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breve nota sobre a olisipografia dos anos 30 do século XX

5. A cidade maldita

5.1. A cidade sedutora, a cidade de sedução

5.1.1. Seduções modernas

Há, no mínimo, três narrativas publicadas em 1938 que se centram no tópico da sedução urbana: o conto “A minha inimiga” (Caminhos magnéticos) de Branquinho da Fonseca, a novela Maria Adelaide de Manuel Teixeira-Gomes e o romance Bússola doida de Aleixo Ribeiro.168 E embora haja em todas estas narrativas a figura donjuanesca que quase em todos os aspetos adere ao protótipo de um sedutor patriarcal, é sobretudo no último título que largamente se explora a questão dessa dupla sedução, da mulher e da cidade (Lisboa). Além do tema, trata-se também de um dos primeiros trabalhos literários em Portugal que se perfilam decididamente como modernos. Com efeito, neste romance, avaliado por João Gaspar Simões como “o primeiro romance português a propósito do qual a invocação do nome de Marcel Proust não seria descabida” (Lisboa, 1994, p. 554), e que poderia ser designado como bildungsroman (romance de formação), o protagonista António recorda o tempo da sua adolescência e da sua procura do amor. Este esforço fracassa porque o feitio de António, como

168 Tanto no conto fonsequiano, como na novela de Teixeira-Gomes, a figura masculina vacila entre duas mulheres que o atraem por motivos diferentes. Curiosamente, o protótipo feminino fonsequiano que corresponde a uma donzela bela e pura (tópico de femme fragile ou donna angelicata) e que é tão bem retratado nas narrativas mais famosas como Rio turvo ou O Barão, é neste conto subvertido em favor de uma mulher experiente e perigosamente sedutora. Na novela de Teixeira-Gomes, ao contrário, mantém-se a figura de Lolita que é, ao adoecer, substituída por uma outra, mais nova e inocente.

170 ele reconhece no fim, não pode conduzir a uma vida normal e pacífica. Pelo contrário, os seus atos e gestos são orientados por uma “bússola doida”, à qual corresponde a imagem da trepadeira, a planta que cresce de um modo incompreensível como o amor:

Não, pessoalmente não descobri nada. Foi a trepadeira que mo descobriu. O amor é uma coisa que não se agarra acto continuo ao objecto amado, fá-lo como os caules trepadores que não se dirigem logo ao suporte para que sentem imediatamente espigar as suas gavinhas; seguem-lhe ao longo, têm até pequenos desvios ariscos e só depois, furiosamente, se enrolam ao suporte. Assim, entre os vegetais, porque entre os homens pode ser mais complicado. (Ribeiro Júnior, 1938, p. 89)169

Mas a sua inconstância amorosa não faz dele, também, um Don Juan português porque as mulheres, com as quais ele se enlaça, não o enchem de satisfação, e isso não por causa delas, mas por causa do seu próprio fastio pessoal, soturno e melancólico, que não lhe permite viver em felicidade real ou imaginada. Maria do Carmo Cardoso Mendes diz a este propósito:

De facto, António não é uma representação de Don Juan. O repúdio da personagem mítica pelo casamento é nele compensado pela idealização da união duradoura; o ímpeto erótico é substituído pela hipótese de diversas uniões matrimoniais que, mais ou menos conscientemente, suplantam a fragilidade do amor reduzido ao domínio do erotismo; a multiplicação de conquistas não conduz a uma sexualidade vivida em plenitude. (Mendes, 2014, p. 425)

Portanto, mais que as relações efémeras que António estabelece com várias mulheres, interessa observar os sentimentos que ele experimenta em relação a si e ao seu ambiente, pois são estes sentimentos que compõem a verdadeira trama do romance. Só por esta introspeção, com efeito, o romance pode ainda despertar certo interesse hoje em dia. A partir do início verifica-se também que as emoções que António minuciosamente reconstrói e articula, desde a distância temporal e afetiva, surgem em função do envolvimento espacial. Tudo ao redor se projeta no interior do sujeito e vice-versa numa estranha simbiose. Deste modo, por exemplo, António sente cair a sua vida como os pingos na casa de banho (“Noutras noites era aquele pingo de água que caía, caía monótono, lento, mas infatigável, no silêncio da casa de banho e de todo o prédio. [...] Como eu, talvez, como a minha vida!...” p. 24). Por outro lado, as vertigens que António sente muito dentro de si propagam-se ao exterior (“Eram vertigens súbitas, esvaímentos inexplicáveis, que logo tomavam um aspecto assustador, propagando-se a tudo em redor”, p. 24). Noutras passagens ainda, o protagonista entra em relação íntima com

169 Usa-se aqui a indicação extensa do autor como Ribeiro Júnior, para evitar a confusão com Aquilino Ribeiro. Todas as citações deste romance serão a seguir identificadas só pelo número de página.

171 um elemento espacial como é, por exemplo, a rua (“Eu já nem sequer pensava; quando, altas horas, vinha para casa, eram as ruas que pensavam por mim.” p. 24). A duplicidade entre o sujeito e o espaço circundante, criada através dessas e de outras analogias referidas na narrativa, encontra ainda um reflexo num paralelismo entre o sujeito narrador e uma figura anónima que representa a vida banal, mesquinha e sórdida da rua. No primeiro caso, há um vendedor de mexilhão que incompreensivelmente passa pelas ruas à noite, quando todos já estão recolhidos: “A certa hora anoitada, passava lá pela rua o homem do mexilhão, e não sei quê da soturnidade do seu pregão àquela hora se conjugava perfeitamente com a minha soturnidade.” (p. 24). De facto, a figura espetral do vendedor solitário, cuja presença nas ruas é anunciada por um pregão “soturno”, funciona como um espelho côncavo do personagem-narrador, imagem inversa do fauno grotesco.170 Tal como o vendedor, o narrador costuma passar pelas ruas da cidade adormecida, caçador do sexo feminino destituído de transcendência e mistério e rebaixado a um elemento puramente corporal, consumível.171 Outra situação delineia-se numa passagem introspetiva quando António, depois de reconquistar a relação com uma das ex-namoradas, cisma sobre o seu feitio faunesco enquanto um amigo-duplo caminha ao seu lado: “No entanto, ao deixar Estela naquele dia em que a tive pela primeira vez, quando já na noite das ruas fugia de mim, um amigo desconfiou, caminhando a meu lado, perscrutando-me, como essas pessoas indiscretas que nos querem ver por dentro e adivinharem-nos” (p. 263).172 O terceiro momento decisivo desvela-se no final do romance, quando o narrador se apercebe que ele próprio criara o seu drama pessoal ao querer assemelhar-se aos heróis romanescos. O pior é quando compreende que esse drama, afinal, não tem interesse absolutamente nenhum, por ser completamente banal:

E quando supões que assim te poderias exibir, em qualquer circo, como um fenómeno humano, um prodígio, vamos – um abôrto, o público olhava para ti e não veria nada de extraordinário. Seria, por certo, como nesses ajuntamentos da rua, que a

170 De facto, António dá-se conta de que a boémia só lhe aprofunda a melancolia inata (“A minha única enfermidade vinha a ser a boémia, que pretendia ser alegre e não passava de vaga, arlequinesca, triste.” p. 38, “a minha decepção por tudo era tão grande que eu não podia sequer perder-me na boémia”, p. 37).

171 O narrador refere-se várias vezes ao “consumo” sexual (que já não tem nada a ver com o erotismo), p. ex. “Nos meus braços ia apertando corpos, aqui e acolá e que eram sempre o mesmo corpo, sem já ser o da interessante mulher que eu despira, pois só custava mais ou menos dinheiro”, p. 37, ou “Já não via caras bonitas, nem lindos vestidos, nem belos chapéus, mas só ancas reboludas, só colos esféricos ou ponteaguçados como gorros ilheus, só bôcas, só sexos contrários.” (p. 76).

172 Repare-se no tópico de doppelgänger (termo cunhado por Jean-Paul Richter em 1796 que significa precisamente o duplo ou segundo eu, literalmente “alguém passando ao teu lado, o companheiro de viagem” [Bravo, 1996, p. 343, tradução minha]). Em geral, a imagem do duplo pode ser percebida em forma de reflexo no espelho, retrato, sombra, ou então como uma cisão pessoal. Neste romance parece tratar-se de uma imagem de sombra que exprime a profundidade da desilusão do narrador, a consciência da sua própria imperfeição e fraqueza inata.

172 gente fura para ver o que há de extraordinário, e damos com um rato, um pequenino rato, meio-morto, assustado, esquivo, ou um homem caído, que sofre, e quando nos debruçamos sôbre êle, para ver o esquisito da sua dor, o fantástico da sua tragédia, parece que nos debruçamos sôbre um espêlho. Porque aquele homem se parece connosco, tem a mesma figura humana – , tanto que poderíamos ser nós próprios. (p. 272).

Estas e outras passagens de índole emotiva correspondem a lugares de força do romance e, como tal, são muito mais importantes de que as conquistas amorosas. Estes lugares, precisamente, fornecem uma melhor possibilidade de avaliar o grau de introspeção do sujeito porque expõem o drama do homem moderno: a sua vontade de recriar grandes aventuras imaginadas e o choque ao saber que essas aventuras que se queriam forçosamente viver não são nada. A depressão e melancolia defluentes deste estado condiz com a imagística vertical, abismal, que percorre toda a narrativa, análoga, neste sentido, à novela de José Rodrigues Miguéis.173 Tal como Renato da novela migueisiana, António sente, nas profundidades do seu ser, a existência de um filão secreto, do qual os outros nem sequer suspeitam (“A mamã não supunha [...] a série de crimes, de coisas monstruosas, que havia em mim.” p. 49).

Para além da duplicidade, verificada a nível de analogias entre o sujeito e o espaço ou a figura que esse espaço representa (vendedor ambulante, amigo-duplo que caminha ao lado, um pobre da rua), é possível reparar que a imagem da própria cidade entra em conexão íntima com o narrador-personagem. Neste sentido, podemos detetar dois tipos de representação de Lisboa, dos quais um seria eufórico e estimulante e o outro distópico. O primeiro tipo corresponde ao espaço mais referenciado no romance, a Baixa, que também funciona como o espaço privilegiado de sedução. O narrador, por um lado, sente-se irresistivelmente seduzido por esta parte urbana, por outro, ele próprio adota a sedução como táctica privilegiada no relacionamento com as mulheres.174 O segundo tipo de representação, o distópico, releva-se 173 Existem também analogias com certos poemas presencistas. Por exemplo, num poema introspetivo de José Régio, intitulado “Narciso”, o sujeito lírico experimenta uma vertigem ao penetrar dentro de si, examinando a imagem que o seu eu reflete no poço da sua escuridão. Aquilo que vê não é uma imagem lisonjeira, é antes uma fonte de angústia e náusea. De um modo semelhante, no poema “Descida aos infernos” (Orfeu rebelde, 1958), o sujeito lírico de Miguel Torga mergulha no poço infernal do seu interior para ficar, por fim, consternado e gelado de horror. Estas e outras imagens que proliferam na literatura do início do século XX denunciam uma nova crise gerada no sujeito moderno, instável e fragmentário. Alimentada pelo interesse tanto médico, como artístico, esta crise torna-se, com efeito, um dos sindromas do mundo cada vez mais precipitado e menos transparente. Aquilo que ainda no mundo oitocentista era considerado legível e maneável, é abalado no dealbar do século XX, época de uma cisão profunda, de uma euforia pelo vertiginoso avanço científico-tecnológico e, simultaneamente, de um dos maiores pesadelos de sempre, de holocaustos, câmaras de gás, campos de comcentração e extermínio em massa.

174 Vejam-se os seguintes excertos: “lá fora havia apenas uma possibilidade de mundo, de passeios pela Baixa, de cafés, de cinemas, de mulheres” (p. 28), “(...) depois de estudar para o liceu, esmiuçando matérias de física e naturais, ia desiludir-me correndo a Baixa ou assestando as minhas miras nas lojas de chá, pois, ao supor que descobrira a minha fatal admiradora, ao segui-la, ou pior, ao falar-lhe, deparava sempre com umas atitudes e umas palavras de ofensa, banalíssimas, descoroçoantes.” (p. 36), “durante as melhoras do meu fígado, comecei a passear

173 sobretudo na comparação de Lisboa com outras cidades europeias, com o “claro encanto de Nice e Monte Carlo”, “tumulto libertário e artístico de Paris”, “majestade e delicadeza íntima de Londres”, “solenidade e cultura de Berlim”, “romantismo e jardins de Viena” (pp. 70-71). Esta comparação não é muito vantajosa para a capital portuguesa. Ainda por cima, a Lisboa noturna é descrita pelo narrador como “cidade morta” (p. 51) e “mal iluminada” (p. 71), na qual se encontram recantos que representam o lado sombrio da cidade:

Tínhamo-nos então afastado do centro da Baixa por ruas onde não me parecia que morasse alguém, e dessas metemos por outras, que subiam, mesmo se alcançavam por escadinhas, e que eram estreitas, sombrias de pobreza, assim como que se furtando, acanhadas, umas das outras. E na sua sombra, uma sobra que não me pareceu só feita de míngua de luz, mas ainda de qualquer coisa que estava no ambiente e, mesmo, estampada na face, na expressão das casas, talvez até na das gentes – calei-me tomado por uma espécie de respeito, de aflição inconfessável. (p. 162)

A sombra vislumbrada pelo narrador funciona como metáfora do espaço sórdido, não só no sentido físico, mas também social. Esta sombra, com efeito, corresponde a um espetro urbano, representação da sua miséria e pobreza, assemelhando-se a outros espetros que assombram grandes cidades, como é por exemplo “smoke ghost” chicaguiano de Fritz Leiber do conto homónimo, publicado em 1941, que encarna um novo tipo de fantasma, moderno e industrial, nascido da sujidade e violência urbana. Com efeito, é esse espetro abstrato em forma de sombra que fornece ao narrador mais uma experiência, já não pessoal, mas coletiva, através da qual António sobe mais um grau no processo do seu amadurecimento. Só nessas circunstâncias se dá conta de que todos os dramas interiores que ele cria artificialmente não são nada em comparação com o verdadeiro drama humano, que é a pobreza: “E ninguém pode calcular quantos dramas vividos eu agora via passar, parado, atento, à esquina de qualquer rua!” (p. 169). Mas o melhor exemplo de como a cidade se projeta na subjetividade do narrador encontra-se na passagem em que António regressa de uma viagem irrefletida a Paris, na companhia de uma senhora mais velha. O narrador tem novamente oportunidade de cotejar o aspeto da capital portuguesa com outra grande cidade e, simultaneamente, refletir sobre a

pela Baixa e a sentir as mesmas inquietantes perturbações sexuais” (p. 76), “Depois, ela ainda me encarnou a impressão sentimental que sempre me tinham despertado as empregadas dos estabelecimentos da Baixa. Essa impressão datava já do tempo em que eu andara à procura da minha mulher romanesca, que não seria naturalmente nenhuma daquelas raparigas. E, no entanto, elas tinham algo de estranho, não eram como as pequenas minhas conhecidas ou qualquer das elegantes da Baixa.” (p. 61), “Seguia-a pela Baixa, ela ia entrando em sucessivos estabelecimentos para fazer compras” (p. 106).

174 analogia entre si e Lisboa, cujos destinos se espelham mutuamente, de um modo irracional e oculto:

Da minha pobreza compartilhava em volta a própria Lisboa, que antes me parecera, como eu, senão rica, pelo menos satisfeita consigo, com as suas ruas, as suas lojas, o movimentos elegante da Baixa: e agora me surgia estreita, com pouca vida, pouco movimento, sobretudo sem a grande sumptuosidade, o monumental dos boulevards e dos monumentos de Paris, que, ainda quando do passado, respiravam o grande fausto de antanho, digno de si. E errei durante horas por essa Lisboa empobrecida, sem ao menos um passado que lhe dissesse: “Foste grande, admirável!” (talvez que, como ao passado de Lisboa, também um terramoto espantoso tivesse derruído o meu). (p. 196)

Nesta íntima comunhão entre o sujeito e o espaço urbano anuncia-se mais uma questão que pode ser analisada na prosa portuguesa da década de 30 do século XX e que corresponde à reflexão sobre o passado catastrófico de Lisboa e o seu simbolismo. Esta questão, de facto, constitui mais uma vertente interpretativa da imagem babilónica projetada à capital portuguesa.