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Sekhmet nas fontes de carácter mitológico

2. Bastet e Sekhmet: os testemunhos

2.2. Sekhmet

2.2.3. Sekhmet nas fontes de carácter mitológico

A fonte que é talvez mais importante nesta categorização é a que diz respeito à génese da deusa leoa, explanada no mito da destruição da humanidade. De acordo com este, a humanidade conspirou contra Ré, já idoso. O deus solar convoca um concílio divino para decidir o que fazer. Os deuses, especialmente Nun, o pai de Ré, decidem que o melhor é enviar o Olho de Ré para apanhar «os que conspiram com coisas más». Discute-se então que o olho por si não é suficiente «para os punir por ti»263, sendo melhor enviá-lo sob a forma de Hathor. Numa tradução mais recente, a afirmação é totalmente contraditória, já que o que é afirmado é que «Não há Olho mais apto para os atacar por ti»264. De qualquer forma, a deusa veio e inicia a destruição da humanidade, matando os que se haviam escondido no deserto. Quando volta, Ré congratula-a e esta responde-lhe que «como tu vives por mim, eu prevaleci sobre a humanidade, e é agradável no meu coração», ao que o deus solar responde «Eu irei prevalecer sobre eles como rei, reduzindo-os». Segue-se, imediatamente, a frase «e assim foi como Sekhmet veio a existir, o mosto da cerveja da noite, caminhando sobre o sangue deles de Heracleópolis». Ré pede então aos seus mensageiros mais rápidos que viajem a Elefantina para recolher pigmento vermelho em abundância. Segue-se a produção de cerveja à qual se misturou esse mesmo pigmento, ficando a mistura semelhante a sangue humano. Produziram-se sete mil jarros de cerveja, e Ré, ao ver o resultado, ficou satisfeito. Quando o dia clareou «para a matança da humanidade pela deusa na estação de montante»265, Ré ordenou que o líquido encarnado fosse despejado no local onde Sekhmet iria continuar a sua vaga violenta, enchendo os campos em três palmos. Quando a deusa se aproximou e viu o que era suposto ser sangue, o seu rosto ficou iluminado, começando a ingerir a cerveja vermelha, sentindo no seu coração que era bom. Ébria, regressou sem ter levado a sua intenção avante.

Há vários aspectos a retirar daqui que se revestem de importância. Quando a ainda Hathor regressa no primeiro dia esta responde a Ré que a deleitosa sensação é agradável no seu

263 PRITCHARD, J. B., ANET, p. 11.

264 Le Livre de la Vache du Ciel, coluna 12, verso 47. Disponível em: http://sethy1.free.fr/vache1.html. Consultado

em: 21-01-2018.

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coração, já indiciando um gosto sanguinário, violento e destrutivo. A resposta de Ré parece indicar que este só conseguirá governar os humanos se diminuir o seu número. Porém, o tradutor do texto inserido em ANET, escreve, em rodapé, que a frase também poderia ser traduzida por «eu irei prevalecer sobre eles. Mas não os reduzas (ainda mais)»266, o que altera o sentido da vontade de Ré, mostrando agora um deus que pretende travar a destruição por si autorizada: ou acredita que é suficiente, ou se arrepende de a ter iniciado.

Sekhmet parece nascer da extrema violência de Hathor-Olho de Ré e o primeiro epíteto que lhe é dado é feito de forma bastante inteligente: funciona como uma antecipação do final do conto e que o mosto da cerveja em conjunto com o pigmento vermelho coloca a deusa num estado de embriaguez. A expressão seguinte perpetua o carácter sanguinário de Sekhmet e, dir- se-ia, sádico e macabro: ela caminha sobre o sangue dos humanos por si derramado. A referência a Heracleópolis não é clara, mas o tradutor coloca a hipótese de ser um trocadilho entre o nome em egípcio Henen-nesut («Cidade da Criança Real»267) e o vocábulo «rei» que

aparece anteriormente. Pode também ser um trocadilho entre Sekhmet e o deus solar, apresentado no documento como o rei do Egipto (Sekhmet, filha de Ré, a Criança Real filha do Rei). Mais à frente, a deusa fica com o seu rosto iluminado com a visão do sangue e bebe depois a cerveja, julgando ser o fluído vital, o que denota a sua sede sanguínea, literal e figurativamente. Entretanto, convirá aqui frisar que Sekhmet se preparava para beber sangue humano o que dá um carácter bastante violento e grotesco à imagem da deusa inscrita no mito. Sekhmet aparece ainda num manuscrito datado do reinado de Ramsés II, glorificando a cidade de Tebas como o local da criação. Num primeiro momento, Tebas é denominada como o Olho de Ré surgindo «para unir as terras com o seu ka, vindo para descansar e pousar em Acheru na sua forma de Sekhmet, a senhora das Duas Terras»268. Numa época em que o deus Amon ganha preponderância, é curioso observar este papel de Sekhmet na cidade que seria de Amon por excelência. Porém, não é possível perceber o sentido da forma de Sekhmet dado ao texto, mas possivelmente seria a forma guerreira e protectora, defendendo Tebas e colocando- a acima das restantes cidades. É também possível que este papel de Sekhmet enquanto Tebas se possa estender ao papel da deusa no panteão egípcio e é possível que isto seja já um sinal da importância adquirida pela deusa leoa. Além disso, é inegável a menção ao lago sagrado do templo de Mut, aglutinando de uma só vez o Olho de Ré, com Sekhmet, com a cidade de Tebas e com a consorte de Amon.

266 Idem, p. 11, nota número 9 (itálico no original).

267 PADRÓ, J., «Heracleópolis Magna». Dicionário do Antigo Egipto, p. 413. 268 PRITCHARD, J. B., ANET, p. 8.

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Há um outro mito269 que poderá, de alguma forma, relacionar-se com a deusa guerreira. No texto que relata a criação por Ré, menciona-se como ele perdeu o seu olho e o substituiu por outro, enfurecendo o primeiro. Além disso, quando Ré repara que perdeu o seu olho, chora e daí nasce a humanidade. Esta característica violenta e furiosa de Olho de Ré parece surgir aqui, noção que será partilhada no decorrer da história do Egipto faraónico. Por outro lado, Sekhmet representará, no mito antes analisado, o concluir de um ciclo: é o Olho de Ré quem cria a humanidade e é ele quem leva a cabo a sua destruição, sob a forma de Sekhmet. Ainda no mesmo mito, Ré refere que quando o seu primeiro olho volta, Ré coloca-o na sua cabeça, i. e., como iaret, o que poderá explicar a ligação de Sekhmet com a deusa Uadjit.