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Capítulo 1 – Economia Solidária: Contextos e Percursos

1.1. Revisitando alguns precursores

Nos últimos tempos, muito se tem falado em economia solidária, economia social, sócioeconomia solidária, economia popular e solidária. Discussões teóricas e experiências variadas estão, sem dúvida, configurando uma realidade, na atualidade, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, cuja lógica se fundamenta na possibilidade de construir outras formas de organização produtiva diferenciadas daquelas peculiares do sistema capitalista, cujo fundamento é a exploração do trabalhador e o lucro.

Apesar do vigor que a economia solidária vem tomando, nas duas últimas décadas do século XX e início do século XXI, o surgimento do que hoje tem-se chamado de economia solidária, antes muito mais representada por meio do cooperativismo, uma das suas modalidades históricas mais consolidadas, vai se desenvolvendo, desde o início do século XIX, por intermédio de várias iniciativas, de caráter associativo, que vinham se delineando em alguns países da Europa, com destaque para Inglaterra, França, Suíça e Suécia.

Tais iniciativas nascem diante de um cenário de mudanças desencadeadas pela Revolução Industrial, na Inglaterra, e pela Revolução Francesa. São reações do operariado à exploração do capital sobre o trabalho – jornadas excessivas, condições de trabalho insalubres, exploração de menores e mulheres – que vão desde as estratégias de quebra de máquinas ao começo da organização em associações operárias8. As formas cooperativas e associativas tornam-se, pois,

caminhos para organizar outras formas de produção e também de proteção, a exemplo das associações mutualistas.

O aparecimento do capitalismo e suas mutações vão suscitando constantes debates entre os teóricos socialistas, evidenciando-se o embate de idéias e propostas. Entre os primeiros socialistas do século XIX, são comuns as

8 As associações operárias organizadas por intermédio do movimento owenista, cartista e dos

propostas de mudanças permeadas por ideais de justiça e fraternidade, cujo propósito era a construção de uma sociedade mais justa. Tem-se, assim, o desenvolvimento das idéias de um socialismo associacionista por meio das contribuições de Robert Owen (1771-1858) e seus seguidores, cujo propósito era organizar uma comunidade em que os cooperados se reunissem tanto para os fins de distribuição como de produção. Com isso, ocorreria a eliminação do lucro e da concorrência, causas das injustiças sociais. As idéias owenistas contribuíram para a organização das primeiras cooperativas de consumo e, também, na sistematização das idéias dos pioneiros de Rochdale9, consubstanciadas em um

programa no qual constavam os valores do cooperativismo que foram se disseminando por diversos países10.

Os ideários de liberdade, igualdade e fraternidade contidos na Revolução Francesa vão auxiliar a construção do pensamento dos teóricos franceses da primeira metade do século XIX, sobressaindo-se, dentre eles, Charles Fourier (1772 - 1837), Gide (1847-1932), Saint-Simon (1760 –1825) e Proudhon (1809 - 1865). Tais ideários estavam presentes nas propostas de Charles Fourier11 de defesa da propriedade comunitária e a criação de elos societários (falanges) que, agrupados, formariam os falanstérios, comunidades voltadas para a produção com harmonia e liberdade; nas indicações de Saint-Simon de mudanças na ordem social onde conviviam explorados e exploradores para uma ordem industrial baseada na associação universal dos trabalhadores; na defesa de Buchez (1796-1865) de que os operários deviam resolver seus problemas por si mesmos, sem a interferência do Estado ou de filantropos12; na construção de um

9 Dos pioneiros do cooperativismo, seis eram discípulos de Owen. Rochdale, pequena cidade da Inglaterra próxima de Manchester, na época contava com menos de 25 mil habitantes. Ao final de 1843, 28 tecelões começaram a se reunir com o objetivo de encontrar uma maneira de amenizar a situação de pobreza em que se encontravam. Decidiram se organizar em uma sociedade cooperativa. Para tanto, reuniram, durante um ano, um capital de 28 libras e fundaram, em 24 de outubro de 1844, a Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale. Em 21 de dezembro, desse mesmo ano, fundaram um armazém que no início tinha um estoque modesto (farinha, aveia, manteiga, açúcar e velas de sebo) e só abria uma vez por semana. Posteriormente, esse estoque foi se ampliando e o armazém passou a funcionar todos os dias.

10 São valores cooperativos: a solidariedade, liberdade, democracia, justiça social e eqüidade. Os seus princípios são: adesão voluntária e livre; gestão democrática pelos cooperados; participação econômica dos cooperados; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação e interesse pela comunidade.

11 Fourier foi considerado o grande precursor da cooperativa integral que, posteriormente, vai ser desenvolvida nos Kibutzim – Israel.

12 Buchez definiu as seguintes regras para a constituição das cooperativas de produção: democracia (os trabalhadores eram os próprios empresários e elegeriam seus representantes);

“mundo autogestionário” e mutualista de Proudhon; nas idéias de Gide que entendia a emancipação do trabalhador e a eliminação da lucratividade do capitalista por meio da coletivização total da sociedade, via cooperativas de consumo e produção. É importante destacar também as idéias da Escola de Nimes, que defendia a eliminação da luta de classes, do conflito entre capital e trabalho, via movimento cooperativo, e condenava o regime do salariado em nome da justiça e da solidariedade.

O pensamento desses teóricos e, em alguns casos, suas experiências concretas, percorreu todo o mundo e, de forma especial, a Europa, servindo também para o estabelecimento de contrapontos a outros pensadores diante do movimento cooperativista que vinha se desenvolvendo em todo continente europeu.

Karl Marx (1919-1883) fez a crítica àqueles que ele chamou de “utópicos” por considerar que faltava-lhes profundidade quanto à crítica ao capitalismo e uma melhor compreensão sobre o funcionamento deste modo de produção, apesar de considerar importante a construção dessas discussões, na medida em que questionavam as bases da propriedade privada e da própria existência do capitalismo. Defendia, entretanto, a autonomia das cooperativas em relação ao Estado, enquanto criações autônomas dos trabalhadores, tendo em vista que “a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”13. Com essa

expressão, Marx demarca suas idéias de autogestão que vão servir de referência para a construção de algumas revoluções ou experiências de autogestão14.

Frederich Engels (1820-1895), via nas cooperativas uma possível forma de transição para o socialismo, posição essa que se contrapunha ao pensamento de Rosa Luxemburgo (1871-1919). Esta, por sua vez, afirmava que as cooperativas de produção exerciam apenas um papel acessório das cooperativas de consumo e, neste sentido, não tinham força para suprimir o lucro comercial. Já Lênin (1870 - 1924), numa análise sobre o papel do cooperativismo, a partir da experiência russa, tendo o Estado como detentor dos meios de produção, entendia que o

distribuição do excedente proporcionalmente ao trabalho prestado; criação de fundos sociais; inalienabilidade do capital social; inexistência de trabalhadores assalariados.

13 Programa de Gotha/1875 e Resoluções do Primeiro Congresso da Associação Internacional, setembro de 1866.

14 A esse respeito consultar: NASCIMENTO, Cláudio. A autogestão e o novo cooperativismo. www.mte.gov.br.

cooperativismo devia ser uma alternativa para auxiliar o socialismo na realização de si próprio. Para ele, era preciso agrupar as pessoas em cooperativas, estimular sua participação, fornecer-lhes as condições necessárias para o seu desenvolvimento. Defendia a proposta de intensificar as ações junto ao campesinato no sentido de agrupá-lo em cooperativas e, principalmente, fazer uma revolução cultural, para que pudesse compreender e assimilar a importância do trabalho cooperativo.

Todas essas experiências e discussões teóricas do século XIX, como disse Laville (2001)15, foram importantes para a reunião de diversos trabalhadores no

campo e na cidade, com o objetivo de defender e reivindicar direitos, diante dos diversos problemas ocasionados pelo capitalismo liberal, cujo foco central era o mercado.

O certo é que a economia solidária, nesse momento, na expressão do cooperativismo, esteve sempre presente nas discussões de diferentes períodos históricos e surge, lado a lado, com o capitalismo. Ela sofre as mutações que se processam no meio social e vai se configurando diante das diversas conjunturas. Conforme Pinho (1966), podem ser consideradas duas fases importantes na constituição do cooperativismo no mundo. Num primeiro momento, as iniciativas associativas vivem sob o capitalismo concorrencial no qual a produção acontecia por intermédio de pequenas unidades que trabalhavam concorrendo entre si, cuja intervenção do Estado era quase nula. A outra fase é ainda no capitalismo concorrencial, mas com a presença de grandes unidades produtivas16. Na primeira fase, a referida autora considera que o cooperativismo estava vivenciando duas etapas: uma pré-cooperativa em que existiam organizações comunitárias de grupos confessionais, a exemplo dos Shakers; outra do tipo comunitário, a exemplo da comunidade Nova Harmonia, fundada por Owen, em 1828; os Falanstérios (séc. XIX e XX) idealizados por Fourier e as colônias Icarianas inspiradas por Cabet (1848). Essas experiências foram fundamentais

15 Cf. palestra realizada no II Fórum Social Mundial, 2001, Porto Alegre.

16 A partir da primeira Grande Depressão (1873-1896), que trouxe como conseqüência o fortalecimento das grandes empresas e eliminação das mais fracas, iniciou-se uma nova fase do capitalismo, a fase monopolista ou financeira, que se desdobrou na exportação de capitais e no processo de colonização da África e da Ásia. Sua característica é o imperialismo, caracterizado pela centralização, concentração e exportação de capitais; surgimento dos monopólios internacionais, seja por meio dos trustes, cartéis ou holding; além da fusão dos capitais financeiro e industrial.

para que as idéias cooperativas pudessem ser sistematizadas e retomadas pelos pioneiros de Rochdale, dando forma aos princípios e valores cooperativos. Na outra etapa, têm-se, como exemplo, as cooperativas de consumo – Rochdale, as cooperativas de crédito (Delitzesch e Raiffeisen), e, ainda, aquelas de caráter confessional – católicas e protestantes cristãos.

Na fase do capitalismo monopolista, Pinho (1966) cita como exemplos: o desenvolvimento das cooperativas confessionais existentes no Canadá e as Associações Protestantes para o Estudo Prático das Questões Sociais; as cooperativas de produção industrial e agrícola (França e Canadá); e as cooperativas de consumo (países escandinavos, Suíça). A formação das cooperativas dava-se devido à necessidade de lutar contra os grandes monopólios17.

De fato, o cooperativismo foi se estabelecendo em todo o mundo e de forma diversificada. Em alguns países, prevaleceu, inicialmente, o cooperativismo de consumo, mas também houve uma variedade nos tipos de cooperativas que foram criadas. Na Inglaterra (cooperativismo de consumo); Alemanha (crédito e, posteriormente as de consumo); Suíça (cooperativismo de consumo, agrícola, especialmente, o pecuário, de laticínios e carnes); França (cooperativas industriais e artesanais e de produção); Dinamarca (agrícola); Suécia (consumo, industrial, habitacional, agrícola); Noruega e Finlândia (cooperativismo agrícola e de consumo); Holanda (agrícola e consumo); Itália (crédito – caixas Luzzati (inspiradas nas idéias de Schulze-Delitzsch e depois as artesanais e consumo); Japão18 (consumo); Índia (crédito, agrícolas e artesanais); Israel (Kibbutzim); EUA (consumo, agrícolas, crédito, produção (petróleo), eletrificação rural); Canadá (crédito, mineração, pesca).

17 Na Suécia, por exemplo, as primeiras cooperativas surgiram, nos últimos anos do século XIX, por intermédio de associações inspiradas em Rochdale. As primeiras cooperativas começaram, de forma modesta, e logo se expandiram e se associaram à União Cooperativa, mais conhecida como K.F., uma espécie de cooperativa central de caráter atacadista e manufatureira e que ainda tinha a função de orientar e educar os associados. Destacaram-se o cooperativismo industrial e a luta contra os cartéis e monopólios. A K.F. enfrentou várias vezes os trustes assumindo determinada produção (margarina, açúcar, chocolate etc.) e mostrando que podia vender os mesmos produtos por preços bem abaixo do praticado no mercado.

18 O Japão adotou como estratégia a idéia de rede de cooperativas distribuídas em 07 tipos diferentes: cooperativas de consumo (armazéns de distribuição), cooperativas de produtores, cooperativas de vendas, cooperativas de crédito, cooperativas de serviço e de utilidades, cooperativas de seguro e cooperativas de auxílio mútuo.

Mesmo que algumas dessas experiências tenham sido reprimidas, não tenham conseguido avançar, ou, em alguns casos, os princípios de democracia, autonomia e liberdade de organização tenham sido completamente desfigurados sob a forma de cooperativismo empresarial ou tutelado, estas iniciativas deixaram uma contribuição importante para a construção das experiências vinculadas à economia solidária.

Percebe-se, portanto, que a economia solidária nasce de diferenciadas iniciativas concretas, bem como de idéias e teorias que vêm se consubstanciando em discussões, afirmações, divergências, contrapontos, similaridades, complementaridades, mostrando que as suas idéias são construídas em vários contextos e conjunturas e vão sofrendo modificações com menor ou maior importância, diante das variadas e complexas realidades.