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SOBRE O PROBLEMA DA FUNDAMENTAÇÃO DE ENUNCIADOS NORMATIVOS

Uma teoria do discurso prático* **

1.1. SOBRE O PROBLEMA DA FUNDAMENTAÇÃO DE ENUNCIADOS NORMATIVOS

Quem expressa um juízo de valor ou de dever1como “é injusto que

cidadãos em um estado sejam prejudicados por causa da cor de sua pele” ou como “você deveria ajudar seu amigo que está em dificuldade” levanta uma pretensão de que ele seja fundamentável e, nessa medida, correto ou verdadeiro.2Uma análise inicial sobre o real comportamento linguístico já

mostra isso. Declarações contraditoriamente formuladas são interpretadas como incompatíveis entre si.3Quem expressa um juízo de valor ou de de-

ver está via de regra preparado para, quando solicitado, mencionar suas razões. Ele vai ser criticado se recursar-se a fazê-lo ou pelo menos se não mencionar as razões de sua recusa. O que pode acontecer na discussão de juízos de valor e de dever não é, pelo menos, completamente arbitrário.

Assim, não se pode mencionar como razão a favor de um juízo de valor uma proposição que o contradiga nem contra um juízo de valor uma pro- posição que o implique.

Por isso há fortes razões para não considerar juízos de valor e de dever como meras expressões e/ou descrições de sentimentos, e/ou atitudes, e/ou como meio para sua criação, como ocorre nas teorias meramente emotivis- tas.4Diferentes descrições ou expressões de sentimentos ou atitudes, assim

como meios opostos de influência psíquica, não seriam interpretados como teses incompatíveis sobre as quais se pode discutir com razões em uma dis- cussão.5Com isso pode se supor que, como formula Patzig, através da

“pretensão de fundamentabilidade, sempre levantada com o juízo de valor moral [...], o sentido do juízo de tais afirmações [torna-se] então apreensível”.6

O fato de que com juízos de valor e de dever seja levantada uma pre- tensão de fundamentabilidade ainda não significa que essa pretensão seja solucionável. A segunda se segue em medida muito menor da primeira que a primeira da segunda. Existem porém relações estreitas. Assim, nos casos em que a afirmação sobre a possibilidade de resgate da pretensão de funda- mentabilidade é verdadeira, prontifica-se a aceitar mais cedo a afirmação sobre a existência dessa pretensão do que nos casos em que ela é falsa. Assim, a questão sobre a possibilidade de resgate da pretensão de funda- mentabilidade não só se conecta imediatamente à questão da existência dessa pretensão como possui, além disso, um significado não pouco repres- entativo para a resposta dessa questão.

Há duas posições metaéticas segundo as quais a questão da funda- mentabilidade de enunciados normativos pode ser respondida em sentido positivo de forma relativamente fácil: o naturalismo e o intuicionismo.

Como “naturalísticas” serão aqui denominadas, com Moore, aquelas teorias em que se supõe que expressões normativas como “bom” e “devido” podem ser definidas através de expressões descritivas.7Se isso

fosse possível, as expressões normativas encontradas em proposições normativas poderiam ser substituídas por expressões descritivas. Toda pro- posição normativa se transformaria assim em uma proposição descritiva. Enquanto tal, ela seria verificável de acordo com os procedimentos das

ciências da natureza e das ciências sociais empíricas. A tarefa da ética se limitaria à tradução de expressões normativas em expressões descritivas.

Serão denominadas “intuicionistas” as teorias segundo as quais ex- pressões como “bom” e “devido” representam quaisquer propriedades ou relações de natureza não empírica.8Essas entidades não empíricas não seri-

am reconhecidas pelos cinco sentidos, mas sim por uma outra faculdade. Em alguns autores essa outra faculdade é algo com um sexto sentido, em outros ela é algo como a capacidade de percepção apriorística, e ainda em outros as duas coisas se misturam. Apesar das várias diferenças individuais que dizem respeito sobretudo ao que são essas entidades que podem ser re- conhecidas dessa maneira indicada, as teorias intuicionistas possuem algo em comum: a empreitada da fundamentação de enunciados normativos é realizada essencialmente através de evidências de um tipo qualquer.

Tanto contra o naturalismo9quanto contra o intuicionismo10foram ap-

resentados inúmeros argumentos. Um argumento central contra as teorias naturalistas consiste no fato de que através da redução do discurso moral a um discurso empírico não são abrangidas características essenciais da lin- guagem normativa. A função da linguagem normativa não se limita à descrição do mundo.11Isso se mostra por exemplo pelo fato de que duas

pessoas, A e B, que discutem a correção ou a verdade da afirmação “x é bom”, não devem ainda terminar sua discussão se A define “bom” através de “G1” e B define “bom” através de “G2” e ambos averiguam que “x é G1

é verdadeiro e “x é G2” é falso. Contra o intuicionismo pode se alegar

sobretudo que ele, tendo em vista o fato de que pessoas diferentes experi- mentam evidências diferentes, não pode fornecer um critério para evidên- cias corretas e erradas, legítimas e ilegítimas.12Por isso, no resultado, o

intuicionismo move-se na mesma direção do subjetivismo.13Essas obser-

vações são suficientes aqui. Talvez os argumentos apresentados contra o naturalismo e o intuicionismo não sejam adequados para mostrar que as teorias indicadas através dessas expressões sejam, em todas as suas as vari- ações e em todos seus aspectos, insustentáveis. Esse poderia ser o caso es- pecialmente das teorias neonaturalísticas14e neointuicionistas.15Contudo, a

crítica a esses rudimentos abalou tão fortemente sua plausibilidade que há

razões suficientes para procurar outras possibilidades de fundamentação de enunciados normativos.

Quem, para um enunciado normativo como “A agiu mal” (N), ap- resenta como razão algo como “A mentiu” (G), supõe uma regra como “mentir é errado” (R), a partir da qual, junto com G, segue-se logicamente

N. Como Hare acentuou, “a noção de uma razão” inclui, “como sempre,

[...] a noção de uma regra que estabelece que uma coisa é uma razão para outra coisa”.16 Por isso N pode, no caso apresentado, ser caracterizada

como “fundamentável através de G e R”. Quem quer colocar em dúvida a fundamentação de N através de G e R pode atacar G ou R. Quando R é atacada é preciso fundamentar a regra que se expressa como “mentir é errado”.

Nessa fundamentação de segundo grau pode ser apresentada como razão uma proposição como “a mentira dá origem a sofrimento evitável” (G’). Ao fazer isso será presumida, por outro lado, uma regra como “aquilo que dá origem a sofrimento evitável é ruim” (R’). Se agora se quiser funda- mentar R’ de acordo com esse padrão, será necessária uma outra regra (R”), e assim por diante. Um regresso ao infinito parece poder ser evitado somente se a fundamentação é interrompida e substituída por uma resol- ução que não será mais fundamentada. A consequência disso seria que só se poderia falar da correção ou da verdade do enunciado a ser funda- mentado (N) somente em um sentido muito limitado. O caráter arbitrário dessa resolução se transferiria a toda a fundamentação dela dependente. A tentativa de continuar fundamentando enunciados normativos da forma sugerida levaria assim a um regresso ao infinito ou, no melhor caso, a uma decisão explicável ainda psicológica e sociologicamente, porém não mais justificável. Ambas só podem ser evitadas através de um círculo vicioso, o que não é uma solução aceitável.