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Sekhmet nas fontes de carácter literário

2. Bastet e Sekhmet: os testemunhos

2.2. Sekhmet

2.2.2. Sekhmet nas fontes de carácter literário

No Conto do Camponês Eloquente, há uma referência a Sekhmet quando Khuenanupu diz ao intendente Rensi: «Olha, tu superas a senhora da pestilência! Se tu não tens nada, ela não tem nada; se não há nada contra ela, não há nada contra ti; se tu não actuares, ela não actuará!»254. A afirmação do camponês é algo ambígua, no sentido em que poderá dar azo a duas interpretações diferentes: uma, a roçar o sacrilégio, a exaltar o oficial e a sobrepô-lo à deusa leoa; outra, depreciativa, tentando dizer que neste caso o oficial estaria a comportar-se de forma pior do que Sekhmet. Tendo em conta o contexto onde esta frase surge, depois de críticas ao administrador, e seguindo imediatamente a frase «Pareces um mensageiro de Khenti!», o sentido da afirmação de Khuenanupu parece ser o de depreciar o intendente, opinião partilhada por Telo Canhão. O autor afirma, ainda, que o camponês não trata as divindades pelo nome «para não atrair maus presságios»255, o que faz todo o sentido se se considerar a natureza delas. As frases seguintes também se imbuem de um carácter ambíguo, mas em todo o caso parecem criar uma relação de dependência entre a deusa e Rensi, o que, se for o caso, poderão estar a atribuir à deusa guerreira qualidades jurídicas, algo de novo no que aos seus atributos diz respeito.

Na História de Sinuhe o nome de Sekhmet aparece numa conversa entre Sinuhe e o rei de Retenu. Quando o egípcio conta ao seu interlocutor que o monarca do Egipto tinha partido para o Além, pergunta-lhe o rei: «Como será esse país sem ele, esse deus poderoso, cujo terror se estendia aos países estrangeiros, como Sekhmet num ano de peste?»256. Se por um lado esta expressão parece querer glorificar Amenemhat I, é recorrente a utilização da deusa guerreira como forma de assustar os estrangeiros. O ano da pestilência presume-se que seria um ano de doenças, capacidade de que Sekhmet se revestia, e é muito provável que num ano em que surgissem um determinado número de doenças as pessoas associassem à fúria da deusa e a temessem, daí a comparação que aqui é estabelecida. É quase que um medo mortal que os estrangeiros, e muito possivelmente os próprios egípcios, deveriam ter.

253 Idem, p. 511.

254 CANHÃO, T. F., «Conto do Camponês Eloquente». Textos da literatura egípcia do Império Médio…, p. 398.

Versão inglesa in LICHTHEIM, M., AEL, I, p. 174.

255 Idem, p. 484, nota nº 114.

256 CANHÃO, T. F., «História de Sinuhe», Textos da literatura egípcia do Império Médio…, p. 196. Versão inglesa

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Nas instruções do Papiro Insinger, a 25.ª instrução prende-se com a questão da retaliação/vingança, sendo os seus praticantes avisados que «o seu castigo é mais pesado do que o castigo de Sekhmet quando ela se enfurece»257. Há novamente menção à fúria divina da deusa guerreira e às consequências que esta traz: é o castigo divino um dos catalisadores da prática da maet e todos aqueles que não a cumprirem sofrerão a respectiva punição.

Num hino aos deuses, há menção a um homem com um cargo que parece estar relacionado com arquitectura258, cujo nome é Merisekhmet, «Amado de Sekhmet»259. No texto, Merisekhmet apresenta-se também como cantor, aparentemente ao serviço de Amon, no entanto fica no ar a dúvida relativamente à ligação com Sekhmet. Estaria ele ligado à clerezia da deusa guerreira?

Um poema de amor do Papiro Harris 500 refere o trio menfita na esperança de que o seu declamante consiga uma rapariga com quem passar a noite. Numa das traduções lê-se: «A água está cheia de vegetação: Ptah é os juncos, Sekhmet os rebentos de lótus, a deusa do orvalho os gomos de lótus, e Nefertum as flores desabrochadas»260. Noutra tradução pode ler-se que «o rio é como se fosse vinho, os seus juncos são Ptah, Sekhmet a sua folhagem, Iadet os seus gomos, Nefertum as suas flores de lótus»261. Este poema parece servir-se da tríade menfita como um cenário amoroso idílico, e poderá estar aqui patente a concepção divina de Nefertum por Ptah e Sekhmet, na medida em que a união dos rebentos/das folhas do lótus com o junco forma um lótus aberto, desabrochado, em flor. Observa-se aqui a combinação de duas plantas sagradas para os egípcios262 e, por extensão, Nefertum poderá ser visto como o resultado desta simbiose botânica. A questão de Ptah ser o junco não é muito explícita e falta saber aqui que tipo de junco seria Ptah, se pertencente à espécie Arundo donax ou se integrante do Cyperus papyrus e a questão da diferenciação pode ser importante no sentido em que se o junco do texto se referir à planta do papiro, então há aqui uma representação do Alto e do Baixo Egipto, retratado no lótus e no papiro, respectivamente. Uma vez que taxonomicamente ambas as plantas pertencem à ordem Poales, e que recebem o nome bastante abrangente de «junco» não se torna explícito perceber a que se refere o texto. No entanto, se o objectivo era esta representação, não será tão descabida assim, uma vez que Sekhmet era vista como a deusa protectora do Alto Egipto e, por esta ordem de ideias, Nefertum representaria a união das Duas Terras, o que significa, muito

257 LICHTHEIM, M., AEL, III, p. 212. 258 No inglês, Outline draftsman of Amon. 259 RITCHARD, J. B., ANET, p. 371. 260 FOSTER, J. L., Hinos, p. 165. 261 LICHTHEIM, M., AEL, II, p. 189.

262 Cf. SEGURO, M. J., «Junco». Dicionário do Antigo Egipto, pp. 467-468; MACHADO, M. J., «Lótus».

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provavelmente, que o autor deste poema era adepto da cosmogonia menfita e dos seus intervenientes. Convirá referir ainda a deusa Iadet, conotada aqui com o orvalho, deusa pouco conhecida e que poderia pertencer à família divina de Mênfis, quer como irmã de Nefertum, quer como irmã de Sekhmet ou de Ptah.