADELLA JR., p. 5, 2012)

Vale ressaltar ainda, que em 1987 é inaugurado no país o primeiro Centro de Assistência Psicossocial, o CAPS Itapeva, na cidade de São Paulo. Esse serviço cumpre a função de “oferecer cuidado intensivo a usuários com quadro psiquiátrico grave sem lançar mão da hospitalização ou do frágil modelo ambulatorial”

(AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2071) e surge como um dispositivo extra-hospitalar baseado nos conceitos de regionalização, hierarquização e integração (ROSA, 2016).

Também nesse período, o município de Santos é palco de uma importante intervenção da Secretaria Municipal de Saúde no hospital psiquiátrico Casa de Saúde Anchieta “em função das atrocidades, incluindo-se mortes, cometidas por pacientes lá internados” (YASUI, 2010, p. 47). Nesse contexto, são instaurados em Santos, os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), bem como residências para egressos do hospital, e uma cooperativa de trabalho (AMARANTE e NUNES, 2018).

A experiência do município de Santos passa a ser um marco no processo de Reforma Psiquiátrica brasileira. Trata-se da primeira demonstração, com grande repercussão, de que a Reforma Psiquiátrica, não sendo apenas uma retórica, era possível e exequível. (BRASIL, 2005, p. 2)

Outro grande marco para a discussão da saúde mental no Brasil foi a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, que assegurou a implementação do

Sistema Único de Saúde (SUS) tendo como seus princípios, a universalização, integralidade, descentralização e o controle social (BRASIL, 1988).

São os princípios do SUS que norteiam a reforma psiquiátrica.

Primeiro deles, a universalidade do atendimento. Todos têm direito ao atendimento pleno. O segundo princípio é a equanimidade, a ideia da justiça. Não podemos estigmatizar, deixar de fora ninguém que por algum motivo não esteja a nosso alcance. Em terceiro, a descentralização. Evitar a desterritorialização e ter serviços descentralizados cada vez mais perto das pessoas. Alas psiquiátricas em hospital geral, portas de entrada universal, integração programada na saúde da família e ver a internação, quando necessária, como proteção e acolhimento pessoal, e não como horas leito, inadequada à natureza do cuidado psiquiátrico.

O quarto princípio é a integralidade dos serviços e dos dispositivos para o paciente e suas necessidades. Da vacina ao transplante, do velho calmante aos neurolépticos de última geração, todos têm que estar à disposição do paciente, para que ele crescentemente possa sair do tratamento compulsório e caminhar para o voluntário.

O quinto é o controle social derivado de discussões e decisões de Congressos, Conferências e Conselhos protegendo os Conselhos de Saúde da manipulação política e da desinformação. (DELGADO, 2011, p. 4704)

Entretanto, foi especialmente com a sanção da Lei Federal nº 10.2162 (BRASIL, 2001), que redireciona a assistência psiquiátrica no país, defendendo o estabelecimento de uma rede de serviços comunitários substitutos aos hospitais psiquiátricos (ANDRADE e MALUF, 2017), que a reforma psiquiátrica é impulsionada e ganha um novo ritmo no país (BRASIL, 2015). Foi a partir dessa lei que os CAPS passaram a receber investimentos públicos massivos, com o intuito de extinguir progressivamente os manicômios do território nacional (BERNARDO e GARBIN, 2011).

Enquanto esse Projeto de Lei (PL) ainda tramitava, algumas outras leis foram aprovadas, dando destaque a lei que institui o Serviço de Residenciais Terapêuticos (BRASIL, 2000), que teve um grande impulsionamento com implantação do Programa de Volta Para Casa (AMARANTE e NUNES, 2018) - Lei nº 10.708 -3 (BRASIL, 2003).

3Lei Federal nº 10.708: Institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações

2Lei Federal nº 10.216: Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

Na história da atenção às pessoas com transtornos mentais no Brasil, por muito tempo o tratamento foi baseado no isolamento dos pacientes em hospitais psiquiátricos. Isso acabou gerando um grande contingente de pacientes afastados por longo tempo do convívio social e que precisam de especial apoio para sua reinserção na sociedade.

Visando promover e facilitar esse processo, o Ministério Da Saúde está lançando o Programa “De Volta para Casa”, que tem por objetivo a inserção social de pessoas acometidas de transtornos mentais, incentivando a organização de uma rede ampla e diversificada de recursos assistenciais e de cuidados. (BRASIL, 2003, p.1)

Amarante e Nunes (2018) ainda pontuam alguns outros marcos fundamentais das políticas de saúde mental do SUS, como a redefinição dos CAPS levando em conta sua organização, o porte e a especificidade da clientela atendida (Portaria/GM nº 336, de 19/02 de 2002), passando a existir CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi (infantil ou infanto-juvenil) e CAPSad (álcool e drogas). Em 2008, através da Portaria 154, foi firmado o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) “com o objetivo de propiciar ‘apoio matricial’ às equipes de Saúde da Família, cumprindo um importante papel de dar suporte tanto técnico quanto institucional na atenção básica”

(AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2072). Já em 2011 foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (Portaria GM/ MS nº 3.088 de 23/12 de 2011), dentre os objetivos principais estavam: o aumento ao acesso à atenção psicossocial por parte da população, bem como disponibilização dos pontos de atenção para pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas e suas famílias, e por fim, a garantia “da articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências”

(AMARANTE e NUNES, 2018, p. 2072).

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