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Representante dos Latifundiários e a continuidade da Ditadura: José Sarney

Fernando Collor de Mello e Itamar Franco dá-se no sentido de se demonstrar como o Movimento estruturou suas representações sobre tais presidentes e como se posicionou diante das ações de seus respectivos governos. Nesse sentido, busca-se evidenciar que, anteriormente a FHC e a Lula, a Direção Nacional do MST, por meio do Jornal Sem Terra, mantinha uma

perspectiva continuísta em seu discurso, sobretudo, face às representações sobre os presidentes referidos.

127 Em momento anterior ao mandato de José Sarney, no período denominado transição

democrática307, especialmente entre os anos de 1983 e 1984, o país vivia expectativas quanto

aos rumos políticos que iria tomar. Nesse contexto, aconteceu um evento político e civil que despertou clamor em grande parte da sociedade brasileira – o movimento Diretas Já. Surgiu, inicialmente, a partir de partidos políticos e organizações sindicais como o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Partido Democrático Trabalhista (PDT), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), dentre outras organizações, e se transformou em um evento de repercussão nacional, conquistando milhões de adeptos nas manifestações.

Conforme Boris Fausto, o movimento Diretas Já expressava, “ao mesmo tempo, a vitalidade da manifestação popular e a dificuldade dos partidos para exprimir reinvindicações”308. As manifestações, por meio de comícios, passeatas e discussões na

sociedade sobre o direito da população escolher seu presidente e outros governantes, de acordo com Fausto, gerou um “entusiasmo raramente visto no país”309. Lucilia de Almeida

Neves Delgado, acredita que o Diretas Já foi o maior movimento cívico-popular da história republicana do Brasil. “O fervilhar das ruas traduziu uma forte simbiose entre bandeira política democrática e aspiração coletiva, que transformou o ano de 1984 em marco da única campanha popular brasileira”310. Em sua concepção, foi um movimento suprapartidário que

reuniu os partidos de oposição ao Regime Militar (que estava no poder há 20 anos), em torno das eleições diretas para presidente. Nessa direção, o Diretas Já teve como características principais a heterogeneidade e a despersonalização.

Nas manifestações, as palavras de ordem mais evocadas eram: “Presidente, quem escolhe é a gente. Eleições Diretas Já”; “Eu quero votar pra presidente”; “Um, dois, três, quatro, cinco, mil: queremos eleger o presidente do Brasil”; “Sem eleições diretas não haverá democracia”. Com o decorrer dos acontecimentos, evidenciava-se que a essência do Diretas

307 Sobre o período de transição democrática no Brasil, ver: STEPAN, Alfred (Org.). Democratizando o Brasil.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; VELASCO E CRUZ, S; SORJ, B; ALMEIDA, M. H. T. (Orgs.). Sociedade e

Política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983; KINZO, Maria D’Alva G. A Democratização Brasileira: um balanço sobre o processo político desde a transição. São Paulo em Perspectiva. 15(4), 2001. p. 3-12; MOISÉS, José Álvaro; GUILHON ALBUQUERQUE, José Augusto (Orgs.). Dilemas da Consolidação da

Democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Arão (Orgs.). Revolução e

Democracia (1964...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem

Incompleta: a experiência brasileira. São Paulo: Editora SENAC, 2000; FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de A. Neves (Orgs.). O Brasil Republicano. O Tempo da Ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

308 FAUSTO, B., História Concisa do Brasil, p. 282. 309 FAUSTO, B., História do Brasil, p. 433.

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não estava só nas eleições diretas para presidente, mas também no retorno do estado democrático no Brasil, com as liberdades civis e políticas. Enfim, as manifestações revelavam um descontentamento geral em diversos âmbitos e setores da vida dos sujeitos.

No que tange ainda às Diretas Já, Vanderlei Elias Nery também tem interpretação interessante. Ao analisar os textos de Lucilia de Almeida Neves Delgado311, de Alberto Tosi

Rodrigues312, e o de Domingos Leonelli e Dante de Oliveira313, o autor reconhece que as três

obras são significativas para o entendimento do Diretas Já. As três abordam o como esse movimento ampliou os espaços democráticos no país na década de 1980. Todavia, Nery destaca que essas obras foram escritas a partir de uma visão romântica da política. Isso é revelado na interpretação de que o objetivo central era a conquista da democracia, que “aparece como um valor em si mesmo, como um valor universal, sem que houvesse, portanto, questionamento quanto às formas de organização da campanha, à participação das classes sociais no processo, e os diferentes objetivos dos diferentes segmentos participantes”314.

Nery analisa esse momento tentando demonstrar que havia outros interesses, sobretudo, partidários ligados às Diretas Já. Em sua visão, as classes dominantes e governantes nos estados também participaram dessas manifestações devido às crises econômicas e políticas da época. Nesse processo, de acordo com Nery,

[...] as classes dominantes brasileiras foram bastante eficientes, pois conseguiram dirigir um movimento de massas, que teve a presença de muitos milhões de pessoas nas ruas e praças, dentro de limites suficientemente estreitos para preservarem inteiramente os dispositivos de dominação capitalista na formação social brasileira. Mesmo um aparelho ideológico notoriamente identificado com a ditadura militar, como o principal grupo de comunicações do país, ficou incólume durante as manifestações populares315.

O MST, que nascia no início de 1984, também apoiou o movimento Diretas Já; por meio do Jornal Sem Terra, isso ficou evidente. Em abril de 1984, com a não aprovação pelo

311 DELGADO, Lúcilia de Almeida Neves. Diretas-Já: vozes das cidades. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel

Aarão (Orgs.). Revolução e Democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 409-427. Publicado na coletânea que versa sobres as esquerdas no Brasil pós 1964.

312 RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na garganta. São Paulo: Perseu Abramo, 2003. Livro

elaborado a partir da Dissertação de Mestrado defendida pelo autor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no ano de 1993.

313 LEONELLI, Domingos; OLIVEIRA, Dante de. Diretas Já: 15 meses que abalaram a ditadura. Rio de Janeiro:

Record, 2004. Os autores eram deputados federais pelo PMDB no período da Diretas Já, sendo o segundo o propositor da Emenda Constitucional que previa eleições diretas para Presidente da República em 1984.

314 NERY, V. E., Diretas Já: em busca pela democracia e seus limites, p. 114. 315 NERY, V. E., Diretas Já: em busca pela democracia e seus limites, p. 118.

129 Congresso da Emenda Constitucional Dante de Oliveira, que pretendia restabelecer as eleições diretas para presidente da República, o MST destacava no editorial de seu jornal que o “Brasil foi traído” e que “uma minoria de parlamentares covardes e submissos frustraram a esperança de milhões de brasileiros que querem decidir o seu destino”316. A emenda recebeu

298 votos a favor, 65 contra, 2 abstenções. Estiveram ausentes 113 parlamentares, não sendo aprovada pela diferença de 22 votos. Ao final do editorial, o Movimento fez questão de publicar os nomes dos parlamentares e o de seus respectivos partidos que votaram contra as eleições diretas, os dos que estivem ausentes e o dos que se abstiveram de votar.

Naquele contexto, havia distância entre as manifestações nas ruas e o Congresso que, em sua maioria, era composto pelo Partido Democrático Social (PDS), antiga Arena317, ligada

aos militares. Isto é, o Congresso era conservador demais para aprovar uma eleição direta naquele momento. O processo de distensão lenta, gradual e segura, proposto pelo militar e presidente Ernesto Geisel (1974-1979), que visava a conduzir o país ao estado de direito, excluindo, entretanto, os grupos radicais e movimentos populares de participarem do processo, foi seguido pelos parlamentares que compunham o Congresso Nacional.

Após a derrota da emenda Dante de Oliveira, pairavam expectativas quanto ao presidente a ser eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral. Entre negociações e interesses políticos dos partidos políticos e parlamentares, elegeu-se Tancredo Neves como presidente do Brasil, tendo como vice José Sarney. Na ocasião, Tancredo Neves e José Sarney venceram Paulo Maluf e Flávio Portela Marcílio por 480 votos a 180. Entretanto, Tancredo não chegou a tomar posse do cargo de presidente, haja vista que ficou doente e, em seguida, faleceu em 21 de abril de 1985.

Com esse fato, Sarney ocupou o cargo de presidente da República exercendo o mandato até o ano de 1989, quando houve a primeira eleição direta para presidente, após o Golpe Militar de 1964. Vale destacar que, em pleno ano de 2014, Sarney ainda continua no cenário político nacional318. Em seus 60 anos de política, além de ter sido presidente do

316 O Brasil traído. Jornal Sem Terra. Porto Alegre, abril de 1984, ano III, n. 35. p. 2.

317 Aliança Renovadora Nacional – A Arena foi um partido político criado em 1965 com a finalidade sustentar a

política do Regime Militar, instituído a partir do Golpe de 1964. Seu perfil político era predominantemente conservador. Após a restauração do multipartidarismo no Brasil, o partido Arena foi reconfigurado com o nome

Partido Democrático Social (PDS).

318 No ano de 2014, Sarney anunciou que não iria se candidatar para concorrer à reeleição ao Senado pelo estado

do Amapá. Na ocasião, justificou sua ausência nas eleições por causa da idade avançada e, principalmente, para cuidar de sua esposa que passava por problemas de saúde. Em uma entrevista a rádio Diário FM de Macapá/AP, Sarney disse que “desistiu da disputa pela reeleição”, mas que não estava “aposentado”, assim enfatizou: “aposentadoria nada, eu não me aposento nunca”. Ver a seguinte matéria: “Aposentadoria nada, eu não me aposento nunca”, diz Sarney. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/06/1475776- aposentadoria-nada-eu-nao-me-aposento-nunca-diz-sarney.shtml. Acesso em: 29/07/2014, às 17h35min.

130 Brasil, exerceu três mandatos de Deputado Federal (1955 a 1966); governou o estado do Maranhão (1966-1971), estado em que fora também senador por dois mandatos consecutivos (1971-1979 / 1979-1985); e foi eleito senador pelo estado do Amapá por três mandados consecutivos (1991-1998 / 1998-2006 / 2006-2015). A partir da sua longevidade na política nacional, é possível pensar que Sarney foi e continua sendo a expressão singular da política nacional: a continuidade dos mesmos rostos, famílias e projetos (quando há).

Quanto à constituição do governo da Nova República e o novo presidente do país, o MST evidenciou que seria oposição e lutaria, organizadamente, visando à conquista da reforma agrária e à transformação social. Sarney não representava credibilidade e confiança para o Movimento. Por mais que o Brasil retomasse seu caminho democrático, a Nova

República era visualizada ainda como a face do arcaico, sobretudo, pelos parlamentares que compunham o Congresso Nacional. Ou, como dissera Capelato, a Nova República que nascia era “na mesma moeda, a outra face da ‘Velha República’”319.

Ao ponderar sobre os “novos ares em Brasília”, no editorial de maio de 1985, o MST criticava a morosidade e a falta de vontade política dos parlamentares para com a reforma agrária. Assim, enfatizava que o país precisava de “mudanças imediatas e profundas na estrutura fundiária, para acabar de uma vez por todas com este mal que se reflete em toda sociedade brasileira”320. No período em que Sarney foi presidente do Brasil, além das

denúncias de violência contra os trabalhadores sem-terra, das críticas ao governo e da convocação dos integrantes do Movimento para se organizarem e lutarem pela reforma agrária, dois grandes temas permearam os editoriais do Jornal Sem Terra. O primeiro se referia à elaboração e aprovação do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA); e o segundo, à Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou a nova Constituição do Brasil.

No início do governo Sarney, havia expectativas dos movimentos sociais do campo quanto ao processo de reforma agrária no país. Isso ficou evidenciado no início de 1985, quando foi elaborada proposta do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) pelo Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (MIRAD/INCRA), sob a coordenação de José Gomes da Silva e supervisão do ministro da Reforma Agrária, Nelson Ribeiro. Na elaboração desse Plano, houve o envolvimento de 17 Comissões Temáticas, as quais envolveram 102 especialistas nos mais variados assuntos que diziam respeito à reforma agrária. A primeira versão da proposta do PNRA foi tornada pública no dia 26 de maio de 1985, no IV Congresso Nacional dos

319 CAPELATO, M. H., Imprensa e História do Brasil. p. 57.

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Trabalhadores Rurais, promovido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), em Brasília, o qual contou com a presença do presidente Sarney, de Nelson Ribeiro e de José Gomes da Silva.

Assim que a proposta do PNRA foi lançada, em sua primeira versão, efetuada por José Gomes da Silva, prevendo assentar 1 milhão e 400 mil famílias, via desapropriação por interesse público, e restringindo a reforma agrária aos projetos de colonização321, o MST logo

a apoiou. Em junho de 1985, o Movimento tratou de explicar aos leitores do jornal os benefícios que a reforma agrária proporcionaria ao Brasil e às famílias que lutavam por terra para trabalhar. Porque Reforma Agrária?, era o título do editorial.

O interessante é que, ao mesmo tempo em que apoiava, o Movimento dava a entender que estava cético quanto às intenções de Sarney. Assim, dizia: “Alguém consegue imaginar o latifundiário José Sarney contra a propriedade privada da terra?”322. Nota-se que Sarney era

representado pelo MST como um latifundiário. Ou seja, como adversário, inimigo. E, sendo um latifundiário, Sarney também representava o capitalismo no campo, a violência, a expropriação e exploração dos trabalhadores rurais. Os valores e ideais de justiça social e a concepção da reforma agrária enquanto ponto fundamental para transformação do país, conforme as representações do Movimento, não estavam agregados ao presidente Sarney.

No editorial de julho de 1985, o Movimento trazia reflexões sobre o PNRA, enfatizando que sua aprovação não seria fácil, devido às influências dos grandes proprietários de terras no Congresso Nacional. Contudo, a aprovação do PNRA pelo Congresso era vista como a esperança de fazer avançar a reforma agrária323. E essa conquista dependeria também

dos trabalhadores rurais sem-terra. Desse modo, o Movimento destacava: Nós apoiamos o

Plano do governo:

Porque desapropriar latifúndios é um primeiro passo para mostrar para toda a sociedade, sobretudo na cidade, as injustiças que existem no campo.

Porque vamos utilizar essa pequena distribuição de terra como uma forma dos companheiros se animarem, e melhor se organizarem para conquistar mais terras.

Porque desapropriar alguma coisa já é melhor do que não querer desapropriar nada324.

321 COCA, E. L. de F; FERNANDES, B. M., Uma Discussão Sobre o Conceito de Reforma Agrária: teoria,

instituições e políticas de governo, p. 47.

322 Porque Reforma Agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1985, ano IV, n. 44, p. 2. 323 Depende de nós. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1985, ano IV, n. 45, p. 2.

132 Naquele momento, o MST expressava que as terras desapropriadas pelo PNRA seriam um ânimo para os trabalhadores sem-terra, no sentido de eles se motivarem para se organizar. Entretanto, o Plano era visualizado como uma “pequena distribuição de terra”. Isto é, a reforma agrária pretendida pela organização do Movimento estava longe de ser aquilo que havia sido proposto pelo PNRA. E, apoiar o PNRA não significava apoiar o governo, tampouco o presidente Sarney. Como justificativa para não apoiar o governo, o MST ressaltava: “Apoiar o Plano não significa apoiar o governo! Pois sabemos muito bem que o governo da Aliança Democrática não é um governo dos trabalhadores, do povo. Mas um governo dos ricos, que substituiu os militares, antes que a crise aumentasse mais ainda”325.

O discurso do Movimento era enfático quanto à sua organização ser oposição declarada ao governo e propiciava indícios significativos para a reflexão em torno das representações sobre o presidente Sarney. E quanto ao PNRA? O MST ficara satisfeito com a

versão final do Plano que apoiou?

Com o PNRA e com as manifestações dos movimentos sociais do campo, a reforma agrária foi recolocada na ordem do dia. Houve reação das diversas entidades representativas dos latifundiários, como, por exemplo, da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), da Sociedade Rural Brasileira (SRC) e da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). Para além da oposição dessas entidades, os grandes proprietários de terras se organizaram e criaram a União Democrática Ruralista (UDR) que, para Feliciano, se firmava como um movimento contra a implantação do PNRA, além de se caracterizar “como uma força que usava de métodos violentos para conter as manifestações dos movimentos sociais que reivindicavam a democratização do acesso a terra”326. Os grupos citados tinham

representatividade política e eram contrários a qualquer mudança na estrutura agrária do país. Nessa conjuntura, com a criação e expansão do MST de um lado, a criação da UDR de outro e, no centro, o PNRA, Coletti destaca que politizou-se a luta pela terra no país, em especial, por dois aspectos:

325 Porque apoiamos o Plano do Governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1985, ano IV, n. 45, p. 2. 326 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 41. A UDR, em meados

de 1980, nasceu, sobretudo, a partir da criação do PNRA e do surgimento do MST. A UDR era uma entidade classista, voltada a defender os interesses dos grandes proprietários de terras. Isto é, a maior bandeira de luta da UDR era a defesa intransigente do direito da propriedade absoluta da terra, e da livre iniciativa de mercado com relação às terras. De acordo com Coletti, os principais inimigos a serem combatidos pela UDR eram “os sem- terra e a Igreja Católica progressista, além de seus dirigentes tecerem, a cada oportunidade surgida, duras críticas ao governo, ao Estado e às esquerdas em geral” (2005, p. 104). Nos discursos dos representantes da UDR, no Brasil não existia o latifúndio improdutivo; a grilagem de terras; o privilégio de incentivos fiscais e créditos aos grandes proprietários de terras pelo Estado; a violência frente aos trabalhadores rurais; dentre outras questões.

133 1º) as várias instâncias do aparelho de Estado – executivo, legislativo e judiciário – não poderiam mais ignorar a existência de uma questão agrária no Brasil, geradora de conflitos e de violência no campo, efetivamente não- resolvida até aquele momento; 2º) os proprietários de terra, de um lado, e os sem-terra, de outro, apresentavam-se na cena política como verdadeiras forças sociais, os primeiros constituindo-se em fração autônoma de classe, e os segundos, como classe social distinta, à medida que extrapolavam as suas existências econômicas e colocavam-se em confronto nos níveis político e ideológico327.

Nesse contexto, é preciso considerar que os embates e discussões sobre o PNRA travavam-se no Congresso Federal, espaço em que a bancada ruralista era amplamente representada e tinha muito peso e poder político. Até a sua aprovação, em outubro de 1985, o PNRA sofreu muitas alterações ao longo de suas 12 versões328. A última versão estava

radicalmente mudada em relação à proposta original, frustrando as expectativas e demandas dos trabalhadores. Para Lerrer, o Plano aprovado foi “transfigurado”, tornando “insustentável politicamente a permanência de José Gomes da Silva e seus colaboradores”329, que

elaboraram o PNRA original, no INCRA.

O PNRA aprovado continha um discurso nas entrelinhas de que o Estado não iria realizar a reforma agrária desejada pelos movimentos sociais. A reforma agrária, a partir do PNRA, passou a se constituir mais em “um ato voluntário dos proprietários rurais”330 do que

em uma ação política do Estado. Esse Plano não teve êxito e nem conseguiu apoio necessário entre os parlamentares no Congresso Nacional331.

O MST que, a princípio, apoiou o Plano, em setembro de 1985, enfatizava que o governo da Nova República não tinha vontade política para fazer a reforma agrária. Sarney e os ruralistas no Congresso “enrolaram” os trabalhadores, dizia o MST. As modificações no Plano original evidenciavam que a proposta de reforma agrária era para “atender aos pedidos dos empresários e latifundiários”332. Com a assinatura do Decreto nº 91.766, de 10 de Outubro

de 1985, pelo presidente José Sarney, que aprovava o PNRA, o Movimento manifestou-se dizendo que o decreto era, na verdade, “preparado pelos latifundiários, com o aval dos militares”. Para o MST, o Plano “de tão ruim, tira o pouco de bom que havia no Estatuto da

327 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 79. 328 SILVA, J. G. da., Caindo por Terra: crises da reforma agrária na Nova República, p. 62.

329 LERRER, D. F., Trajetórias de Militantes Sulistas: nacionalização e modernidade do MST, p. 66. 330 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 42.

331 José Gomes da Silva, em seu livro A Reforma Agrária na Virada do Milênio (1996), discutiu de forma

significativa as problemáticas que envolveram o PNRA no Governo Sarney.