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Histórias da Visa R eal - V. 2 - O modo de fazer em VISA

Quanto à demanda que originou todo esse processo, o que ocorreu foi uma determinação legal da Justiça autorizando o estabelecimento a desenvolver a atividade. O interessado aprovei- tou a oportunidade e começou a operacionalizar os serviços sem, contudo, submeter-se à legisla- ção sanitária vigente.

Pudemos concluir que no sistema de VISA, em que as fiscalizações predominantemente eram realizadas no sistema cartorial, ou seja, as inspeções eram realizadas a partir da solicitação dos estabelecimentos ou originadas por denúncias, situações de inadequação sanitária eram fre- quentes, principalmente em estabelecimentos há muitos anos em funcionamento. Contribuía para essa situação as ações de VISA centralizadas no estado. A partir da descentralização e com a regulamentação de legislação sanitária e a instalação de estabelecimentos de saúde tendo à frente empreendedores técnicos e profissionais, podemos imaginar que eventos como “fazer um chur- rasco num fim de semana e deparar com banho em defunto ao ar livre não será corriqueiro neste Brasil”. Ou será...?

Histórias da Visa R eal - V. 2 - O modo de fazer em VISA

Iniciei os meus trabalhos na Vigilância Sanitária estadual (VISA estadual) em 1999, um grande grupo de concursados de 1995 foi chamado naquela época, com a vigência do concurso já no apagar das luzes.

A VISA estadual estava instalada no 7o andar do prédio do Ministério da Saúde, no centro do Rio de Janeiro. Os técnicos lota- dos no departamento de fiscalização de medicamentos e afins, farmacêuticos e químicos, dividiam um espaço exíguo, uma sala minúscula onde havia dois computadores pré-históricos e poucas cadeiras. Nos dias em que todos estavam com trabalhos internos elaborando relatórios de inspeção, era necessário realizar a dança das cadeiras e, numa roleta russa ao contrário, lançávamos a sorte para saber quem poderia utilizar os raríssimos computadores, não só pela idade, mas também pela escassez.

No início, só ficávamos sabendo qual empresa inspecionarí- amos na hora da visita propriamente dita, o que dificultava imen- samente o nosso trabalho, pois não tínhamos tempo suficiente para analisar o processo da empresa e planejar a abordagem de forma satisfatória. Achávamos, obviamente, que trabalhávamos em condições inadequadas, mas o pior ainda estava por vir...

Quando fomos analisar os processos das empresas, perce- bemos que iríamos contrariar interesses arraigados por décadas.

Não, não estou falando de interesses econômicos escusos ou práticas pouco éticas, apesar de alguns processos lembrarem “O Processo de Kafka”, pelo absurdo-burocrático-esquizofrênico- ilógico. Algumas empresas recebiam licenças datadas antes mes- mo do início do seu processo, como exemplo desse “inexplicável” absurdo.

Em verdade, falo de interesses muito mais valiosos, falo de vidas, meus amigos, é isso mesmo... Vidas!

Os processos das empresas eram arquivados em sepulcros, caixas de papelão, sendo mais preciso. Essas caixas eram tão anti- gas que se acreditava que um dia algum técnico-arqueólogo des- cobriria papiros, fragmentos milenares do Código de Hamurabi em alguma daquelas caixas. Naqueles verdadeiros túmulos do iní- cio do século passado viviam dezenas, centenas, talvez milhares de baratas.

Elas estavam lá há muito tempo e obviamente não gosta- riam de ser desalojadas, engrossando as fileiras dos sem-teto no Rio de Janeiro. Muitas gerações já haviam nascido, vivido e morri- do naquelas caixas, por isso era considerado por elas, baratas, ter- ras, ou melhor, papéis sagrados. Estavam decididas a resistir caso algum juiz insensível ou corrupto emitisse algum mandado de reintegração de posse, beneficiando os antigos proprietários,

A revanche

Francisco Eduardo de Pontes

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burocratas inescrupulosos que tinham abandonado aquelas caixas por vários anos.

Naquelas caixas, as baratas viviam em uma estrutura social bastante rígida, desigual e injusta. Apesar da aparente tranquilida- de e do verniz democrático, a realidade que se escondia por baixo dos papéis era bem diferente. As baratas se organizavam em di- versas castas, as mais abastadas, a elite econômica e política, vi- viam em amplos e grossos processos de multinacionais francesas, suíças, americanas, alemãs, entre outras, em suas sedes e condo- mínios na Barra-ta, bairro luxuoso das castas elitistas, os novos ri- cos, sem cultura, mas com muitos papéis. As castas menos abas- tadas dividiam pequenos e empoeirados processos de farmácias do interior do estado e havia também as miseráveis, que moravam em processos de indústrias de saneantes da baixada. Essas castas viviam à margem de qualquer círculo social, eram os verdadeiros excluídos, habitando caixas superpopulosas, sem acesso aos mais elementares direitos de cidadania.

O convívio entre técnicos da Vigilância Sanitária e baratas não poderia ser algo harmonioso, evidentemente. A sala já havia sido, inclusive, batizada pelas baratas de A METAMORFOSE.

Foram convocadas várias reuniões entre as partes envolvi- das no conflito territorial. As baratas argumentavam que

possuíam o direito de posse legitimado por usucapião, pelos anos que ocupavam aquela região. Esgotados todos os canais de diálo- go, os grupos decidiram partir para a violência física. Alguns gru- pos de baratas radicais fundaram o PCBR (Partido Comunista das Baratas Revolucionárias), dissidência do enfraquecido e pelego PCB (Partido Comunitário Barateiro), que defendia o convívio pa- cífico entre baratas e humanos, argumentando que alguns huma- nos, os homens, poderiam ser, inclusive, aliados, já que utilizavam algumas companheiras baratas para aterrorizar as fêmeas de sua espécie, num ritual ancestral de histeria coletiva.

Resolvemos partir para a brutalidade, extermínio mesmo, sem reconhecer os mais elementares direitos de guerra, por exem- plo, as baratas capturadas em combate eram sumariamente exe- cutadas, assassinadas a sangue frio, sem direito a julgamento jus- to, utilizando-se, para isso, os mais cruéis instrumentos de exter- mínio: sapatos, vassouras, processos, tamancos, furadores de pa- pel, entre outras armas mortíferas. As coitadas não tinham o direi- to sequer de receber o spray da morte, quando o fim vinha de for- ma menos dolorosa, mais digna, mais humana, ou melhor, mais barata. Em verdade, o preço do spray da morte não era nada bara- to e com os baixos salários dos servidores públicos resolvemos uti- lizar armas primitivas, mas extremamente eficazes. Não quería- mos sobreviventes ou heróis da resistência.

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Uma das táticas mais utilizadas consistia do seguinte: um técnico jogava a caixa de processos no chão e enquanto as mulhe- res corriam histéricas, pisoteando algumas nessa correria fóbica, os homens sapateavam freneticamente, como que possuídos por um prazer sádico, doentio, exibido por alguns fiscais de rendas.

A política de extermínio deu resultados satisfatórios, fomos transferidos para outro andar do mesmo prédio do Ministério da Saúde, onde ocupamos hoje o 3o andar, em melhores condições que anteriormente, mas ainda longe do realmente necessário no que diz respeito às condições de trabalho.

Acreditávamos que realmente havíamos nos livrado das in- cômodas baratas, até viajarmos para Brasília, em 2009. As diárias não tinham sido ainda corrigidas e por um problema de falta de pagamento adiantado ficamos sem ter onde dormir no meio do curso do qual participávamos. Depois de muito procurar, conse- guimos um lugar para ficar até na sexta-feira, quando o curso ter- minava. Os homens do grupo foram designados para ocupar o quarto localizado no porão do edifício e as mulheres no 2o pavi- mento. O apartamento tinha geladeira, fogão e micro-ondas. Re- solvemos então fazer umas compras num supermercado perto dali. Na saída do apartamento para as compras, algumas inimigas foram avistadas pelas mulheres do grupo. Decidimos comprar o

spray da morte e liquidar a parada, com a confiança inabalável de velhos combatentes.

Quando voltamos, o quarto onde ficaram alojadas as mu- lheres estava tomado por baratas, o exército possuía um enorme contingente, creio que Brasília possua terreno muito propício ao desenvolvimento e proliferação de pragas urbanas. Pelas táticas utilizadas, certamente tinham estudado atentamente o “Manual do Guerrilheiro Urbano”, de Carlos Mariguela. Eram táticas de guerrilha executadas de forma bem sincronizada. No meio da ba- talha, o spray acabou, não calculamos bem a quantidade de muni- ção necessária. Nesse momento, elas tomaram de assalto o apar- tamento. Não tínhamos outra opção, assumimos a derrota e bate- mos em retirada.

Antes de fechar a porta ainda consegui observar uma enor- me multidão de baratas em passeata, em êxtase, carregando fai- xas com dizeres revolucionários, mas uma faixa específica me cha- mou atenção. Era liderada por uma barata com uma boina dife- rente das outras, como se fosse de um estrangeiro em Brasília, um Che na Revolução Cubana, e estava escrito em letras vermelhas, garrafais:

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Com o crescimento de atuação da Vigilância Ambiental, foram pactuadas mais ações nas PPI, PAVS, etc. Quem já participou das pactuações sabe que de pacto não tem nada! Os municípios são obrigados a pactuar, só se discutindo em alguns casos o percentual na execução. Pactuamos para realizar o VIGIAGUA, por isso, levamos, mensalmente, amostras de água para o Laboratório Noel Nutels. Porém, em muitas ocasiões após a coleta, não há carro para levar o material até o Rio de Ja- neiro. Em uma dessas ocasiões, como iria para o Rio, resolvi entregar a amostra de água pessoalmen- te. Ao chegar ao Rio de Janeiro, andei da Praça XV ao Noel Nutels a pé, para fazer exercício. Estava vestida com calça de malha e tênis e levava ao ombro o isopor com a amostra de água para ser exa- minada. Ao chegar ao laboratório, o funcionário, ao ver-me naqueles trajes, pediu minha identifica- ção, a carteira funcional ou algum comprovante de que eu trabalhava naquele município. Também pudera, o funcionário tinha razão de desconfiar, porque com aqueles trajes eu parecia mais uma sor- veteira ou uma corredora de maratona.

Após muitas explicações e esclarecimentos, consegui entregar a água para o exame, pegando, também, o resultado das análises anteriores.

A sorveteira

Márcia Vieira Teixeira

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Afastei-me por aproximadamente sete anos da VISA, to- mando a decisão de só voltar a trabalhar no serviço público após passar em concurso. Prestei vários concursos, os quais tiveram o seguinte resultado: Saquarema, o concurso foi anulado; São Pe- dro da Aldeia, nunca fui chamada; e, finalmente, Macuco e Arraial do Cabo. Fui aprovada em primeiro lugar no concurso para a Pre- feitura de Macuco e só fui chamada quatro anos após - onde hoje trabalho.

Quanto a Arraial do Cabo, entrei com ação na justiça, pois apesar de haver o oferecimento de seis vagas para fiscal sanitário, só chamaram o candidato que se classificou em primeiro lugar e eu, que fiquei classificada em segundo, mesmo assim, não fui cha- mada para tomar posse. E a ANVISA, que abriu só cinco vagas para médico veterinário no Brasil todo e, se não me engano, 35 para farmacêutico. Será que existem mais problemas com medicamen- tos do que com alimentos?

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