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O SOM NO SIGNO: LIVRE E ATADO 

Até mesmo os símbolos visuais que, pela sua matéria, deveriam ser mais e-videntes do que os sonoros, podem ser interpretados conforme o contexto. O desenho de uma casa de portas e janelas cerradas, se visto em uma oleogravura inglesa, pode simbolizar o círculo íntimo e fecundo do lar (Home, sweet home!), mas deverá conotar a inacessível virgindade da alma se posto em uma alegoria medieval das virtudes. O tema geral é o mesmo, o fechamento, mas pode ser puxado para lados opostos: tépida vida em família ou árdua clausura monástica.

Sempre que o processo é de simbolização, uma das suas etapas se chama interpretação. Veja-se a imagem do ovo, tão simples, tão primordial, tão primigênia. O ovo é símbolo da geração divina nos hieróglifos do Egito e na alquimia medieval. O ovo é figura do cosmos nas culturas brâmane e céltica. O ovo de Páscoa (que, naturalmente, não se encontra no Novo Testamento…) é uma revivescência do ovo pagão emblema da perenidade, que no Cristianismo se chama ressurreição. Mas para os enciclopedistas do século XVIII, o mesmo ovo, trazido do céu à terra, era prova irrefutável de que a matéria vem da matéria. Ab ovo. "Vedes este ovo?” — perguntava, confiante, Diderot a D'Alembert; — "é com isso que se derribam todas as escolas de teologia e todos os templos da terra."

Mais uma vez: um número infinito de mensagens pode formular-se com os poucos sinais de um código disponível. O isomorfismo absoluto (parte do código ' parte da mensagem) é uma operação de recursos limitados no processo da significação; este não tem outro meio de desenvolver-se senão combinando de mil modos diferentes os seus poucos elementos (fonemas) e procurando construir outras redes de correspondência, mais altas e mais complexas.

É preciso sair do círculo de impasses que é a discussão isolada do simbolismo fonético. O problema, por ser parcial,

virou um nó cego. A motivação que age no signo, e especialmente no signo mais pesado de vida (o mito, o sonho, o poema), percorre todos os níveis do código: não só os sons, mas as formas gramaticais, o vocabulário e as relações sintáticas. Ora, de todos os níveis da língua o fonema é, precisamente, o único que se possa dizer, a rigor, não-semântico ou, pelo menos, o que supõe a mais leve carga explícita de significação. O teor simbólico parece ser, no fonema, apenas subliminar e, sem dúvida, mais difuso do que nas outras articulações da língua. O som é volátil, capaz de resvalar labilmente de uma palavra a outra conforme as exigências da simbolização. Os níveis mais altos, "corticais", da linguagem dispõem, com grande liberdade, das potências do som e as dobram a seus fins.

Na atmosfera ardente evocada por este verso de Castro Alves,

Na volúpia das noites andaluzas,

a vogal tônica /u/ soa antes sensualmente grave do que sensualmente leve, ao contrário do que se dá neste passo diáfano de Álvares de Azevedo:

São anjos que dormem, a rir e a sonhar e em leito d'escuma revolvem-se nus!

Mas neste outro verso de Castro Alves,

Qual no fluxo e refluxo, o mar em vagas,

as vogais que concorrem para a formação das imagens não o fazem por si mesmas, mas porque contrastam: /a/… /u/, na primeira parte, contra /u/… /a/ na segunda. A distribuição rege, nesse caso, o efeito sonoro.

Ao que parece, a vogal /u/, como aliás as outras vogais, teria algo de camaleão; o máximo que se pode dizer desse réptil furta-cor é que prefere, muitas vezes, o verde, pois verde é a cor mais constante das folhas em que vive. A invenção poética arma contextos tão variados e tão estimulantes que arrancam os fonemas da sua latência pré-semântica e os fazem vibrar de significação. Figuras como a rima, a aliteração e a paranomásia não têm outro alvo senão remotivar, de modos diversos, o som de que é feito o signo.

Como no último exemplo dado, a oposição entre as vogais, agora disseminada em regime de pura diferença, exerce um papel tímbrico (mais do que icônico) neste

decassílabo de "Sub teg-mine fagi", para o qual concorrem todas as vogais:

Mostra o sorriso rubro e a face fresca

[Castro Alves]. O som no signo: livre.

Mas, nos passos seguintes, tirados de poetas díspares, reponta aquela consonância "natural" da vogal /u/ com certas faixas semânticas de escuridão, angústia e morte:

No mundo poucos anos, e cansados, Vivi, cheio de vil miséria dura; Foi-me tão cedo a luz do dia escuro Que não vi cinco lustros acabados

[Camões, soneto-epitáfio].

Infames turbas de nocturnas aves

[Góngora]

No que eu supunha cicatriz recente, E que era úlcera funda

[Gonçalves Dias, "Palinódia"]

Onde vais pelas trevas impuras, Cavaleiro das armas escuras, Macilento qual morto na tumba?… Tu escutas

[Álvares de Azevedo, "Meu sonho"].

Os miseráveis, os rotos são as flores dos esgotos […]

São prantos negros de furnas caladas, mudas, soturnas

[Cruz e Souza, "Litania dos pobres"].

Nikolaus Lenau, poeta da amargura! Uma te amou, chamava-se Sofia. E te levou pela melancolia

Ao oceano sem fundo da loucura

[Manuel Bandeira, "A sereia de Lenau"].

Quem te fez assim soturno, quieto reino mineral, escondido chão noturno?

[Jorge de Lima, "Invenção de Orfeu", I, XI].

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Vulcões mastigam rochas neutras Pondo lacunas nas criaturas

["Invenção de Orfeu", I, XXXIX].

Como o tempo, ainda mais sem corpo, pode trabalhar suas verrumas?

E se o seu corpo é nada, onde é que as dissimula?

Ora, como mais que o vento é oco, e sua carne é de nada, é nula, não agride a paisagem:

é de dentro que atua

[João Cabral de Melo Neto, "Viagem ao Sanel"].

Ao isolar, porém, este ou aquele fonema, não se pode esquecer o mais importante: o valor de escuridão, de angústia ou de morte não se produz apenas no som da vogal, mas em todo o processo de sonorização do tema, que enlaça o jogo de ecos e contrastes, o ritmo, o metro, o andamento da frase e a entoação. Quando falta esse esforço integrador, resultam pobres não poucas análises apenas fonológicas; e dessa carência vem o sentimento de forçar a mão que tantas vezes inspiram.

Integrar o som no signo não é esvaziá-lo de suas latências simbólicas. Ao contrário, integrar é respeitar o modo de ser do signo, assim como o propõe Max Bense: "Deve-se quase à índole do signo o fato de que a sua formulação descansa verdadeiramente em

uma interpretação" 9.

OS TRABALHOS DA MÃO 

Pará a Ecléa

Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. A mão sirva de exemplo.

A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão apanha o objeto, remove-o, achega-o ao corpo, lança-o de si. A mão puxa e

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empurra, junta e espalha, arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola; roça, toca, apalpa, acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra; depois, massageia o músculo dorido.

A mão tateia com as pontas dos dedos, apalpa e calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate.

A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pêlo e o alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorciza.

Acusa com o índex, aplaude com as palmas, protege com a concha. Faz viver alçando o polegar; baixando-o, manda matar.

Mede com o palmo, sopesa com a palma.

Aponta com gestos o eu, o tu, o ele; o aqui, o aí, o ali; o hoje, o ontem, o amanhã; o pouco, o muito, o mais ou menos; o um, o dois, o três, os números até dez e os seus múltiplos e quebrados. O não, o nunca, o nada.

É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura do cego.

Faz levantar a voz, amaina o vozerio, impõe silêncio. Saúda o amigo balançando leve ao lado da cabeça e, no mesmo aceno, estira o braço e diz adeus. Urge e manda

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parar. Traz ao mundo a criança, esgana o inimigo.

Ensaboa a roupa, esfrega, torce, enxágua, estende-a ao sol, recolhe-a dos varais, desfaz-lhe as pregas, dobra-a, guarda-a.

A mão prepara o alimento. Debulha o grão, depela o legume, desfolha a verdura, descarna o peixe, depena a ave e a desossa. Limpa. Espreme até extrair o suco. Piloa de punho fechado, corta em quina, mistura, amassa, sova, espalma, enrola, amaria, unta, recobre, enfarinha, entrouxa, enforma, desenforma, polvilha, guarnece, afeita, serve.

A mão joga a bola e apanha, apara e rebate. Soergue-a e deixa-a cair.

A mão faz som: bate na perna e no peito, marca o compasso, percute o tambor e o pandeiro, batuca, estala as asas das castanholas, dedilha as cordas da harpa e do violão, dedilha as teclas do cravo e do piano, empunha o arco do violino e do violoncelo, empunha o tubo das madeiras e dos metais. Os dedos

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cerram e abrem o caminho do sopro que sai pelos furos da flauta, do clarim e do oboé. A mão rege a orquestra.

A mão, portadora do sagrado. As mãos postas oram, palma contra palma ou entrançados os dedos. Com a mão o fiel se persigna. A mão, doadora do sagrado. A mão mistura o sal à água do batismo e asperge o novo cristão; a mão unge de óleo no crisma, enquanto com a destra o padrinho toca no ombro do afilhado; os noivos estendem as mãos para celebrarem o sacramento do amor e dão-se mutuamente os anulares para receber o anel da aliança; a mão absolve do pecado o penitente; as mãos servem o pão da eucaristia ao comungante; as mãos consagram o novo sacerdote; as mãos levam a extrema-unção ao que vai morrer; e ao morto, a bênção e o voto da paz. In manus tuas,

Domine, commendo spiritum meum.

Para perfazer tantíssimas ações basta-lhe uma breve mas dúctil anatomia: oito ossinhos no pulso, cinco no metacarpo e os dedos com as suas falanges, falanginhas e falangetas.

Mas seria um nunca acabar dizer tudo quanto a mão consegue fazer quando a prolongam e potenciam os instrumentos que o engenho humano foi inventando na sua contradança de precisões e desejos.

A mão lavra a terra há pelo menos oito mil anos, quando começou o Neolítico em várias partes do globo. Com as mãos, desde que criou a agricultura, o homem semeia, poda e colhe. Empunhando o machado e a foice, desbasta a floresta; com a enxada revolve a terra, limpa o mato, abre covas. Com a picareta, escava e desenterroa. Com a pá, estruma. Com o rastelo e o forcado, gradeia, sulca e limpa. Com o regador, água. Desgalha com a faca e o tesourão.

Manejando o cabo dos utensílios de cozinha, o homem pode talhar a carne, trinchar as aves, espetar os alimentos sólidos e conter os líquidos que escoariam pelas juntas das mãos em concha.

Morar é possível porque mãos firmes de pele dura amassam o barro, empilham pedras, atam bambus, assentam tijolos, aprumam o fio, trançam ripas, diluem a cal virgem, moldam o concreto, argamassam juntas, desempenam o reboco, armam o madeirame, cobrem com telha, goivo ou sapé, pregam ripas no

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forro, pregam tábuas no assoalho, rejuntam azulejos, abrem portas, recortam janelas, chumbam batentes, dão à pintura a última demão.

A mão do oleiro leva o barro ao fogo: tijolo. A mão do vidreiro faz a bolha de areia, e do sopro nasce o cristal.

A mão da mulher tem olheiros nas pontas dos dedos: risca o pano, enfia a agulha, costura, alinhava, pesponta, chuleia, cerze, caseia. Prende o tecido nos aros do bastidor: e tece e urde e borda.

A mão do lenhador brande o machado e racha o tronco. Vem o carpinteiro e da lenha faz o lenho: raspa e desbasta com a plaina, apara com o formão, alisa e desempena com a lixa, penetra com a cunha, corta com a serra, entalha com a talhadeira, boleia com

o torno, crava pregos com o martelo, marcheta com as tachas, encerra e lustra com o feltro.

O ferreiro malha o ferro na bigorna, com o fogo o funde, com o cobre o solda, com a broca o fura, com a lima o rói, com a tenaz o verga, torce e arrebita.

O gravador entalha e chanfra com o cinzel, pule com o buril. O ourives lapida com diamante, corta com o cinzel, afina com o buril, engasta com a pinça, apura com o esmeril.

O escultor corta e lavra com o escopro e o formão.

O pintor, lápis ou pincel na mão, risca, rabisca, alinha, enquadra, traça, esboça, debuxa, mancha, pincela, pontilha, empastela, retoca, remata.

O escritor garatuja, rascunha, escreve, reescreve, rasura, emenda, cancela, apaga. Na Idade da Máquina, a mão teria, por acaso, perdido as finíssimas articulações com que se casava às saliências e reetrâncias da matéria? O artesanato, por força, recua ou decai, e as mãos manobram nas linhas de montagem à distância dos seus produtos. Pressionam botões, acionam manivelas, ligam e desligam chaves, puxam e empurram alavancas, controlam painéis, cedendo à máquina tarefas que outrora lhes cabiam. A máquina, dócil e por isso violenta, cumpre exata o que lhe mandam fazer; mas, se poupa o músculo do operário, também sabe cobrar exigindo que vele junto a ela sem cessar: se não, decepa dedos

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distraídos. Foram oito milhões os acidentes de trabalho só no Brasil de 1975.

A SUPLÊNCIA DA VOZ: UM NOVO