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2 O PROJETO DE MONTEIRO LOBATO: IDENTIDADE NACIONAL E

2.4 Regionalidade(s), nacionalidade(s), modernidade(s) na produção infantil de

2.4.3 O Sítio é o mundo visto por Lobato

A obra infantil lobatiana tem, de fato, muitas características similares àquilo que os modernistas de primeira geração produziram a partir de 1922. Primeiramente, Lobato e os modernistas parecem defender uma conciliação impraticável entre modernidade internacional e nacionalismo (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985, p. 57).

Ora, Lobato escreve toda sua obra infantil em ambiência rural, em pleno período de urbanização e industrialização da nação. Trata-se de uma manobra um tanto nostálgica, de representação de um Brasil que não é mais. De fato, o Sítio não é fértil, não tem produção agrícola (café), não parece ser viável financeiramente (pelo menos até o ponto em que se encontra petróleo). Embora nostálgico, o tom de Lobato é moderno em sua essência:

[...] se nessa idealização ele se permite renegar mitos antigos (como o da riqueza e fertilidade agrícolas, antes mencionados), é porque outros mitos ocuparão a lacuna. Um deles é o da abundância de óleo natural; outro é o do caráter agregador do sítio, aberto a todos indistintamente, mas, em especial, às experiências mais modernas: Dona Benta está sempre atenta ao que se passa no mundo, possui cultura invejável e não se escandaliza com a tecnologia, embora renegue as consequências desta que considera nefastas (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985, p. 57).

Além disso, Lobato e os modernistas defendiam desconstruções de cânones, tanto literários quanto linguísticos. A base da obra infantil lobatiana são as adaptações de clássicos ocidentais para a mente e o vocabulário da criança da época, sendo comum que as histórias tomassem rumos diferentes dos tradicionais. Ademais, as reflexões sobre os funcionamentos da língua, com foco na fala em oposição à norma, são recorrentes; há um livro inteiro sobre isso, Emília no país da gramática (de 1934), que dá às protagonistas a possibilidade de questionar as estruturas normativas da língua em oposição às variedades regionais e sociais.

Mas o fator-chave que permite enxergar a obra lobatiana como similar à produção modernista, em especial a de primeira geração, é a antropofagia17. Zilberman e Lajolo (1985, p. 58) chamam de “cultura internacional” aquilo que Lobato interpola em sua narrativa infantil: clássicos (o Minotauro, Hércules, Dom Quixote, fábulas europeias), literatura contemporânea à sua produção (Peter Pan, Alice), e elementos da cultura de massa de cinema

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Zilberman (2005, p. 26) tem um capítulo intitulado “O sítio é um mundo”. Contudo, o que ela defende com o termo “mundo” é diferente do que é colocado neste subcapítulo quase homônimo. A autora afirma que o Sítio é constante em personagens e ambientes, e desprendido de localização regional específica, o que lhe confere o status de “universo independente”, “mundo”. Aqui, discordamos dessa independência, e o foco do título é na mundialização e no aspecto multicultural aparentes na obra lobatiana.

e quadrinhos da época (Tom Mix, Gato Félix, Walt Disney). Sobre esses últimos elementos, as autoras prosseguem:

Trata-se de uma invasão do mundo contemporâneo, do qual Lobato se apropria antropofagicamente, pois são antes os produtos estrangeiros que se naturalizam, ao chegarem ao sítio ou ao conviverem com os meninos. Além disso, se, através das alusões de Dona Benta, ele não se cansa de criticar os rumos adotados pelo progresso e pela tecnologia, é igualmente um admirador, um tanto embasbacado, dos seus produtos culturais, sobretudo os de massa, como o cinema (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985, p. 58).

Embora o Sítio represente uma visão do Brasil, ele também representa uma visão do mundo. A obra de Lobato “concilia o nacionalismo com um desejo de equiparação do Sítio (leia-se: Nação) com as grandes potências ocidentais” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985, p. 58). O escritor paulista nunca negou sua admiração pela cultura europeia e, sobretudo, pela contemporaneidade norte-americana. Em A chave do tamanho (1942), por exemplo, obra em que ele analisa os rumos da Segunda Guerra Mundial, a crítica à Alemanha é veemente, e o melhor exemplo de civilidade e organização social vem dos Estados Unidos.

À luz de Said (2011), pode-se afirmar que a obra lobatiana é condizente, em muitos aspectos, com o discurso imperialista. Ao analisar o nacionalismo e o universalismo, o teórico considera que, no pensamento ocidental, aquilo visto como “universal” é, na realidade, “eurocêntrico”, assim como o fenômeno chamado de “globalização” seria, enfim, “ocidentalização” (p. 92). O discurso de superioridade do ocidente com relação às outras culturas é, pois, o imperialismo ou mesmo o ocidentalismo ao qual o autor alude.

Ao exaltar o conhecimento ocidental, a cultura europeia e, sobretudo, a supremacia dos Estados Unidos no século XX, Lobato confirma o status-quo geopolítico de sua época. Seu discurso nacionalista, com a ânsia de equiparar a cultura brasileira à das grandes

potências, confirma, de partida, uma crença na inferioridade da nação mesma que busca

defender e na superioridade daquelas em que se espelha. Por mais que o romancista paulista traga à sua trama elementos do imaginário brasileiro (personagens folclóricas, fauna e flora do Brasil), eles estão imersos em uma lógica de tradução cultural (HALL, 2005, p. 87) do que o autor considerava como excelente e digno de reprodução da literatura infantil do norte e do pensamento eurocêntrico18. Como veremos, esses aspectos lobatianos se parecem muito com a produção literária da geração modernista de 1922.

18 Detalhes sobre como o autor realiza tal tradução cultural, especificamente em Peter Pan, apresentam-se na

Hall (2005, p. 9) analisa extensivamente a crise de identidade sofrida pelos sujeitos do mundo ocidental a partir do século XX. Para ele, não existe uma única identidade para cada sujeito; pelo contrário, cada identidade é uma diferente “narrativa” do eu (p. 13). Se a identidade nacional é uma narrativa que muda diacrônica e diatopicamente, ela também é variável de sujeito a sujeito, e mesmo para um único sujeito em momentos diferentes. Isso é visível na produção mesma de Monteiro Lobato, que revisitou o Jeca Tatu, as cidades mortas e o Sítio do Picapau Amarelo por tantas vezes. Uma identidade nacional unificada, afinal, não existe (SAID, 2011, p. 65). Com a modernização da indústria e da comunicação, “as identificações ‘globais’ começam a deslocar e, algumas vezes, a apagar, as identidades nacionais” (SAID, 2011, p. 73).

Monteiro Lobato é um dos grandes nomes da literatura brasileira, e isso se dá pela importância de sua obra infantil, tão inovadora, e pelo tom de seu discurso político, tão impresso em seu texto. Seu projeto não era apenas literário, mas posicionado ideologicamente: ele buscou declaradamente reproduzir no Sítio do Picapau Amarelo aquilo que desejava que a criança brasileira lesse e também aquilo que gostaria que o Brasil de seu tempo fosse. Contudo, os autores literários estão inseridos em seu tempo, e, por mais revolucionária a vanguarda a que se filiem, por mais pioneiro o estilo que empreguem em suas obras, eles escrevem inseridos em um sistema, com relação ao que veio antes e influenciando o que vem depois (CANDIDO, 2010, p. 35-40). Lobato estava, pois, vinculado a uma visão de sua geração, tanto no que diz respeito à estética quanto à ideologia. Rever sua obra com o olhar de um século é um exercício necessário, especialmente considerando-se que a recepção de seus textos permanece contemporânea e massificada.

No “olho de furacão” temporal em que a produção de Lobato se inseria, nos anos 1920, 1930 e 1940, é perceptível notar reflexos de uma crise de identidade moderna. As narrativas do Sítio são, ao mesmo tempo, muito nacionais, com representações de elementos pontuais de regiões do Brasil, e muito internacionais, com o movimento antropofágico da cultura literária modernista. Ao longo de tantos anos, Lobato editou e reeditou suas obras, alterando grandemente as representações e posicionamentos das personagens. É possível enxergar que, no intento de consolidar uma identidade brasileira, Lobato não pôde fugir de seu tempo e, em última instância, contribuiu para uma formação identitária fragmentada, em constante formação e, sobretudo, híbrida (HALL, 2005, p. 69). O Sítio é um Brasil utópico, mas também é um mundo utópico – ele representa tudo aquilo que Lobato considerava exemplar em sua e nas outras nações. Em última instância, propositalmente ou não, a

narrativa infantil de Lobato foge à representação monológica de sua própria voz e faz notar uma multiplicidade de pontos de vista19.

Ao analisar-se a obra infantil do escritor com diferentes campos teóricos, é possível enxergar resultados inesperados. O nacionalismo modernista de Lobato vislumbrava um país que fosse, ao mesmo tempo, regional e inter-regional, nacional e internacional, velho e novo, rural e moderno. Ao querer equiparar a literatura infantil (e a nação) brasileira às literaturas (e nações) do “primeiro mundo”, Lobato reproduziu um discurso identitário mundializante, ou, mais pontualmente, ocidentalizante. E essa era sua forma de discurso nacionalista.

Lobato contribuiu e contribui para a formação da identidade do brasileiro. A

brasilidade ocidentalizante que ele defendia em suas páginas ao lado de seus colegas

modernistas parece ter ajudado a formar o Brasil contemporâneo, mesmo que devido à divulgação de seus enredos na mídia de massa, sob a égide da Editora e da TV Globo, efeito esse que ainda precisa ser mais profundamente analisado em trabalhos futuros. Os romances que versam sobre o Sítio constituem uma obra esmerada, volumosa, vendável e constituinte do imaginário nacional. Seja qual for a nacionalidade brasileira que o (re)lê, é perceptível a presença do Sítio no Brasil contemporâneo.

19 Na seção 4 desta dissertação, analisa-se o aspecto polifônico da obra lobatiana e, em detalhes, como Peter Pan

3 O SÍTIO DO PICAPAU AMARELO E A TERRA DO NUNCA: LOCAIS DE