• Nenhum resultado encontrado

1 ASPECTOS DA REPRESENTAÇÃO CULTURAL DO RIO CACHOEIRA

1.2 O RIO EM ALGUMAS MÍDIAS CULTURAIS

1.2.1 O hino e o filme

A saga dos imigrantes europeus que adentram ao novo espaço de vida, na América, pelo rio Cachoeira é descrita no hino da cidade de Joinville, na letra original de Elly Herkenhoff11 (década de 1930) e que, posteriormente, serviu de base para o hino oficial da cidade (Lei 1527 de 1º de julho de 1977) “Joinville cidade das Flores”, com letra de Claudio Alvin Barbosa. A antiga versão enaltece o trabalho, enquanto a segunda versão aborda entre outros aspectos, a chegada do colonizador pela via do rio Cachoeira:

“Tu és a glória dos teus fundadores, És monumento aos teus colonizadores, Oh! Joinville Cidade dos Príncipes, Oh! Joinville Cidade das Flores.

Às margens do Rio Cachoeira, Um dia o audaz pioneiro, Plantou do trabalho a bandeira

E se deu, corpo e alma, ao torrão brasileiro.”

Esta parte do hino apresenta um reflexo do uso do rio para vários objetivos em diferentes fases do desenvolvimento da colônia, mas principalmente como via de acesso dos imigrantes europeus que, conforme o hino e a história da cidade (TERNES, 1981), abrigou em suas margens as primeiras empresas. A exemplo da cidade francesa homônima, que se divide em duas áreas separadas por uma ponte _______________

11 Elly Herkenhoff, historiadora, nasceu em 15 de janeiro de 1906 em Joinville, e fez parte das primeiras gerações de historiadores de Joinville. Muitos relatos sobre a poesia, imprensa e teatro joinvilense foram registrados nos livros da historiadora.

sobre o rio (Joinville Le Pont), a Joinville brasileira também recebeu pontes que tiveram diferentes significados, como a Ponte do Trabalhador, homenagem aos metalúrgicos de uma grande fundição sediada em Joinville e a Ponte de Ferro, que faz menção às pontes inglesas e remete à cidade de Manchester, na Inglaterra, e que tem relação com Joinville devido ao grande número de indústrias, o que levou ao apelido de Joinville como a “Manchester catarinense”.

No cinema, o documentário “Suíços brasileiros: uma história esquecida” (2013) apresenta uma versão dos fatos pautada em depoimentos e na historiografia da cidade de Schaffhausen, na Suíça. A produção foi realizada em parceria com a Suíça, sendo que parte das filmagens aconteceram naquele país, com as demais gravações feitas em Curitiba-PR, São Francisco do Sul-SC e Joinville-SC12. O elenco contou com atores suíços e brasileiros e o filme foi dirigido por Calixto Hakim (Brasil), com roteiro baseado no livro de autoria do historiador joinvilense Dilney Cunha, apresentando narrativas que misturam drama, ficção e documentário.

No filme, o rio Cachoeira aparece como um lugar de natureza exuberante e que é fundamental para o estabelecimento das famílias migrantes no Brasil. A representação do rio criada no filme pode ser comparada àquelas escritas pela jornalista Julie Engel Günther em que o Cachoeira era descrito como importante via de acesso à Colônia e que registrou suas impressões um ano antes da chegada dos colonizadores em 1851. A obra cinematográfica foi exibida em canais de televisão internacionais, como BBC e Discovery Channel, publicizando os acontecimentos ocorridos há mais de 160 anos.

Os dois exemplos apresentados, o do hino da cidade e o documentário de cinema, têm a função de contextualizar um pouco a representação social (MOSCOVICI, 1978) do rio, mas, nesta dissertação, não há um aprofundamento sobre cinema ou música enquanto manifestações de arte — os dois produtos de comunicação servem aqui como um apontamento interpretativo da forma como o rio Cachoeira é representado culturalmente nesses meios de comunicação. Neste sentido, é preciso lembrar que a arte e seu discurso têm poder de legitimar práticas sociais (LE GOFF, 2010), pois traz consigo a função, entre outras, de fonte histórica _______________

12 O docudrama é baseado no livro do historiador joinvilense Dilney Cunha, “Suíços em Joinville – o duplo desterro”, fruto de uma extensa pesquisa histórica no Brasil, Alemanha e Suíça. Trailer disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=khfR4BgMS2w (acessado em 17/01/2019)

documental e com poder de fixar memórias e, ainda contestar sua versão. Por outro lado, Le Goff (2010) afirma que não há neutralidade na obra artística documental, mas uma intencionalidade movida por ideologia.

Desse ponto de vista, é possível afirmar que a obra cinematográfica não é somente uma obra de arte, mas uma imagem-objeto carregada de significados. No caso do filme mencionado, este traz uma carga ideológica explícita, ligando o passado empreendedor dos imigrantes europeus às práticas comerciais capitalistas atuais. A versão da história é ressaltada em aspectos extra-fílmicos, por vestígios como depoimentos e escritos da época, que justificam a degradação da natureza, alegando que a ação permitiu o progresso da comunidade estabelecida na Colônia Dona Francisca. No filme, tais fatos são mencionados e reproduzidos, o que potencializa o poder documental da obra, mesmo que assumidamente ficcional em alguns momentos.

No filme, o rio Cachoeira é citado como simples hidrovia, não sendo mencionada qualquer preocupação da interferência humana em suas características.

As práticas culturais observadas na obra cinematográfica em questão remetem aos hábitos dos imigrantes e sua relação com a comunidade brasileira, por meio de práticas alimentares, conversas, confidências e atitudes ante as dificuldades encontradas na nova terra. Retratada em um filme e replicada nas escolas e emissoras de televisão, essas práticas podem ser compreendidas pela audiência como uma representação real dos fatos.

A fonte cinematográfica, particularmente a fonte fílmica, torna-se evidentemente uma documentação imprescindível para a história cultural, uma vez que ela revela imaginários, visões de mundo, padrões de comportamento, mentalidades, sistemas de hábitos, hierarquias sociais cristalizadas em formações discursivas e tantos outros aspectos vinculados aos de determinada sociedade historicamente localizada (BARROS, 2012, p.

68).

Analisar a relação cinema-história implica observar três aspectos: a agência histórica, a fonte histórica e a representação histórica. Enquanto “agente histórico”, o cinema interfere diretamente e indiretamente na fixação da história, pois é utilizado como referência ou ferramenta para replicar a mesma; enquanto produto de uma história remontada por meio de vestígios, torna-se referência para retratar determinado período, criando assim, uma representação histórica. Estes três tópicos

acima são mencionados nesta pesquisa mais adiante, na abordagem das charges (POERNER, ROCKENBACH, MODRO, 2011) que mencionam o rio em sua temática.

1.2.2 O jornalismo enfrenta a poluição

Este tópico apresenta o olhar da jornalista alemã Julie Engel Gunther e sua versão sobre os fatos do início da história de Joinville e, em especial, sobre o rio Cachoeira. Os registros jornalísticos da colônia foram realizados desde o início da chegada dos imigrantes, conforme citado anteriormente, por Günther13, enviada do jornal de Leipzig, na Alemanha. Mas o primeiro jornal joinvillense, conforme Mathyas (2007), foi o Der Beobachter am Mathiasstrom (O Observador às Margens do Rio Mathias), um manuscrito de página única de autoria do imigrante Karl Knüppel. O conteúdo fazia menção ao sentimento dos imigrantes e trazia algumas anedotas entre os registros do cotidiano na colônia: Der Beobachter de Joinville está inserido, ainda que tardiamente, “num contexto mundial do início do jornalismo, ou seja, que motivos levam as pessoas em diversas sociedades, a se interessarem por ‘notícias’.”

(MATHYAS, 2007, p. 24).

O primeiro jornal impresso de Joinville foi o Kolonie-Zeitung e surgiu 12 anos depois da fundação da cidade. Seu criador, o advogado e jornalista alemão Ottokar Döerffel, chegou à colônia em 1854 depois de sua derrota política em Glauchau, na Alemanha. O semanário era embrião de ideologias e realçava o prestígio de algumas pessoas de destaque social, segundo Schlindwein (2011):

Como todo jornal, também o ‘Colonie-Zeitung’ foi instrumento poderosíssimo para realçar as figuras que já se destacavam na colônia, sendo ele, o jornal, o embrião de muitas ideias políticas (...) não tememos afirmar que seria o

‘Colonie-Zeitung’ um dos fatores que poderão e deverão ser admitidos como um dos agentes responsáveis pela transformação da colônia agrícola em centro industrial (SCHLINDWEIN, 2011, p. 137).

A análise superficial da história do jornalismo em Joinville é necessária para a compreensão dos diferentes pontos de vista publicados sobre a colônia. A jornalista Julie Günther mencionava temas que refletem a condição atual da cidade, ou seja, ela _______________

13O primeiro texto sobre as terras onde seriam instalados os imigrantes de Joinville foi publicado em 1851 no Jornal Ilustrado, de Leipzig, Alemanha, com a assinatura de Julie Engell-Günther (SCHLINDWEIN, 2011, p. 84)

abordava a relação da cidade com a terra agricultável, o desenvolvimento e adaptação cultural das pessoas e como o planejamento urbano estava sendo conduzido; por outro lado, Döerffel defendia a ideia de transformar a cidade em um polo industrial, o que realmente ocorreu e deixou um legado de destruição na natureza da região. Por sua vez, a jornalista alemã afirmava que as condições de infraestrutura e localização da futura colônia não eram as mais adequadas para a implantação de indústrias.

Em tempos mais atuais, o jornal joinvilense A Notícia, fundado em 1923, retratou, ao longo dos anos, a morte sistemática do rio Cachoeira e expôs alguns problemas por meio de charges e reportagens, como o encontro de um 14jacaré morto dentro do rio, um animal com cerca de 2,5 metros de comprimento, matéria publicada pela primeira vez em 2015. O animal fez parte do folclore da região central da cidade e foi apelidado de Fritz. Anteriormente, outros 15dois jacarés foram identificados em diferentes regiões do rio Cachoeira e foram personagens de notícias publicadas em jornais da cidade (2010).

Mesmo com a pressão de institutos ambientais e de parte da mídia, foi o jornal A Notícia que manteve o assunto da poluição do rio na lembrança dos leitores, conforme veremos a seguir, em especial pela publicação de uma série de charges, de autoria de Geraldo Poerner e Luciano Rockenbach (2011).