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Supremacia do interesse público sobre o privado: a formação do pensamento jurídico tradicional

Em busca do interesse público perdido: As quatro dimensões de um instituto

2. Supremacia do interesse público sobre o privado: a formação do pensamento jurídico tradicional

Como visto na introdução, a noção de interesse público tem origens históricas que remetem à antiguidade clássica. Aristó- teles, ao analisar as diferentes formas de governo, reputa como boas aquelas que visavam ao interesse comum, e, más, as que visavam ao interesse próprio. Na Idade Média, São Tomás de

8 BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político- jurídicas, econômicas e institucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 71.

9 SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003.

Aquino introduz a persecução do bem comum como finalidade

do estado. Com o advento do liberalismo10 e a consequente as-

censão do individualismo, “substitui-se a ideia de bem comum, impregnada de cunho moral e ideológico, pela ideia de interes-

se geral, de cunho utilitarista”11, sendo a lei, por excelência, a

manifestação dessa vontade geral, fruto da razão humana. Há uma separação nítida e estanque entre os domínios público e

privado. Segundo Emerson Gabardo e Daniel Wunder Hachem12,

no estado liberal:

O bem comum não era algo materialmente definido, a ser buscado e determinado pelo Estado; ele resul- tava da concorrência das decisões das vontades in- dividuais, ou seja, seria uma consequência do pleno exercício das liberdades individuais. O interesse pú- blico estava na proteção do desenvolvimento dos interesses privados.

10 De acordo com John Rawls: “[...] o liberalismo político assume o pluralismo razoável como um pluralismo de doutrinas abrangentes, incluindo tanto as doutrinas religiosas quanto as não-religiosas. Esse pluralismo não é tido como algo desastroso, e sim como o resultado natural das atividades da razão humana sob instituições livres e duradouras. [...] o problema do liberalismo político consiste em compreender como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis. Em outras palavras: como é possível que doutrinas abrangentes profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de um regime constitucional? Qual é a estrutura e o teor de uma concepção política que conquista o apoio de um tal consenso sobreposto? [...]”. Segundo o autor, a razão pública seria um instrumento para atingir esse objetivo. RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000. p. 24- 26. Nas palavras de José Vicente Santos de Mendonça: “A razão pública é a forma de se argumentar publicamente na sociedade democrática. [...] O conteúdo da razão pública é, na essência, o de um dever de reciprocidade: as razões apresentadas por uma pessoa só podem ser aquelas que ela própria razoavelmente aceitaria, e que ela esperaria de boa-fé que outra pessoa razoavelmente aceitasse. Há outros requisitos para a razão pública: deve-se apelar somente a crenças gerais e às formas de argumentação atualmente aceitas e encontradas no senso comum; devem-se usar os métodos e conclusões da ciência, mas apenas quando não controvertidos.”. MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito constitucional econômico: a intervenção do estado na economia à luz da razão pública e do pragmatismo. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 119-120. Para uma síntese das críticas comunitaristas ao liberalismo político de Rawls, vide: MULHALL, Stephen; SWIFT, Adam. Liberals and communitarians. Oxford: Blackwell, 1992.

11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Org.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito

administrativo. São Paulo: Atlas, 2010. p. 86-88.

12 GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do direito administrativo: uma crítica da crítica. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Org.). Supremacia do interesse

Com o advento do estado social, fruto das revoluções sociais do século XIX, o interesse público volta a se identificar com a no- ção de bem comum, reassumindo a sua carga axiológica. Ao Es- tado passam a ser acometidas competências não somente nega- tivas, mas também positivas, de realização de fins sociais. Para a realização desses fins, reconhece-se ao Estado a prerrogativa de limitar direitos individuais. Como a liberdade irrestrita dos indiví- duos tenderia a gerar desigualdade e injustiça, competiria ao Esta- do limitar essa liberdade em favor de interesses supraindividuais.

As competências interventivas originárias do Estado são au- mentadas em intensidade, ao mesmo tempo em que novas e volu- mosas competências lhe são acrescentadas, notadamente nos do- mínios social e econômico. Boa parte da teoria clássica do estado de direito é revista, notadamente nos aspectos: do papel da lei no ordenamento jurídico, que perdeu a sua exclusividade jurígena; da adoção do princípio da juridicidade em lugar da legalidade, signifi- cando a vinculação da Administração, em diferentes graus, a todo o ordenamento jurídico e não apenas à lei formal; da proeminência do Executivo em lugar do Legislativo; da mitigação da diferen- ça entre atos públicos e privados (fenômeno da publicização do direito privado); do surgimento dos direitos fundamentais de 2ª

geração e da dimensão positiva dos de 1ª geração, entre outros13.

É nesse contexto que se desenvolve a noção do princípio da supremacia do interesse público reputada aqui como clássi- ca, que, para a doutrina tradicional, ainda hoje constitui verda-

deiro axioma14 do direito público. Embora a noção geral desse

13 SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003, p. 11-45.

14 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 70.

Na antiguidade clássica, o termo axioma era originalmente utilizado para designar as verdades científicas indemonstráveis, mas autoevidentes. Já na modernidade, por obra do formalismo matemático e lógico, o conceito de axioma foi despido das noções de verdade, certeza e evidência, passando a ser “nem verdadeiros nem falsos, mas assumidos por convenção, com base em motivos de oportunidade, como fundamentos ou premissas do discurso matemático”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 101-102. Em outras palavras, axiomas são consensos mínimos utilizados como base para uma formulação teórica posterior. O princípio da não contradição, segundo o qual uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo, é um exemplo de axioma. Nas palavras de Aristóteles: “[...] por ser evidente que os axiomas pertencem a todas as coisas [...], caberá a quem estuda o ser enquanto ser [o filósofo] estudar também esses axiomas. [...] Depois do que foi dito,

princípio seja um tanto intuitiva, é importante fixar neste mo- mento os seus contornos, por uma exigência de ordem didáti- ca. Até porque, como visto anteriormente, a sua compreensão

variou ao longo da história15. Assim, para os fins deste estudo,

a concepção clássica do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado consiste na prevalência, em abstrato, do interesse público primário do Estado, quando em tensão com interesses privados. A seguir, serão analisados os elemen- tos essenciais do conceito.

A referência a interesse público primário é tributária de Re-

nato Alessi16, para quem o interesse público primário está ligado

à noção de bem comum, ou seja, o interesse da coletividade que cabe ao Estado perseguir. Já o secundário é o interesse da pes- soa jurídica estatal, que só seria legítimo perseguir quando não

conflitasse com o primário17. Por último, a dicotomia interesses

públicos versus interesses privados pode ser compreendida em termos de interesses gerais da coletividade versus interesses meramente individuais.

Conjugando as noções apresentadas acima, a ideia de su- premacia do interesse público sobre o privado pode ser rea- presentada da seguinte forma: interesses gerais da coletividade

devemos definir esse princípio [da não-contradição]. É impossível que a mesma coisa, ao mesmo tempo, pertença e não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo aspecto [...]. Este é o mais seguro de todos os princípios [...]. Efetivamente, é impossível a quem quer que seja acreditar que uma mesma coisa seja e não seja [...]. [...] é evidentemente impossível que, ao mesmo tempo, a mesma pessoa admita verdadeiramente que a mesma coisa exista e não exista. Quem se enganasse sobre esse ponto teria ao mesmo tempo opiniões contraditórias. Portanto, todos os que demonstram alguma coisa remetem-se a essa noção última, porque, por sua natureza, constitui o princípio de todos os outros axiomas”. ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 141-145.

15 Para um estudo analítico da evolução histórica do princípio, vide: HACHEM, Daniel Wunder.

Princípio constitucional da supremacia do interesse público. 420 fls. Dissertação (Mestrado em

Direito) –Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. p. 13-88.

16 ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo: tomo I. Barcelona: Bosch, 1970. p. 180-210.

17 A propósito do interesse público secundário, Celso Antônio Bandeira de Mello cogita que, na condição de pessoa jurídica como qualquer outra, “o Estado poderia ter interesse em tributar desmesuradamente os administrados, que assim enriqueceria o Erário, conquanto empobrecesse a Sociedade; que, sob igual ótica, poderia ter interesse em pagar valores ínfimos aos seus servidores, reduzindo-os ao nível de mera subsistência, com o quê refrearia ao extremo seus dispêndios na matéria; sem embargo, tais interesses não são interesses públicos [primários], pois estes, que lhe assiste prover, são os de favorecer o bem-estar da Sociedade e de retribuir condignamente os que lhe prestam serviços”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 67.

prevalecem sobre interesses meramente individuais. Em última análise, uma dúplice finalidade está subjacente a essa noção de

supremacia: a legitimação das prerrogativas do estado18 e a im-

posição de sujeições aos seus súditos19.

Conforme será visto no tópico seguinte, a existência e a deter- minabilidade de um interesse público têm sido postas em xeque. Expostas, em linhas gerais, as origens da supremacia do interesse público e seu sentido para o pensamento jurídico tradicional, no tópico seguinte serão apresentadas as críticas mais comuns dirigi- das a esse princípio, assim como as suas respostas.

2. Crise dos paradigmas: a teoria geral entre a