• Nenhum resultado encontrado

As abordagens desenvolvidas no campo da crítica literária, com base nas tragédias gregas e, sobretudo, no mito de Édipo, se direcionam no itinerário histórico por múltiplos campos do saber, entretanto, um fato incontornável é que a retomada das discussões a partir do século XX se deve, em grande medida, ao trabalho do médico austríaco e pai da psicanalise Sigmund Freud, especialmente pelo lançamento de seu livro A interpretação dos sonhos, em 1900.

Entre as características mais relevantes da personalidade do médico austríaco, destaca-se o seu singular interesse pela literatura, em especial obras trágicas produzidas na Grécia Clássica, lugar histórico de onde Freud retoma uma série de mitos e narrativas, que o auxiliarão no desenvolvimento de suas mais importantes teorias psicanalíticas. Por seus estudos e contribuições para o campo da crítica literária, em 1930 o austríaco recebe de Frankfurt o “Prêmio Goethe”, uma honraria, até então, dedicada apenas aos profissionais da área da literatura.

Em 1908, partindo da dúvida: “de onde o poeta extrai os elementos básicos de sua arte?”, Freud escreve um artigo, intitulado: Escritores criativos e devaneios, no qual se dedica à compreensão do processo de criação literária. Para Freud, tal processo encontra-se relacionado ao ato de brincar, praticado pela criança, e ao sonho diurno, que também pode ser

compreendido como devaneio. Nesse sentido, a argumentação de Freud passa pela ideia de que todo ser humano, em seu íntimo, possui uma capacidade poética e que o comportamento de toda criança é semelhante ao do escritor criativo, visto que a criança reajusta ou reinterpreta o mundo exterior conforme o seu querer, transformando-o para melhor, por meio do ato de brincar. O jogo literário realizado pelo escritor surge como substituição dessas reinterpretações que são feitas pelos indivíduos durante o período da infância, e ao longo tempo, por meio das imposições sociais vão sendo gradativamente reprimidas.

[...] a criança em crescimento, quando pára de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios. Acredito que a maioria das pessoas construa fantasias em algum período de suas vidas. Este é um fato a que, por muito tempo, não se deu atenção, e cuja importância não foi, assim, suficientemente considerada. (FREUD, 1908, p. 136).

Tendo em mente que o fantasiar, que gradativamente se sobrepõe ao ato de brincar, encontra-se diretamente vinculado aos processos oníricos, Freud busca refletir como encontra-se dão as relações entre as fantasias e os sonhos. Além disso, também busca refletir sobre o modo como os desejos ocultos de nós mesmos em nosso subconsciente se manifestam durante esse processo:

Não posso ignorar a relação entre as fantasias e os sonhos. Nossos sonhos noturnos nada mais são do que fantasias dessa espécie, como podemos demonstrar pela interpretação de sonhos. A linguagem, com sua inigualável sabedoria, há muito lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as etéreas criações da fantasia. Se, apesar desse indício, geralmente permanece obscuro o significado de nossos sonhos, isto é por causa da circunstância de que à noite também surgem em nós desejos de que nos envergonhamos; têm de ser ocultos de nós mesmos, e foram conseqüentemente reprimidos, empurrados para o inconsciente (FREUD, 1908, p. 139).

Ao olharmos para as palavras de Freud, passamos a perceber que nenhum indivíduo humano, sobretudo os que se dedicam a criação literária, estão “livres” das influências do seu inconsciente. Junto do temor que sentimos quanto a exposição dos nossos sonhos e desejos, também sofremos pela brutal necessidade de externá-los.

Mas, indagarão os senhores, se as pessoas fazem tanto mistério a respeito do seu fantasiar, como os conhecemos tão bem? É que existe uma classe de seres humanos a quem, não um deus, mas uma deusa severa - a Necessidade - delegou a tarefa de revelar aquilo de que sofrem e aquilo que lhes dá felicidade (FREUD, 1908, p.137).

Quanto às obras que não são fruto da mente de um único autor, mas de uma construção psicológica de todo um povo, como é o caso dos mitos, lendas e contos de fadas, Freud aponta que tais produções podem ser a expressão de fantasias plenas de desejos de nações inteiras.

Ainda assim, as marcas de personalidade do escritor são percebidas por meio dos materiais que escolhe, ou das modificações que realiza:

Não devemos esquecer, entretanto, de examinar aquele outro gênero de obras imaginativas, que não são uma criação original do autor, mas uma reformulação de material preexistente e conhecido [pág. 139]. Mesmo nessas obras o escritor conserva uma certa independência que se manifesta na escolha do material e nas alterações do mesmo, às vezes muito amplas. Embora esse material não seja novo, procede do tesouro popular dos mitos, lendas e contos de fadas. Ainda está incompleto o estudo de tais construções da psicologia dos povos, mas é muito provável que os mitos, por exemplo, sejam vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade jovem (FREUD, 1908, p.141-142).

Em A Interpretação dos sonhos (1900), observando determinadas situações captadas no universo da literatura, contudo, ainda sem alguns aprofundamentos específicos relacionados ao processo criativo que apresentamos de seu texto Escritores criativos e devaneios, Freud utiliza-se de do mito de Édipo para tratar de múltiplas demandas relacionadas à compreensão da mente humana e seu processo de formação psíquica. Propondo, então, que o comportamento humano está profundamente relacionado ao seu inconsciente, que é formado desde a infância. Assim, situações traumáticas vivenciadas, sobretudo nesse período, teriam a capacidade de afetar os indivíduos no decorrer de toda sua vida.

Essa descoberta é confirmada por uma lenda da Antiguidade clássica que chegou até nós: uma lenda cujo poder profundo e universal de comover só pode ser compreendido se a hipótese que propus com respeito à psicologia infantil tiver validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do Rei Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome (FREUD, 2010, p.223).

Ainda que a abordagem desenvolvida por Freud a respeito da tragédia de Édipo Rei, de Sófocles, seja desenvolvida por meio de uma ótica que tem como principal mote avançar sobre a compreensão dos mistérios da psique humana, o pai da Psicanálise também apresenta sua perspectiva quanto ao efeito trágico presente nessa narrativa sofocliana. Assim, Freud relata que: “Oedipus Rex é o que se conhece como uma tragédia do destino. Diz-se que seu efeito trágico reside no contraste entre a suprema vontade dos deuses e as vãs tentativas da humanidade de escapar ao mal que a ameaça.” (FREUD, 1900, p.224). Contudo, em que pese essa definição, o psicanalista também expressa sua percepção particular concernente ao efeito trágico, apontando que:

Se Oedipus Rex comove tanto uma platéia moderna quanto fazia com a platéia grega da época, a explicação só pode ser que seu efeito não está no contraste entre o destino e a vontade humana, mas deve ser procurado na natureza específica do material com que esse contraste é exemplificado. Deve haver algo que faz uma voz dentro de nós ficar pronta a reconhecer a força compulsiva do destino no Oedipus, ao passo que podemos descartar como meramente arbitrários os desígnios do tipo formulado em die Ahnfrau [de Grillparzer] ou em outras modernas tragédias do destino. E há realmente um fator dessa natureza envolvido na história do Rei Édipo (FREUD, 1900, p.224).

Conforme vemos, segundo a perspectiva de Freud, o efeito trágico de Édipo é comunicado e reconhecido dentro de nós, levando-nos a compartilhar das dores e dos sofrimentos vivenciados durante o sofrido percurso de vida do herói. A natureza do trágico expresso no mito de Édipo, na perspectiva freudiana, fundamenta-se no compadecimento que sentimos ao ver os infortúnios ocorridos com o herói trágico, mas que também poderiam ter ocorrido conosco, haja vista que seus delitos também poderiam ser os nossos.

Seu destino comove-nos apenas porque poderia ter sido o nosso — porque o oráculo lançou sobre nós, antes de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele. É destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe, e nosso primeiro ódio e primeiro desejo assassino, para nosso pai (FREUD, 1900, p.

224).

Os aspectos do trágico, consolidados no palco da vida de Édipo, pela força da arte, seriam capazes de trazer à plateia o despertamento de sonhos, desejos e outros tantos sentimentos há muito guardados nos escaninhos mais secretos do subconsciente de homens e mulheres de todo mundo.

Documentos relacionados