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Considero que o que expus anteriormente mais ou menos responde à primeira questão, que eu tentei estabelecer na exposição anterior dos distintos sentidos da

ideia de globalização, os fundamentos teóricos... Acho que a resposta estaria ali.

Vamos, então, à questão do pós-consenso de Washington, a terceira via, o desenvol-vimentismo e nós.

O neoliberalismo chegou aqui atrasado, em parte pela conquista democrática

da Constituição de 1988. Como disse Sônia Fleury, Ulisses Guimarães chamou-a de

Constituição cidadã. Mas a categoria de cidadania estava sendo varrida pelo con-senso neoliberal. Então, o impulso democrático brasileiro atrasou o neoliberalismo.

Segundo atraso: o fracasso relativo do governo Collor. Quando Fernando

Henrique assume, em 1994, já é o ano da primeira grande crise neoliberal no México, tanto assim que, em certas coisas, ele não se aventura muito, porque já percebe a fra

-gilidade relativa do modelo. Além disso, houve uma oposição de esquerda no Brasil. Penso que, na Argentina, Carlos Menem levou o peronismo a participar do processo

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de privatização neoliberal. Sindicatos argentinos participaram da privatização de

linhas ferroviárias, do metrô etc., então ficou praticamente um vazio. Assim, um Estado tão forte como a Argentina foi dilapidado. Os argentinos não tinham mais

patrimônio público algum, praticamente nada. No Brasil, houve um certo atraso e o neoliberalismo começou a ter crises muito cedo. Em 1994, o México; em 1999, o

Brasil; em 2002, a Argentina. Ou seja, as três principais economias. Houve uma

primeira fase eufórica neoliberal: Thatcher/Reagan. Houve uma segunda fase, chamada terceira via. Era uma ideia de uma espécie de globalização, neoliberalismo

com coração humano, onde já teria sido feito o trabalho sujo do neoliberalismo (como a privatização) e então viria uma certa recomposição de políticas sociais, já

não mais universais. Blair e Clinton possuem essa característica. Para tudo, tem de

haver contrapartida; é a desuniversalização de ambos os direitos. Clinton assinou o fim

do Estado de Roosevelt em medidas que ele tomou expressamente. Então, isso começou com essa ideia de terceira via, algo que não seria tão estatizante quanto foi anterior- mente e não seria tão mercantil liberalizante quanto na primeira fase do neoliberalismo.

Aqui, embora o Fernando Henrique fosse convidado para as reuniões da ter -ceira via para mostrar que tem vida inteligente na periferia do capitalismo, que não é só o Menem quem toma champanhe com pizza na Casa Rosada, na verdade, ele teve um problema grave: ele queria ser o Tony Blair, contanto que o Collor tivesse sido a Thatcher. Mas ele precisou vestir o tailleur da Thatcher e fazer a privatização aqui no

Brasil porque já tinha fracassado na primeira parte. Por isso, ele não pôde usufruir

desses consensos pós-Washington etc. Ele teve de fazer um governo que, de fato, foi muito parecido com os outros, com algumas diferenças e particularizações. Então, eu acho que foi isso o que aconteceu.

Posteriormente, o que houve? O que vivemos hoje? Houve países como México, Brasil, Argentina e Chile com um consenso neoliberal profundamente ar -raigado na sociedade, como o Estado, a mídia privada etc. Nesses países, a própria

votação, a própria eleição de governantes com um sintoma de rejeição (foi derrotado

o Menem, foi derrotado o Fernando Henrique), não levou os governos a romperem com o modelo neoliberal. Flexibilizaram. Digo logo de cara que não colocaria no mesmo saco as análises que primam pela continuidade absoluta do Lula em relação ao Fernando Henrique. Estão errados e não se dão conta da realidade; brincam com

a realidade. Agora não saiu do modelo. A situação da Argentina com a Kirschner

é muito diferente da do Menem, embora não tenha saído do modelo. Igualmente o

Tabaré em relação à base, ou seja, têm de se fazer análises específicas para dar conta

disso, mas a verdade é que não saiu do modelo.

Os lugares onde mais se avançou na ruptura foram onde o consenso neo- liberal não conseguiu se consolidar. Não por acaso caíram tantos governos no Equa-dor e na Bolívia, derrubados pelos movimentos sociais, fracassou a ação democrática

com o Carlos André Perez que foi para a cadeia, fracassou Rafael Caldeira com o

Copei, partido do qual era líder na Venezuela... Quer dizer, não se consolidou a implementação dos modelos neoliberais, foram linhas de menor resistência onde se

pôde avançar mais. Mesmo na Bolívia, onde houve avanços significativos, a massa

da população indígena – tanto a que está em Cochabamba quanto a que está em Elauto – mantém formas de vida, hábitos... Não é um país de shopping centers. As for

-mas de vida se mantiveram, então, foi possível se recompor. A crítica fundamental

que foi feita pelo Álvaro Garcia Linera é a de que a esquerda tradicional boliviana olhava para o índio e falava: “Em que você trabalha, é na terra? Então, você é cam-ponês, pequeno produtor rural aliado da classe operária.” Quer dizer, tirava toda a

identidade histórica. Foi necessário recompor isso para ter um sujeito histórico que está dirigindo esse processo atualmente desafiante. Foi uma coisa totalmente

dife-rente, mas onde houve menos implementação do modelo neoliberal. Então, essas categorias chamadas de terceira via têm isso. Desenvolvimentismo é outra coisa. O

inimigo da democracia na América Latina, hoje, continua sendo o neoliberalismo.

Existe uma retomada de modelos de desenvolvimento que não são os que existiam

anteriormente. As alianças do Lula com o grande capital não são para a burguesia; são industriais, para o grande capital financeiro. E na Argentina também. Então, na

verdade, é outra coisa, outra modalidade.

Agora, o fato é que dissemos no Fórum Social Mundial: “Sem sair do

mode-lo, não se retoma a expansão econômica.” Está retomada a expansão econômica. Não o que queríamos, porque não sei se virá no capitalismo ou não, mas há um ciclo expansivo da economia. Também dizíamos: “Não haverá política redistributiva sem sair do modelo.” Não saímos do modelo, mas há assistência social maciça. Então,

há um elemento novo aí para a categoria que é preciso dizer o que é. Acho que não é o que foi a terceira via. A terceira via, na verdade, não chegou a ter vida útil até

por isso. Fernando Henrique não pôde ser o distribuidor. Ele teve o trabalho de fazer a privatização pesada. Eu acho que o well fair state transformou o capitalismo. O capitalismo do well fair state é outro em relação ao que era em 1929. Esse tema que a Sônia colocou, o da “cidadania e relações de classes”, devia ser incorporado pela concepção marxista. Com toda a crítica que fazemos à burocratização dos países do leste europeu, o que era aquilo? Reduzia a massa da população a trabalhador.

E quem chegou com a reforma da política? A burocracia estatal. Com a ilusão de que

o trabalho estava emancipado e de que não era necessário ter construções políticas

da democracia socialista. A coluna de Paris foi belíssima, mas era factível reconstruir

uma democracia social sem uma estrutura política, só com uma democracia direta do tipo “resolvemos e colocamos em prática...”. Foram massacrados pelo exército francês. Não só por isso, mas é preciso ter um exército regular para defender aquele

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Quanto ao tema da cidadania, no Equador os movimentos indígenas dizem:

“Agora a hegemonia do Rafael Corrêa é o tema da cidadania.” Mas a cidadania com

um profundo conteúdo social. Quem abandona a cidadania nas mãos dos liberais está perdido, porque, na verdade, os neoliberais são o quê? É uma máquina brutal de desapropriação de direitos. Então, superar os neoliberais é universalizar direitos. Como dizia a Revolução de 1948, temos de dar à democracia uma alma social, temos

de rearticular (como disse Sônia) as noções de classe e as noções de cidadania. A

noção de classe remete a uma relação econômico-social. Vamos fazer o quê? Vamos deixar esta farsa de achar que o trabalhador é hegemônico? Por nacionalizar os meios de produção e não teremos mais burguesia, então... Ele está na fábrica igualmente explorado. Qual é o direito de cidadania dele? É o de votar uma vez a cada tantos anos? Não... Coisas como orçamento participativo dizem respeito a retomar teses clássicas do marxismo de uma outra maneira. Decisões sobre temas fundamentais da vida cotidiana para a cidadania organizar a partir da sua atividade social. É um tema teórico que Poulantzas esboçou um pouquinho quando falava de combinar de-mocracia direta com dede-mocracia representativa. Isso apontava genericamente, mas a articulação real teria de ser feita ainda.

Eu acho que o well fair state como tal não voltará a existir, pois o Estado está

suficientemente desarticulado. Agora, a reconquista dos direitos sociais tem de estar

articulada com coisas como o orçamento participativo e a rearticulação da esfera social com a esfera pública. Para terminar, eu diria o seguinte: os movimentos soci-ais foram protagonistas fundamentsoci-ais na resistência ao neoliberalismo. Quando se criou uma crise hegemônica de disputa por um novo poder, os movimentos sociais

que ficaram na linha de autonomia dos movimentos sociais perderam o bonde da história. Ficaram refluídos em chapas, os piqueteiros acabaram e isso tudo porque

não retomaram a disputa pela esfera política. Os piqueteiros disseram: “Que se vayan todos!” Não se vão! Ou você tem força para botá-los ou então... Quase o Menem

ganhou... Ele ia dolarizar a Argentina e ia estrepar a América Latina inteira. A

dife-rença dos bolivianos é que os movimentos sociais fundaram um partido e disputam a hegemonia igualmente na Venezuela, igualmente no Equador, igualmente no Para-guai... Então, passou-se para a fase da disputa hegemônica; tem-se de rearticular não

da forma tradicional, rearticular a esfera social com a esfera política. A questão da cidadania está ligada a isso hoje.