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N

ÃO GOSTO DESTA HISTÓRIA  DIRÁ ALGUÉM, QUE SERÁ muito jovem.

— Nem eu — será a resposta, vinda de alguém muito mais velho.

Haverá um momento silencioso, no qual o jovem irá observar o rosto do velho com cuidado, tentando buscar um argumento vencedor. Mas não conseguirá, porque estará furioso e, como todos os jovens, não será capaz de esconder isto. Já o velho, como todos os velhos, conseguirá esconder muito bem o que sente. Ele apenas mirará o jovem com um sorriso bom. O jovem achará isto por demais irritante.

— Então por que está me contando?

Haverá uma tragada longa de um cachimbo perfumado. Eles estarão em um bosque. — Porque você precisa saber.

Existirá mais silêncio. O jovem tentará outro ângulo na discussão. — Isto não pode ter acontecido. São coincidências demais. — Você acha? — o velho sorrirá, com a boca torta pelo cachimbo.

— Claro. Eu posso aceitar que eles tenham encontrado o samurai por acaso, mas agora eles acharam a pista do fugitivo por sorte! E está tentando me convencer de que Ashlen ganhou o jogo de Wyrt sem trapacear!

Mais uma tragada longa.

— As pessoas se encontram na estrada. E conhecem umas às outras, por acaso; eu conheci sua avó por meio de um alfaiate, em cuja loja entrei por acaso. E muitos ganham jogos sem trapacear.

O jovem irá se exasperar.

— Mas não tudo isso com só uma pessoa! — Eram nove pessoas.

E o velho estará rindo por dentro, e o jovem começará algumas perguntas, antes de desistir e sentar de novo.

— Foi Nimb? Por isso todas essas coincidências? — Talvez tenham sido todos os deuses.

— Deve ter sido Nimb. É muita sorte. — Ou azar.

A raiva do jovem já terá se dissipado, como toda raiva de juventude.

— Mas ainda me cheira a história mal-contada — ele dirá, mordendo uma maçã. — Explicações pelos deuses são muito simples.

— Você acha? — dirá o velho, reacendendo o cachimbo, que havia se apagado. — Pois eu acho elas as mais complicadas de todas.

E o jovem comerá a maçã em silêncio. O velho não deveria permitir que ele fi zesse isso, já que a mãe de seu companheiro (sua fi lha) dirá que está estragando o apetite do menino. Com um suspiro, o velho levantará, os ossos rangendo.

— Devemos voltar para casa.

— Espere! — o jovem soltará o caroço de maçã e dará um salto. — Já sei porque não gosto desta história: é muito triste.

O velho apenas murmurará, concordando.

— Conte-me uma história alegre, engraçada, como a de Sandro, Lisandra e do Paladino. O rosto do velho fi cará triste por um momento. A história de que o menino fala é da infância do velho. A história de Vallen e Ellisa e o fugitivo é ainda mais antiga, de antes de ele nascer.

— Você a acha engraçada? É uma história sobre uma jovem muito boa, que foi condenada e presa por crimes que foi obrigada a cometer. É a história de um homem muito bom, que ganhou um poder que nunca quis, e acabou sendo morto por isso. É uma história de pessoas boas que morrem, e matam, e se sacrificam. Eu acho uma história muito triste.

— É — dirá o jovem. — Acho que você tem razão. Mas o bardo que me contou fazia parecer tão alegre!

— Ele deve ser um contador de histórias bem melhor do que eu — dirá o velho. Os dois voltarão para casa. O cheiro de comida já estará espesso no ar.

Isso ainda não aconteceu. Na verdade, demorará ainda muitos anos para ocorrer. Mas a Fênix viu isso no fogo, como tudo vê em seu Reino de Chamas.

A Fênix abriu as asas, gloriosa, e por um momento tudo ardeu ainda mais quente, mais brilhante e intenso e cheio de vida. Então a Fênix morreu.

Nasceu de novo, nova e forte, e o fogo, que era seu súdito, sua criação, seu amante, rejubilou-se na vida renovada. A Fênix ergueu a cabeça, olhando com orgulho seu domínio,

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Ressurreição e Profecia

onde o fogo ardia livre, e infl ou o peito, poderosa porque nunca morria, e trazia de volta aqueles que a serviam, e porque via o futuro, e para ela tudo era glória.

A Fênix era Thyatis, o Deus da Ressurreição e da Profecia. Não havia nada mais glorioso do que ele: o conquistador da morte, o guerreiro que renascia, o brilhante e intocável, o que sempre retornava. Mas Thyatis, a Fênix, tinha um ponto turvo em sua visão que englobava os séculos.

Th yatis vira no fogo uma conversa entre um velho e seu neto. Uma conversa que ocorreria dali a muitas décadas. Mas Th yatis não sabia do que os dois falavam. E isto irava Th yatis, a Fênix, e sua ira era terrível como era magnífi ca. Contudo, Th yatis vencia a morte e via o destino, e apenas teve de forçar sua visão por mais anos, mais séculos, até que a verdade enfi m aparecesse.

Os súditos do Reino de Chamas encolheram-se de pavor, pois não sabiam se a Fênix gargalhava ou rugia. Seu fogo queimava com a força das emoções intensas (e não havia emoções mais intensas do que as de Th yatis), e feria os súditos ao mesmo tempo que os levava ao êxtase. Montanhas despencaram, o céu chorou lava e a terra engoliu milhares enquanto Th yatis se entregava às suas paixões. Com um menear da cabeça fl amejante, tudo o que havia perecido no Reino da Fênix nasceu de novo, mais lindo e intenso, e os que não haviam morrido invejaram os que haviam.

E a Fênix fez ser algo que não era fogo: um pequeno jarro de tinta verde, e uma gota de tinta vermelha. Deixou a gota vermelha cair no verde, e observou enquanto padrões cada vez mais intrincados se formavam na cópula entre as duas cores.

(Em outra parte do Reino de Chamas, os artífi ces de tudo que se construía lá, anões com corpo de bronze e juba fl amejante, aguardavam por algum outro capricho de seu deus ardente, uma outra oportunidade de criar algo que o servisse e agradasse).

Mas a Fênix não desejou mais nada. E, quando os padrões de verde e vermelho eram incompreensivelmente complexos, como o desenho de um louco, o fogo se abriu, e queimou sem fazer luz, e gerou borboletas ao invés de fumaça, e respingos de água ao invés de faíscas.

No meio do fogo estava uma fi gura pequena e terrível. Tinha uma cartola engraçada e uns olhos de nada, e sapatos que já haviam sido jovens águias. Perto dele, o fogo gerava ovos e dos ovos nasciam cães, e os cães cuspiam trovão. A Fênix queimou mais forte para impressionar o recém-chegado.

— Bem-vindo, Lorde do Caos — disse Th yatis, a Fênix.

— Não me dê as boas-vindas, Imortal — Nimb sorriu, dividindo o rosto em dois. — Sempre estou aqui. Basta olhar em volta.

Th yatis bateu as asas fl amejantes e empertigou-se.

— Por que fez o ritual para me chamar aqui? — perguntou Nimb.

— Minha visão está turva — foi a resposta vinda do bico terrível. — Não posso ver um grupo de pessoas por muito tempo, inclusive um de meus guerreiros. Mas posso ver

mais à frente, e saber que isso é obra sua, Lorde Louco. Por que você imbui minha visão com seu caos?

Nimb, o Deus do Caos, deu uma gargalhada que se transformou em amantes.

— Ora, é impossível esconder algo da Fênix Flamejante! Se vê mais à frente, então vê o que vai ocorrer.

— A tempestade — disse Th yatis, ardendo seus olhos de brasa.

— A tempestade de Glórienn. E nós queremos que ela aconteça, caro Imortal. E não podemos permitir que sua visão alarme os outros. Não queremos que alguém a impeça de ocorrer.

Novamente a Fênix fez seu som aterrador, que ninguém sabia se era riso ou rugido. Milhares pereceram no Reino de Chamas, apenas para, exultantes, nascerem de novo, em um tempo melhor. O futuro era sempre melhor.

— Ninguém pode impedir a tempestade, Nimb. Que tolice. — Não, agora não podem. Por minha causa.

— Nunca puderam! — a voz de Th yatis fez ruir um continente. — A tempestade irá ocorrer porque eu vi. Eu vejo o futuro, Nimb. E o futuro é inexorável.

— Não — Nimb gritou um sussurro. — Há a mudança, mudança sempre, e o caos imprevisível. Se uma borboleta bater as asas em Ramnor, pode haver um furacão em Lamnor. Ou não.

— Apenas um furacão que já esteja escrito — o fogo tinha uma certeza passional, mas concreta. — Não há porque tentar impedir o que irá ocorrer, Nimb. E a tempestade irá ocorrer. Tudo que irá um dia ocorrer já está determinado.

— Esta é a maneira de pensar dos idiotas — sibilou o Louco.

— Isto não é maneira de pensar. É a realidade. Posso lhe mostrar. Deseja ver o futuro, Nimb?

Acuado, Nimb não disse nada: apenas transformou cinco milhões de almas do Reino de Chamas em cadeiras. Fez as cadeiras nevarem.

— Diga-me, Lorde Louco! — a Fênix exultou. — Deseja ver o futuro? Provar que eu estou errado? Venha vê-lo!

Mas Nimb não fez nada. Apenas disse: — Não — com a tristeza de um suicida.

— Você é tolo, Nimb. Acha que está em guerra com Khalmyr, mas a guerra não existe. Existe o destino. Se quiser chamar isso de Ordem, então só há a Ordem. Não há o Caos: há os que não conseguem enxergar o padrão intrincado da Ordem e do Destino.

— Irá pagar por isso, Th yatis — disse Nimb, com a raiva de um psicótico.

— Então guarde suas forças para a vingança, Nimb! — Th yatis abriu as asas e foi magnífi co, poderoso e imortal. — Não é mais preciso turvar minha visão, pois ela alcança tudo. Esteja forte quando enfrentar o Destino que Não Morre, Nimb!

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Ressurreição e Profecia

E Nimb chiou com maldade, e voltou para dentro do fogo e, em um instante, estava de novo em seu Reino de Caos, onde esqueceu da humilhação, como um amnésico.

Th yatis sobrevoou vitorioso o Reino de Chamas. Em Arton, por sua dádiva magnífi ca, muitos voltavam da morte naquele instante. Ele era o rei daquele lugar, e o guerreiro mais poderoso de todos os lugares, aquele que nem a morte podia vencer. E Th yatis não temia a tempestade, pois a morte que ela trouxesse, ele desfaria.

Mas estava errado.

Daquela vez, haveria morte que nem Th yatis podia vencer. Morte além da morte, fogo que queimaria o fogo. A tempestade mataria a Vida, mataria a Ressurreição e mataria a Morte.

E

, POR UMA RAZÃO OU POR OUTRA, ESTAVAM APENAS ELLISA Th orn e Rufus Domat, afastados de todos os outros. Como sempre quando isso ocorria, o coração de Rufus era um tambor de guerra. Na beira da estrada, no meio da viagem até a capital; à volta, árvores melancólicas. O céu era preto e enorme, esburacado com estrelas azuis.

— Acha que conseguiremos pegá-lo? — Rufus tentou começar uma conversa, mas logo achou estúpido o que havia dito.

Ellisa voltou-se do que fazia (oleando cuidadosamente a corda de seu arco) e apenas dirigiu-lhe um olhar longo e pesado. Em seguida, virou-se de novo à tarefa.

Rufus Domat amaldiçoou-se mais uma vez e rabiscou mais algumas linhas no pergaminho onde trabalhava. Olhou para o que havia escrito, pensou que estava errado e amassou o pergaminho.

— Você não é mais capaz de fazer magias, não é? — disse Ellisa de repente.

Rufus levantou os olhos, mas ela não tinha se virado. Permanecia concentrada no arco. — Algumas — balbuciou o mago.

Ela deu uma risada seca.

Ele tentou falar mais alguma coisa, mas, depois de algumas respirações desperdiçadas, desistiu e voltou ao trabalho.

— Quantas? — interrompeu Ellisa de novo.

— Três — ligeiro em responder. Em seguida: — Na verdade só duas.

— Duas que você consegue fazer sem olhar na droga do seu livro? — Ellisa agora testava a corda do arco.

— Sim.

— São duas boas magias?

Rufus ia mentir, mas percebeu que seria inútil. — Não.

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Interlúdio breve: