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Senomar, o bardo

113 Senomar, o Bardo

Apesar do nome, o festival deixava Ahlen em frenesi durante quase um dia inteiro. No meio da tarde, Vallen, Ellisa, Ashlen e Rufus por pouco não se perdiam um do outro, em meio às multidões líquidas metidas em fantasias elaboradas.

A cidade se misturava às pessoas em um quadro bizarro e sempre móvel. Th artann era um lugar civilizado por excelência: uma cidade feita de pedra e metal, e tantas luzes que, no anoitecer, as estrelas se ofuscavam. E havia prédios altos; mansões e casas de comércio e depósitos, e um palácio que não tinha igual em Arton. Os habitantes de Th artann viviam entre dois mundos: de um lado, as casas da nobreza pingavam ostentação e luxo, nenhum adorno sendo demasiado para esfregar no rosto dos outros a riqueza dos seus moradores. Do outro, havia casebres lamentáveis, que serviam de moradia para os mais humildes. Em Ahlen, isso era visto como natural — os que não tinham esperteza para subir deviam ser mesmo pisoteados. Mas a Noite das Máscaras igualava todos: todos eram lordes e mendigos. Na Noite das Máscaras, aqueles que não eram nobres podiam entrar no palácio. Na Noite das Máscaras, todos eram seus próprios reis, e príncipes e prostitutas, e demônios e anjos.

A miséria cinza justaposta ao luxo colorido formava uma paisagem barroca. Em certo ponto, os olhos confundiam as manchas de excremento com os entalhes de metais preciosos. Em Th artann também havia coisas que a maior parte dos habitantes de Arton nunca vira: esgoto, ruas calçadas, guardas de uniforme. Podia-se ver a estrutura da cidade como uma bela moldura para um quadro medonho.

E as pessoas mal eram pessoas naquela noite. Seus rostos eram ocultos por adornos que variavam de simples placas brancas a faces artifi ciais de ouro. Havia capuzes de carrasco, cabeças de demônio entalhadas em madeira, couro apertado em volta do crânio como uma segunda pele. As cabeças mascaradas repousavam no topo de corpos envoltos em toda sorte de roupas: vestidos vaporosos, casacas, andrajos, armaduras. Sabia-se que o mais maltrapilho dos mendigos nesta noite poderia ser na verdade um lorde. O mesmo mendigo poderia acabar se deitando com uma rainha que era na verdade uma camponesa.

Os aventureiros haviam combinado suas fantasias, para evitar que se perdessem no oceano de vida. Eram todos animais: Vallen com uma cabeça empalhada de lobo encobrindo quase toda a sua própria, e a pele do animal escondendo o que restava da face. Rufus com uma imensa cabeça de coruja, feita de penas e armação metálica. Ashlen com uma face de gato também gigantesca e cuidadosamente fabricada, congelada num sorriso eterno e artifi cial. Ellisa com o rosto impassível de uma gazela de madeira, e um capuz que cobria o resto de sua cabeça. Todos usavam capas pesadas, para esconder suas armas. Pois, se havia algo proibido na Noite das Máscaras, eram armas. O que não impedia que muitos as levassem escondidas, e resolvessem naquela noite as disputas do ano todo. Mesmo em dias comuns, as armas eram vistas com desconfi ança em Ahlen: era uma de suas tão proclamadas vantagens sobre os outros reinos.

Artorius, Kodai e Nichaela não haviam entrado em Th artann — a cidade, assim como a maior parte do reino, era intolerante a não humanos. Enquanto Artorius difi cilmente poderia

se disfarçar, isto seria fácil para o samurai e a meio-elfa. No entanto, algum orgulho estrangeiro e um código de honra complexo impediam que Kodai se escondesse por trás de uma máscara, e ele decidira acompanhar o minotauro. Todos concordaram que Nichaela estaria mais segura com eles, e ela não protestou. Os três, depois de se esgueirarem por algum tempo, entraram no complexo subterrâneo dos esgotos. De lá, ocultos, seguiam até o local combinado. Rezavam para não se perder.

E Vallen e os outros abriam caminho com difi culdade pelos corpos colados. Era difícil imaginar como a cidade abrigava tantos: cada espaço das ruas parecia estar ocupado, e a população que comemorava era uma só coisa, louca e feliz, preenchendo tudo. Os aventureiros sufocavam no cheiro de perfume e suor. Havia música, aqui, ali e em toda parte. Muitos bardos diferentes cantavam melodias diferentes, e a cacofonia não parecia incomodar os mascarados, que dançavam no ritmo dissonante dos instrumentos que lutavam. Da mesma forma, todos pareciam cantar, a plenos pulmões e até que as gargantas sangrassem, e, além do suor e perfume, o ar estava repleto com o pesadelo de ruídos e o hálito bêbado de centenas.

Ellisa não soltava o braço de Vallen. Rufus já duvidava se aquilo era real ou ainda um sonho do achbuld. Ashlen, que dentre eles era o mais habituado às cidades, guiava o grupo por entre a fl oresta de caixotes gigantescos de pedra.

Havia, dentre os que comemoravam a Noite das Máscaras, aqueles que iam nus, à exceção do que cobria o próprio rosto. Deixavam que seus corpos fossem usados ao prazer de estranhos. Havia crianças, cujos pais naquela noite não eram pais, que se juntavam em alcateias e eram selvagens como crianças agrupadas e sozinhas podem ser. Havia, nos becos que o mar de corpos não ocupava, atos imorais ou terríveis ou nojentos. E, mais do que tudo, havia desejos sendo realizados. Pois aquela era a Noite das Máscaras.

Por sorte, o palácio era facilmente visível, e não fi cava longe. Os aventureiros se apressaram rumo ao seu destino.

Nos corredores escuros de pedra do esgoto, mal se podia imaginar o caos acima. Havia silêncio, um gotejar ocasional, ratos que guinchavam. Quietude. Fedor parado, fedor preso há muito tempo, fedor eterno e onipresente e espesso. Água escura, às vezes estática, às vezes numa correnteza grossa de imundície. E silêncio. E náusea incontrolável, vez por outra. E gotejar. E silêncio.

O maior barulho vinha de Artorius, Nichaela e Kodai. Cada passo enchia as botas de miséria líquida e respingava doenças. Os ratos fugiam. Os três aventureiros avançavam lentamente, guiados por um lampião que a clériga carregava. Artorius e Kodai tinham suas armas prontas, e as novas armaduras que haviam comprado antes.

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