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3 SOCIEDADE CIVIL E PARTICIPAÇÃO

3.1.1 Sociedade Civil

Assim, partimos do conceito de sociedade civil exposto na obra Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade, de Jürgen Habermas, primeiramente editada em 1992:

O atual significado da expressão “sociedade civil” não coincide com o da “sociedade burguesa” da tradição liberal, que Hegel chegara a tematizar como “sistema de necessidades”, isto é, como sistema de trabalho social e do comércio de mercadorias numa economia de mercado. Hoje em dia, o termo “sociedade civil” não inclui mais a economia constituída através do direito privado e dirigida através do trabalho, do capital e dos mercados de bens, como ainda acontecia na época de Marx e do marxismo. O seu núcleo institucional é formado por associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida. A sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política. O núcleo da sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse geral no quadro de esferas públicas (HABERMAS, 2003b, p. 99).

De fato a expressão “sociedade civil’ não é nova. Acanda (2006, pp. 98 e ss.) menciona investigações da expressão na antiguidade e na idade média, mas realiza um resgate mais amplo do termo a partir do século XVII, quando foi incorporado ao vocabulário de importantes pensadores ingleses. A idéia tal como a conhecemos teria surgido na modernidade junto com o pensamento liberal: “[...] razão, indivíduo e sociedade civil são três elementos básicos da visão liberal do social” (idem, 98). O autor traça o percurso da idéia através do pensamento de Hegel e Marx até chegar a Gramsci a quem a idéia é espontaneamente associada na Ciência Política.

Contudo, todas as considerações atuais sobre a expressão sociedade civil remontam à sua ressurreição e ressignificação dadas no final do século XX. A reconstrução do conceito é associada à reflexão sobre as lutas contra o autoritarismo no Leste Europeu e na América Latina nas décadas de 1970 e 1980. Nos países satélites da ex-União Soviética a sociedade civil incorporou a “resistência à onipresença do Estado socialista real e as restrições às possibilidades de organização soberana da sociedade (civil). Também na América Latina, a retomada do conceito está associada à resistência contra

regimes autoritários” (COSTA, 1997a, p.6) assumindo o papel de opositora ao Estado Militar5.

Sérgio Costa (Op. cit. p.17) também dá sua contribuição na tentativa de formular um conceito operacional de sociedade civil que seja adequado metodologicamente às especificidades do caso brasileiro, delineando a categoria a partir de um “conjunto de associações e formas organizativas que se distinguem de outros grupos de interesse atuantes na esfera da política (partidos, lobbies etc.) e da economia (sindicatos, associações empresariais etc.)”. A distinção dá-se fundamentalmente nos seguintes aspectos:

- base de recursos - os grupos de interesse dispõem de instrumentos imediatos de poder; a sociedade civil depende de sua capacidade de canalizar as atenções públicas para seus pleitos;

- base de constituição dos grupos – a identidade dos primeiros pode ser definida de antemão em razão de seu campo funcional, a dos atores da sociedade civil é constituída no contexto das ações coletivas;

- natureza do recrutamento dos membros - o pertencimento daqueles fundamenta-se em compromisso legal, a vinculação às associações da sociedade civil é, em geral, voluntária e livremente arbitrada;

- natureza dos interesses representados – os primeiros tratam de demandas da esfera política e da economia, enquanto a sociedade civil lida com questões surgidas no “mundo da vida”.

A construção e consolidação da sociedade civil está condicionada, primeiramente, à vigência de direitos civis básicos, a fim de que se possa constituir associações voluntárias. É necessário também que haja um espaço público poroso que viabilize seu poder de influência “uma vez que este espaço representa a arena privilegiada de atuação política dos atores da sociedade civil [...], a arena de difusão dos conteúdos simbólicos e das visões de mundo diferenciadas que alimentam as identidades de tais atores” (Idem).

5 Ver a respeito, entre outros: Cohen & Arato, Civil Society and political theory (1992); Costa, Categoria Analítica ou passe-partout político normativo (1997) e Avritzer, Sociedade Civil e Democratização (1994).

Lavalle (2003, p. 97 e ss.), baseado numa análise pormenorizada da literatura sobre o tema desde a década de 19906 esclarece que a nova sociedade civil tem sido definida

como “uma trama diversificada de atores coletivos, autônomos e espontâneos que mobilizam seus recursos espontâneos mais ou menos escassos – via de regra dirigidos à comunicação pública – para ventilar e problematizar questões de interesse geral”. Há, entretanto, diferenças de ênfase entre autores quanto aos conteúdos que podem ser desdobrados dessa definição aparentemente consensual. O autor arrola, então, os tais elementos conceituais da nova sociedade civil no Brasil situando em primeiro lugar sua natureza coletiva ou horizontal, frisando a recorrência das expressões “associações autônomas”, “associativismo civil”, “ancoragem no mundo da vida”.

A seguir aponta nessas teorias o relevo do caráter legítimo de suas demandas ou propósitos concebidos em termos de “interesses gerais”, “problemas provindos do mundo da vida” ou “objetivos não sistêmicos”. Em terceiro, a adesão e separação livre e espontânea de seus membros, sua índole não-organizacional ou informal de associação: “associativismo voluntário”; “espontaneidade social” e “inovação social”. Em quarto, a importância dos processos de comunicação na formação da vontade coletiva e nas estratégias para suscitar a atenção pública (“tematização pública de problemas”) e, por fim, o papel de mediação entre a sociedade não organizada e os poderes político e econômico.

Pela combinação de tais critérios, atores que eram tidos como pilares da ação social emancipadora no curso dos anos 1980, tornaram-se persona

non grata na lista dos atores representativos da sociedade civil no

decênio seguinte – tal o caso, sem dúvida emblemático, do movimento sindical e dos atores eclesiásticos (Idem, 98).

O que se assemelha mutatis mutandi a uma tendência identificada muito antes por Evers (1982, p.132) e que será lembrada no Capítulo 4, tratando, porém, especificamente de estruturas organizadas derivadas dos movimentos sociais, mas nas quais também se verifica a necessidade de superar o auxílio de forças exógenas a fim de alcançar autonomia estável. Naquele contexto respeita à genuinidade dos

movimentos sociais e aqui à autonomia e espontaneidade do associativismo da sociedade civil em geral.

O conjunto de aspectos, ressaltados por Lavalle, parágrafos acima, na medida em que externo à lógica de mercado ou do poder político, explicaria o protagonismo da nova sociedade civil como força revitalizadora do espaço público e da democracia. “[...] os autores atentavam –apostavam até – na reconstrução teórica e prática da democracia e do espaço público animada pela reconstrução teórica e prática da ação social” (LAVALLE, 2003, p. 98) o que, aponta, definiria o propósito mais ambicioso daquilo que poderia ser denominado “projeto contemporâneo de sociedade civil”7.

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