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Primeiro, eu quero parabenizar a metodologia que vocês fizeram de discutir os textos an -tes e queria agradecer também a generosidade das críticas e dos comentários que podiam ter sido até mais duros, mas foram realmente muito generosos, abordando, ao mesmo tempo, coisas importantes. Mas, na verdade, aqui é possível uma outra conferenciazinha com relação à teoria da cidadania atual, mas tudo bem. Vou tentar ser rápida...

Veja só, com relação à questão dos autores Gramsci, Poulantzas... Eu penso

que eles não estão explicitados ao longo do texto, no entanto eu acho que o

pen-samento que conduz a reforma é tributário deles, assim como a análise que eu fiz.

Por exemplo, quando a gente fala na seletividade estrutural do Estado, o Estado como um campo de disputa onde se inscrevem também as lutas das classes popu-lares, pois não é só o espaço de dominação, mas que ele tem uma seletividade estru-tural em que ele despolitiza, ele hierarquiza as demandas populares e, se entram, en-tram sempre como subordinados e hierarquicamente inferiores. Quando eu discutia

a questão do SUS e da seguridade social, de certa forma estava mostrando isso, como

efetivamente essas coisas acontecem. Quer dizer, você introduz essas discussões das necessidades das demandas populares, que é uma demanda por atenção à saúde, mas, ao subordinar a política de saúde a uma política macroeconômica, monetarista, em

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que o único interesse é controlar o déficit e pagar os juros, tem-se muito claramente explicitada qual é a hierarquia dentro do Estado. Os interesses do capital financeiro

se representam na área que é dominante no Ministério da Fazenda, enquanto os

in-teresses dos dominados se representam no SUS, na seguridade social. Representam-se, mas como dominados, o que inviabiliza melhorar o acesso, enfim, inviabiliza uma

série de conquistas. Então, eu acho que não estão explicitados, mas a análise segue essa mesma dinâmica.

A questão da teoria da cidadania atual: a cidadania é um conceito extrema

-mente complexo que permite uma leitura estrita-mente liberal, já que ele tem uma

origem liberal com a ideia do individualismo, que cidadãos são portadores do ponto

de vista individual de direitos em relação ao Estado, desde quando eles sejam inde

-pendentes, autônomos, contribuintes financeiros e pertençam a um Estado Nacio -nal. Quer dizer, essa visão está sendo extremamente questionada ao longo da história porque, ao mesmo tempo que o conceito de cidadania é um conceito igualitário e o substrato é a ideia de igualdade, ela não se realiza e, ao não se realizar, ela põe em

processo um conjunto de reivindicações por essa igualação no político que não está ocorrendo. E hoje nós temos situações muito mais complexas do ponto de vista da teoria da cidadania. Por exemplo: se o Estado Nacional já não é mais o grande regu -lador da sociedade, como é que nós vamos falar em cidadania se era esta a relação deste indivíduo neste território com o poder nacional? Qual é a capacidade que o Estado (pra não falar dos nossos) francês, por exemplo, tem de garantia da

Previ-dência Social se ele entra na comunidade europeia e a comunidade é quem vai definir qual vai ser o déficit público que ele tem que ter? Então, há uma tensão, hoje, entre

a transnacionalização do poder e do mercado e a cidadania que ainda é restrita ao nível nacional.

Outra questão é essa própria noção de autonomia. É a ideia de que o autôno-mo era aquele que podia votar, que era o cidadão, era o que também pagava imposto

de renda. Assim era o voto inicialmente. Mais tarde, o voto é universalizado, mas não

os direitos de cidadania. Por quê? Porque os menores, as mulheres, são considerados dependentes, então, como é que você vai reconstruir a cidadania agora quando se tem outras mudanças muito grandes entre as gerações, as diferenças geracionais são

outras, entre gêneros... Existe um conjunto de conflitos que não comportava porque,

na verdade, a cidadania foi montada num padrão industrial de um homem que estava no mercado de trabalho e a mulher era sua dependente e tudo mais... Isso explode com a mulher trabalhando e ao mesmo tempo tendo que cuidar da casa e introduz a necessidade de uma diferenciação na condição de igualação da cidadania. Se os movimentos da classe operária foram no sentido da igualação e, portanto, ela foi a grande propulsora da cidadania como um conceito igualador, os grandes

movimen-tos do século XX já não são no sentido da igualação; são no sentido da diferenciação.

O movimento de mulheres foi o principal movimento deste século XX. E o que ele

quis? Ele quis igualdade? Sim, mas não para ser tratado como homogêneo. Queria ser tratado como diferente/igual. O movimento gay, o movimento negro são movi-mentos que põem em questão a ideia de que essa igualdade não pode privilegiar um padrão que é o branco, trabalhador do mercado formal. Portanto, nós temos que pensar numa cidadania que contemple a igualdade e a diferença dentro dessa ideia de uma igualdade complexa, portanto, uma ideia de uma cidadania diferenciada. Com as cotas é assim e também em outras formas de políticas seletivas. Se o liberalismo propõe uma política focalizada por oposição a um sistema universal, quando nós falamos de cidadania diferenciada, estamos pensando em políticas seletivas para tra-tar diferentemente demandas diferentes dentro dos sistemas igualitários universais. Por exemplo: o programa de saúde da família pode ser pensado como um tipo

dife-renciado seletivo para populações excluídas, mas não por oposição ao SUS, mas para incluí-las no SUS, desde que ele seja realmente capaz de introduzir essa população

em um sistema integral de qualidade.

Com relação à questão do público, eu acho que essas transformações de gêne-ro, de idade e tudo mais também transformaram a separação entre o público e o

privado. Na verdade, hoje, você fala de um espaço público que inclui, por exemplo, o espaço doméstico onde antes só vigorava o pátrio poder. Agora o Estado pode interferir nesse espaço doméstico, ter o Estatuto da Criança e do Adolescente, pode

ter uma série de regulações num espaço que antes não era espaço público, então, há

ganhos efetivos no espaço público, embora haja limitações. A empresa continua até hoje sendo um espaço do privado, não publicizado, onde sequer nós conseguimos

que os trabalhadores possam se organizar dentro da empresa com todo o movimen-to sindical que temos. Então, há espaços que não foram publicizados, mas há outros que foram, o que representa um grande ganho da democracia.

Eu vou paro o último ponto, então, que é a ideia do sujeito: a saúde é um exemplo muito claro da constituição de um sujeito político, já que é uma reforma

democrática que começa fora do Estado, mas que se dirige a uma transformação do Estado, a uma reforma do Estado, é o Movimento Sanitário que se organiza para combater o Estado ditatorial e para transformá-lo. É um momento fundante da

re-forma sanitária, que é o momento da subjetivação, da construção desse sujeito. E não estamos tratando a subjetivação como processo referido à individualização. Como processo social, não quer dizer que seja de indivíduos; podem ser atores coletivos. O Movimento Sanitário incluía um conjunto de atores coletivos que se

individuali-zaram no sentido de construir uma identidade, uma identidade coletiva. Então, há uma confusão entre o individual e o coletivo.

Mas esse processo de subjetivação, no momento em que ele se dirige para uma reforma do Estado, se propõe a constitucionalizar um conjunto de direitos e

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obrigações e até estruturas de organizações do sistema e também a institucionalizá-

los. A contradição é muito grande, por exemplo, entre o fato de que o êxito da re -forma sanitária representa o solapamento da sua base porque, na medida em que nós institucionalizamos, trouxemos os atores sociais para dentro do Estado (todo

mundo que está aqui, que está no Ministério era do Movimento Sanitário. Agora é o

ministro, é o Paulo Buss, não sei quem... Todo mundo é poder, é Estado).

Ao fazer essa transição para a institucionalidade, há um conflito entre o poder

instituinte e o instituído. Quer dizer, há um momento em que houve o predomínio

da subjetivação; outro, o predomínio da constitucionalização; e mais recentemente,

o predomínio da institucionalização. De repente, nós estamos aí com todo mundo preocupado em fazer as instituições funcionarem, mas cadê a sociedade? E de onde vem nossa capacidade transformadora? Não é do estado. Pode-se ter as melhores pessoas, como são os nossos melhores quadros que estão lá, mas eles estão presos na armadilha que é essa institucionalidade do poder. Então, é preciso revigorar a

socie-dade civil, reconstruir esses sujeitos políticos para que possam ser interlocutores dos

companheiros nossos que estão lá, mas que se garanta como característica da socie-dade civil a sua capacisocie-dade de autonomia para fazer um discurso crítico. Foi por isso que nós refundamos o CEBES e é por isso que a gente está nessa cruzada nacional saindo por aí fundando núcleos do CEBES e tudo mais. Nós estamos fazendo um

conjunto de seminários dos temas mais importantes da reforma. Fizemos um sobre a seguridade social (que era a pergunta final aqui) na semana passada. Estes seminários têm uma característica muito interessante, que é a marca do CEBES, qual seja, colo

-car o avanço do conhecimento a serviço da transformação política. Ali estavam os

melhores intelectuais, mas também estavam os maiores movimentos sociais, como a

CNBB, a CUT. Estavam lá técnicos da ANFIP, enfim, todos os atores fundamentais

do campo da Seguridade reunidos em um mesmo espaço de interlocução, numa

con-cepção gramsciana do intelectual orgânico, e é desse arranjo que vai sair uma carta,

que é a carta do Rio de Janeiro que esses vários atores vão assinar e vamos levar ao Congresso, à sociedade e ao governo denunciando os riscos que estão ameaçando a seguridade social. Desta forma, estaremos reconstruindo, então, essa base histórica da transformação social no Brasil em defesa dos direitos sociais.