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Antes de mais nada, quero agradecer as questões. Achei super legal essa di-nâmica de elaborarem questões antes. Fico muito feliz pela leitura atenta que os

colegas fizeram do texto que encaminhei alguns meses atrás para que pudéssemos

começar esse processo de interlocução. A questão do sindicalismo e os dados que eu adiantei aqui, são do sistema de acompanhamento de greves do DIEESE e mostram uma realidade marcada pelo processo de mobilização sindical. Agora, o que está

por trás desta mobilização? O consenso começa a ficar menos visível, mais difícil.

Minha suposição é que está acontecendo um processo de mobilização das bases dos sindicatos que pressionam as direções sindicais e que, por sua vez, respondem a esse processo de pressão por intermédio de uma tentativa de controlar o que parece ser um transbordamento da insatisfação desses trabalhadores em relação aos limites do atual modelo de desenvolvimento.

Essa dinâmica é muito complexa e precisa ser analisada, estudada. Eu estudei essa dinâmica no setor de call center, na cidade de São Paulo. A indústria do call center somatiza uma série de tendências no mercado de trabalho no Brasil, características de um modelo de desenvolvimento que tem a ver com o eixo do regime de acumu-lação e com a maneira como as empresas se comportaram a partir de um certo mo-mento, nos anos 90. A consolidação de um certo tipo de empresa hegemônica. Eu

pude identificar um ajuste complexo, negociado, tenso, transpassado por conflitos,

contradições. Por um lado, uma base que percebe nitidamente que progrediu no últi-mo período. No entanto, é um progresso material até certo ponto, um progresso em

termos de direitos e, por que não dizer, em termos de qualificação. Porque quando a

trabalhadora doméstica deixa o trabalho doméstico e entra no call center, ganha

quali-ficações, tem o emprego formalizado e entra em uma empresa que aponta para uma

ascensão funcional. No entanto, percebe que isso é muito difícil de ser alcançado, pois existe toda uma série de obstáculos institucionais, empresariais, antes de

ga-rantir esta realidade de um progresso que tende a se consolidar ou a se desenvolver. Ao acumular essa experiência, ela percebe que não pode contar exclusivamente com a sua própria iniciativa. Ela se organiza, interage, mobiliza-se, e encontra ou não o sindicato, do outro lado, capaz de ajudá-la nesse processo. Às vezes sim e às vezes não. O sindicalismo no setor de call center é complicado. Na cidade de São Paulo, é um caso fascinante, são três sindicatos que disputam: Sindicatos dos Bancários, o Sintretel e o Sintratel. O ponto central aqui é que existe uma pressão que encontra o sindicalismo. O sindicalismo reage, responde e busca controlar essa pressão.

O sindicalismo hoje, no Brasil, é 90% governista. Então, ele procura lidar com essa pressão de uma maneira que possa controlar a insatisfação. Só que não tem conseguido, ou tem conseguido muito provisoriamente. E como as condições de trabalho... a nítida sensação de que aquele surto progressista dos anos 2000 está se esgotando de alguma maneira é muito visível nos setores que estão entrando agora no mercado de trabalho. Ou seja, a despeito de ter ganho líquido, o número de

em-pregos declina. A sociedade brasileira, apesar da transição demográfica, que é lenta,

ainda é uma sociedade muito jovem. Há milhares e milhares de pessoas que entram no mercado de trabalho todos os anos, muitos jovens a procura de um primeiro

em-prego, que percebem que esse progresso está acabando. As condições estão ficando

mais duras e os salários piores. Na verdade, há um aumento da renda porque aumen-ta a quantidade de pessoas entrando no mercado formal, mas o comporaumen-tamento do aumento da renda não é o mesmo comportamento do ganho salarial. Há um cres-cimento da renda, mas o salário não acompanha o mesmo crescres-cimento. Na própria indústria do call center, os aumentos salariais acompanham o salário mínimo, porque

ele é mais baixo. Desta forma, o sindicalismo fica obrigado a fazer greve, apesar de

não querer.

Temos acompanhado nos últimos anos, uma greve nacional anual bancária,

que significa uma greve contra o Banco do Brasil e contra a Caixa Econômica Fe -deral. Greve contra o governo. Claro que, no sudeste, há muita greve no Itaú, no nordeste contra o Bradesco, no centro-oeste se faz muita greve contra o Santander, mas uma greve nacional bancária é uma greve contra o Banco do Brasil e contra a Caixa. É uma greve contra o governo tocada adiante pelos setores que vertebraram a política econômica do governo e que promoveram, produziram e desenharam aquilo que é o atual momento do sindicalismo brasileiro: o momento dos fundos de pensão.

Luiz Gushiken, presidente do PT em 1989, falecido recentemente após uma luta contra o câncer, foi o principal inspirador do esquema dos fundos de pensão. Ele

os justificava de muitas maneiras que não vou ter condições de abordar agora. Nós

temos uma fusão, no país, entre o novo sindicalismo e o aparelho de Estado. Isto se dá via cargos no governo, via fundos de pensão. Esta fusão, do ponto de vista dos interesses globais da classe trabalhadora, é complicada e contraditória. Basta o que tem acontecido nas grandes obras do PAC. Os consórcios de construção são 100%

financiados por verbas do BNDS, cuja metade do orçamento vem exatamente do

Fundo de Amparo ao Trabalhador, que é, basicamente, fundo de garantia. Os fun-dos de pensão têm uma participação decisiva na articulação do acordo garantindo os riscos. O contrato é celebrado, o consórcio é formado e eles começam a construir. Para bater as metas e garantir a lucratividade da Andrade Gutierrez, da Odebrecht, e favorecer o governo, que, por sua vez, coloca cláusulas para valorizar os ativos do fundo de pensão acima da taxa de rentabilidade que é dada tradicionalmente pelo mercado, eles atuam a partir de péssimas condições de trabalho, tercerizando até a medula. Basta ver as greves. É uma miríade de cores. Cada cor daquelas é uma em-presa diferente, tem um contrato, um registro, um salário diferente. Aquela massa de gente colorida que aparece nas greves é o retrato da terceirização, e é uma massa que coloca fogo nos alojamentos, nos carros. Por quê? Porque eles explodem de raiva! Tudo isso tem a ver com os fundos de pensão. Em uma ponta estão os fundos de pensão e na outra essa massa precarizada. No meio, há o Estado brasileiro, que joga a favor dos fundos de pensão. Todo mundo ganha, menos o trabalhador daquela ponta. Por isso que este trabalhador está bravo e pressiona.

Quando o sindicato não assume suas responsabilidades, ele troca de sindicato, jogando-o fora e explodindo, porque não tem representação e um monte de outros direitos que deveriam ter. Por isso, fazem greves selvagens, desaparecem com super-visor, um monte de coisas. Nem dá para imaginar o que está acontecendo no interior

do país. A jagunçagem está correndo solta porque o nível de conflito e de tensão está

muito alto. Essa dinâmica das greves é cheia de detalhes, meandros e ângulos. É uma dinâmica melindrosa, complicada. No entanto, isso aponta para uma realidade bas-tante difícil e reprodutivista, por que? Em primeiro lugar, o reconhecimento de que estamos vivendo uma dinâmica para ter classes reprodutivistas implica entender que não há um projeto alternativo de sociedade em disputa. Desde a década de 1980, não há uma disputa em torno de projetos de sociedade que mobilizem as pessoas. Não estou dizendo que exista atualmente uma disputa de se o capitalismo brasileiro deve ir naquela ou nessa direção, nem estou argumentando se devemos ou não ter socia-lismo. Parece que falar em socialismo virou um absurdo total. Não há neste país hoje um debate sério a respeito das bases do atual modelo de desenvolvimento. Todos so-mos neodesenvolvimentistas, ou nos tornaso-mos neodesenvolvimentistas. Ninguém é contra o crescimento econômico, ninguém é contra a retomada do investimento.

Pa-rece que a gente vive em um mundo onde não há conflito, não há contradição, onde

impera um profundo consenso. É por isso que estou dizendo que é conservador. Por que é conservador? Porque se formou um consenso entorno do agrone-gócio, dos bancos, da construção civil pesada, da mineração, do petróleo. Isso é a vingança do atraso contra aquilo que foi o esboço de desenvolvimentismo da nossa industrialização na década de 1950, em que se dizia que teríamos uma indústria de transformação mais forte nesse país e os melhores salários seriam distribuídos de

maneira um pouco mais igual. Por que tem melhores salários, e nesse modelo que está vigorando, não tem melhora de salário? O problema é esse: os salários são muito concentrados no topo, com aquela massa salarial horrível na base. Percebe o proble-ma desse consenso? Ninguém é contra, hoje em dia, o tal do neodesenvolvimentis-mo. Para mim, a gente está vivendo um momento de neosubdesenvolvimentismo, e não sejamos tolos de acreditar que o governo federal está entregando progresso e desenvolvimento, quando está todo mundo vendo que esse país está cada dia mais dependente de importações da China, que a indústria de transformação está decli-nando, e que esse país não tem condição de manter o preço de commodities que teve nos 2000. É impossível se sustentar se a China parar de comprar. Ficamos nesta situação delicada, de ser um país gigantesco, com muitos potenciais, mas que vive de exportar minério de ferro, de exportar soja.

Estou chamando a atenção deste consenso que é profundamente conservador. É o conservadorismo que atravessa todos os tons do espectro político brasileiro de

cabo à rabo, com as exceções de sempre, como a extrema esquerda, que fica falando

em ecologia ou em socialismo, que é basicamente o Partido das Lutas e do Socialis-mo (PSTU). Dentro do Partido dos Trabalhadores (PT), vaSocialis-mos encontrar os setores mais críticos, mas ninguém é contra investimento, crescimento, desenvolvimento. É um grande consenso que extrapola e nos impede de formular a pergunta. As jorna-das de junho apresentaram um monte de respostas, aliás, três respostas são claras e objetivas: esse país não vai ser decente se não houver investimento em saúde, em educação e em transporte. De 6% do que estava previsto no PAC, apenas 2% foi investido em mobilidade urbana. Não estou dizendo que é 6% o que precisa ser investido! A gente vive de 20, 30 anos de subinvestimento na mobilidade urbana, transporte público, infraestrutura. É um subinvestimento histórico.

Se olharmos os dados oficiais que o governo apresenta, disponíveis na internet,

sobre o orçamento público da União, os gastos com saúde e educação, nos últimos 10 anos, declinam relativamente. É claro que, como há um contexto de crescimento econômico, a massa acumulada em termos de tributo aumenta, e também o valor absoluto do dinheiro que vai para saúde e educação, que eu não sou contra. Pelo con-trário. Estou cobrando exatamente o outro lado. Quando há uma estagnação, uma

de-saceleração, aí os conflitos aparecem com mais clareza. Percebemos que o gasto social

sempre aumentou. Não sou contra gasto social do governo, tem que gastar mais. Não tem um ano que não tenha aumentado. Mas o gasto com saúde e educação declina, em termos relativos, no montante do agregado do orçamento. O que estamos vendo

no final das contas? Que são 10 anos de hegemonia em torno do bolsa-família que

se tira do investimento de saúde e educação. Essa é a conclusão que eu posso chegar. Isso é profundamente conservador, e não há ninguém no espectro político brasileiro, com exceção do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e PSTU, que vai ser contra isso. O Partido da Social Democracia

Brasileira (PSDB) não é contra, o dos Democratas não é contra, o PT não é contra. Ninguém é contra. Essa é a encalacrada que levou uma massa de trabalhador jovem, que está se educando, que continua na luta da famosa escola particular noturna. Can-sei de entrevistar aquela moça trabalhadora, jovem, não branca, que sai do emprego de babá, entra no call center, faz das tripas coração para ficar dois anos e meio, três

anos, que é o máximo que aguenta, com aquele salário porcaria que ganha para pagar a faculdade particular noturna.

Em São Paulo, os dois grandes negócios que se acumulam e que aumentam nas periferias são a igreja evangélica neopentecostal e a universidade particular. Crescem como cogumelos depois da chuva no pasto, nas periferias mais longínquas. Essa massa, quando volta para casa, não volta para descansar mas para estudar, porque disseram que se trabalhar muito, der muito duro, estudar, vai ser vitoriosa, o progresso vai acontecer. O que ela descobre depois que se forma: pega o diploma de turismo, de administração de empresas, de publicidade, de jornalismo, chega no mercado de trabalho, apresenta para o empregador e este diz que só pode pagar um salário mínimo. Aquela promessa

toda de progresso com proteção tomba. Este pessoal fica bravo e vai para rua.

A primeira grande manifestação, quando chegou na Faria Lima em São Paulo, onde funcionam dois ou três grandes call centers, desceu aquela massa de jovens mu-lheres trabalhadoras dos call centers e entrou na passeata. Aqui no Rio, 70% ganhava até três salários mínimos. Em São Paulo, 35% ganha até um salário mínimo. O pesso-al foi para a rua! Em São Paulo, 78% dos que foram às ruas usam transporte público. É claro que essa massa que foi para a rua está percebendo os limites do atual modelo

de desenvolvimento. E se bate contra esses limites, só que ainda tem dificuldades

de formular a pergunta, porque são jovens. Formular a pergunta é fundamental. E qual é? Para conseguirmos investimento em saúde, educação e transporte, capaz de apontar para um horizonte que resolva a situação, temos de manter o gasto. Com 44% do orçamento público da União mobilizado para pagar juros para banqueiro, para dívida pública? Amortização e juros? Esse é o ponto. Hoje em dia, bater-se

contra os limites do atual modelo, lutar por mais verbas, significa, automaticamente, entrar em conflito e contradição contra essa estrutura do orçamento público. Caso

contrário, vai ser o Mais Médicos. Eu não sou contra, tem pouquíssimos médicos e concentrados em determinadas regiões. Pode ajudar no pronto-atendimento, mas não vai resolver nenhum desses problemas estruturais. E estamos nos confrontando com problemas estruturais.

PLATEIA:

Estou aqui representando o Grupo THESE – Projetos Integrados de Pes-quisa sobre Trabalho, História, Educação e Saúde. Trago algumas questões para a professora Moema. 1. A autora parece apontar para uma lógica dual da política de

saúde, no sentido de que, “o Estado assume a tarefa de garantir o mínimo aos que não podem pagar, enquanto a iniciativa privada se responsabiliza pelo acesso àqueles

que podem consumir conforme as regras do mercado”. Gostaríamos que a auto -ra discorresse um pouco mais sobre a compreensão do SUS, conside-rando: a) que o SUS não está voltado somente para a atenção primária, mas assume também, e largamente, o nível da alta complexidade; b) que os anos de 1990 expressam mais

claramente a inflexão do SUS em direção aos interesses privatistas, levando a ser não

dual, mas contraditoriamente único em torno desses interesses; c) que o Estado e a própria sociedade, incluindo intelectuais orgânicos da Reforma Sanitária, assumem

a lógica gerencialista do SUS, forma específica do privatismo nos serviços públicos, uma lógica do mercado especificamente reelaborada no âmbito do serviço público.

2. No seu texto, lê-se: “À rigor, o que se afirma é que, quanto mais tecnologia se incorpora às intervenções na saúde, lançando mão de equipamentos sofisticados, que atendam a lógica de maximização da lucratividade, mais desvalorizado fica o

trabalho humano, de escuta do atendimento personalizado, da interação entre quem adoece e quem cuida. Neste sentido, podemos considerar o uso da ciência e da tecnologia, também no setor da saúde, como expressão de um processo de

desvalo-rização da força de trabalho”. Inicialmente, gostaríamos de ouvir da autora se está

aqui a crítica à introdução de equipamentos no processo de assistência à saúde ou ao

fato dessa introdução “atender a lógica da maximização da lucratividade”. Em outras

palavras: o que leva à desvalorização do trabalho humano, da escuta, do atendimento personalizado, da interação entre quem adoece e quem cuida, é a introdução de equi-pamentos ou desta sobre a lógica da lucratividade?

3. Vieira Pinto nos diz que a ciência é a forma de resposta adaptativa que so-mente o homem se revela capaz, por ser um animal que vence as resistências do meio ambiente mediante conhecimento dos fenômenos, ou seja, mediante a produção de sua existência, a individual e a da espécie. Sobre a tecnologia, complementaríamos a fala do autor, reconhecendo-a, então, como a extensão das potencialidades humanas. Portanto, como considerar o uso da ciência e da tecnologia também no setor da saúde? Como expressão do processo de desvalorização da força de trabalho, não teríamos que situar o problema, não no uso em si da ciência e da tecnologia, mas nas relações sociais de produção que dão orientação ao sentido desse uso, bem como da própria produção?

No documento contradições e desafios para a saúde (páginas 76-81)