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I. Os nomes da São Paulo Oriental do século XVI ao XIX

II.1. Surge a Freguesia do Brás Mas quem foi o Brás?

A várzea e o paredão do Carmo e o rio Tamanduateí, sobretudo nos séculos XVI e XVII, eram os pontos fortes de defesa do núcleo. Depois se tornaram obstáculos. Romper as dificuldades representadas por eles, vinculou-se, diretamente, à busca por milagres, em peregrinações até a capela de Nossa Senhora da Penha. Do século XVII até princípio do XIX, as terras entre a várzea do Carmo e à esquerda do ribeirão Aricanduva eram apenas um caminho a ser cruzado.

Isto restringiu o crescimento da freguesia do Brás a pequenos aglomerados em torno de pousos, nos quais, geralmente, eram construídas oradas. Apesar de não apresentar um centro organizado, no princípio do oitocentismo esta região adquiriu certa autonomia ao ser elevada à categoria de freguesia.

LIVRO DO TOMBO DA SÉ DE SÃO PAULO A PARÓQUIA DO BRÁS

8 de junho de 1818

DECRETO DE EL-REY D. JOÃO VI:

Eu, El-Rey como governador e perpétuo administrador que sou do mestrado, Cavalheiro, e ordem de Nosso Senhor Jesus Christo.

Faço saber, que atendendo ao que por consulta da Mesa da Consciência, e Ordem sobro a minha real presença: Hei por bem erigir em Freguezia Collada a capela do Senhor Bem Jesus dos Mattosinhos, filial da freguezia da Penha de França do Bispado de São Paulo, desmembrando desta Freguezia e da Sé o território que lhe há de ficar pertencendo. Pelo que mando ao reverendo Bispo de São Paulo, do meu conselho que designe a esta nova freguezia os limites que forem mais convenientes. Este se cumprirá como nele se conta sendo registrado nos livros da camera do

Bispado de S. P., da nova freguezia, e das que com ella ficam confinando; dado e passado pela chancelaria das ordens.

Rio de Janeiro, oito de junho de mil oitocentos e dezoito. El-Rey (Reale: 1982, 5-6)

Dez anos antes deste decreto, na Planta de Rufino J. Felizardo e Costa, poucos são os elementos a leste do núcleo: um canal d'água afluente do Tanmadaty, duas pontes, o traçado de duas ruas, cada qual ligada ao núcleo por uma das pontes mencionadas, e duas construções ao longo da rua mais a norte.

Neste mapa, ainda não se menciona o designativo atribuído posteriormente à freguesia – Senhor Bom Jesus de Matosinhos do Braz. Este topônimo é engendrado por processo de formação comum a todos os nomes de povoados brasileiros até o século XIX. A designação é composta pelo padroeiro do local, ao qual se constrói uma orada – capela do Senhor Bem Jesus dos Mattosinhos –, e um segundo elemento, mais antigo, que referencializasse o local – Braz.

Este antropônimo gerou uma série de controvertidas explicações32. Pensou-se que resultasse de uma homenagem a Brás Cubas, fundador de Santos, por ter dado início à criação do povoado quando seguia rumo ao núcleo, em 1567. Os únicos topônimos da região nos seiscentos, contudo, são São Miguel Arcanjo de Ururaí, Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos e a paragem do Tatuapé, conforme visto anteriormente.

Outra hipótese era de que o nome Brás fosse uma homenagem a Brasílico de Aguiar Canto, morador das proximidades da igreja do Bom Jesus. Filho caçula de Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos, e do brigadeiro Rafael Tobias Aguiar, Brasílico nasceu em 1840 e herdou, em 1867, uma chácara que pertencera a sua mãe no início do caminho da Penha. A Carta de Frederico H. Gonçalves, de 1837, e a Planta de Bresser, de 1841, revelam que esta indicação é falsa. Ambas já apontam à existência da Freguesia do Braz e Igreja do Senr. Bom Jesus do Braz ⁄ Igreja Bom Jesu no Braz, respectivamente.

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Na Revista do IV Centenário de São Paulo, publicação oficial dos 400 anos da cidade (1954), apresentou- se uma breve discussão sobre a origem do nome Brás, intitulada “Brás: Terceira cidade do Brasil”. (Artigo disponível em http://www.abril.com.br/especial450/materias/bras/index.html, acessado em 17 de setembro de 2006)

Torres (1969, 43), em busca do antropônimo Brás nas ACSP, identificou, em 4 de março de 1769, talvez a mais antiga menção àquele que daria nome à freguesia:

Termo de vereança feito aos 4 dias do mez de março de 1769 annos

Aos quatro dias do mez de março de mil e setecentos e sessenta e nove annos nesta cidade de São Paulo em as casas do Senado da Camara aonde se achavam presentes os vereadores actuaes Antonio de Freitas Branco, e Antonio Alves de Siqueira, e Joaquim Manuel de Silva e Castro, e a assistencia do procurador actual Domingos Fernandes Lima, e a presidencia do juiz ordinario Ignacio de Barros Rego, e sendo ahi todos juntos em acto de vereança para proverem o que fosse a bem commum desta republica se despacharam varias petições que concorreram das partes, e na mesma se passou um mandado para os moradores do Pary fazendo as pontes que ficam entre o caminho de José Braz até á chacara do Nicolau como tambem para os mesmos moradores irem desentupir a ponte grande grande de Nossa Senhora da Luz desatravacando-a de todos os ramos que tiver a dita ponte e se nomearam para cabos desta diligencia a José Braz; Salvador Fernandes Falcão, e por não haver mais que prover na presente vereança houveram sua vereança por acabada do que para constar mandaram fazer este termo que assignaram. Eu João da Silva Machado escrivão da Câmara que o escrevi. – Rego – Branco – Siqueira – Castro – Lima. (ACSP, XV, 446)

O José Braz era morador da região com propriedade junto à várzea do Carmo, pelas indicações do documento acima transcrito. Sua rotina não deveria ser muito diferente de outros tantos proprietários da região no setecentismo. A prestação de serviços à municipalidade, mantendo os caminhos abertos e as pontes em condições de uso, era uma das funções atribuídas a moradores dos arredores paulistanos.

Além de sua manutenção, a abertura dos caminhos também era de responsabilidade dos proprietários, e, comumente, eram designados a partir do nome daquele que os tinha aberto ou que possuía propriedade nas proximidades. É a partir do nome de outro morador da freguesia do Brás, cuja chácara é mencionada na ata acima transcrita, que os elementos geográficos existentes na estrada da Penha, nas proximidades do ribeirão Cassandoca, são denominados nos Registros de Terras: ponte chamada – do Nicolau (RT 12A) / ponte do

Nicolau (RT 22); várzea chamada do – Nicolau (RTs 22 e 30B); córrego do Nicolau (RT 22); terreno denominado Nicolau (RT 30B); Local: Nicolau (RT 138A).

Na freguesia do Brás, outros tantos designativos são engendrados pela indicação de proprietários e mantidos, nas décadas seguintes, mesmo após falecimento destes moradores e/ou venda da propriedade para outros indivíduos:

* a família de José da Silva Ferrão, com sítio na região desde a primeira metade do século XVIII33, é diversas vezes chamada em reformas da estrada e da ponte na várzea do Carmo (Reis, 2004, 89-91). Na década de 1870, apesar da vitalidade do topônimo ponte do Brás, indica-se, também, a antiga designação: do Ferrão (ACSP, LVI, 93; LVIII, 31; LIX, 55; LXII, 59; 98; LXV, 30);

* esta mesma ponte era designava, ainda, em referência a outro proprietário na várzea do Carmo – Caetano Ferreira Baltar (RTs 58B, 133 e 146): ponte do Balthar (ACSP, LXI, 123; LXII, 48; LXV, 122) / ponte denominada do Balthar (ACSP, LIX, 162 e 164; LXI, 142) / ponte do Balthasar (ACSP, LXV, 152);

* na rua da Mooca, a ponte da Tabatinguera era também denominada como ponte do Fonseca (ACSP, LVI, 101) / ponte do Tabatinguera (Fonseca) (ACSP, LVII, 38).

A construção de uma capela, por sua vez, é apenas conseqüência da existência de adensamento, por mais exíguo que fosse, no local. Quanto ao orago que deu nome à recém- criada freguesia, afirma-se que foi a maneira de José Brás homenagear a sua própria terra, Matozinhos, no Porto, cuja igreja matriz, datada do século XVI, é dedica ao Senhor Bom Jesus. A capela em si, contudo, pouco diferia de tantas outras construídas em São Paulo. O seu orago compõe a designação da freguesia devido à localização da capela no caminho de José Braz, trecho inicial da estrada da Penha, e por indicar a orada mais próxima do núcleo. Nas décadas seguintes, o nome da via se sobrepôs ao da orada, fixando-se como designativo da freguesia, sem qualquer interferência oficial.

No Mappa de Bresser, foi anotado Freguesia do Braz, mas registrou Ig[reja] do Bom Jezus, sem indicação do antropônimo. Na Carta de Frederico H. Gonçalves de 1837,

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Em mandado da Câmara Municipal, de 1740, para conserto da estrada da Penha e da ponte do Brás, menciona-se sitio de Jozé da Silva Ferrão (Revista: 1946, 125). Trata-se da chácara designada da Figueira, posteriormente comprada pela Marquesa de Santos.

consta apenas Freguezia do Braz; já a capela é designada por sintagma composto (orago + antropônimo): Igreja do Snr. Bom Jesus do Braz. Igualmente, na Planta de Bresser, de 1841, aponta-se Freguesia do Braz e Igreja Bom Jesu no Braz, respectivamente. A partir da Planta de Carlos Rath, de 1868, a igreja começa a ser designada apenas pelo topônimo Brás na cartografia paulistana.

Nas Atas da Câmara ao longo da década de 1870, raras são as remissões ao orago para a designação da freguesia; Igreja do Braz é a forma encontrada mesmo quando se indica a orada. Nos Registros de Terra, igualmente, declararam-se Freguesia do Senhor Bom Jesus do Brás (RT 49) e, apenas, Igreja do Brás (RT 47).

Verifica-se, assim, o antropotopônimo Brás na referencialização do lugar, em detrimento ao hagiotopônimo, levando a confusões quanto ao orago da igreja. No primeiro capítulo do romance Rosaura, a Enjeitada, publicado em 1883, uma das personagens menciona, numa nítida ligação do nome da freguesia ao orago da capela, S. Brás:

– Pois bem, mudemos de rumo, e vamos ao arrabalde do Brás. Queres mais bonito passeio? Que vasta e formosa perspectiva nos oferece esse bairro, visto do terraço do convento do Carmo! É a mais deliciosa e encantadora que se pode imaginar. A capela de S. Brás, com seu campanário branco, e aquelas casas dispersas pela planície exalam como um perfume idílico, que enleva a imaginação...

– Basta! Basta! Por S. Brás te peço! E aquele comprido e monótono caminho do aterrado ente os charcos de Tamanduateí, exalando infectos miasmas de maresia, transposto o qual, essas planícies, que de longe parecem vastas e aprazíveis, vistas de perto não são mais que áridas e acanhadas charnecas entre rincões estéreis onde não murmura um regato, não sussurra um arvoredo, não canta um passarinho... Terra de águas mortas e de formiga saúva, campos sem selvas e sem flores... (Guimarães: 1883)

Apesar de tratar-se de obra de ficção, o seu autor, Bernardo Guimarães, que estudou na Faculdade de Direito de São Paulo, conhecedor da cidade e seus arredores, o faz por desconhecido do orago. Todos os demais topônimos encontrados na mesma obra são registros precisos da toponímia paulistana.

Se o nome do aglomerado humano e da rua são realizados a partir daquilo que melhor os referencializa, a escolha dos oragos é intencional. Se o primeiro fator é a devoção do morador ao homenagear o orago, na construção de um templo, fatores próprios à nomeação de lugares levam a fixação ou não de designativos.

Entretanto, não é possível afirmar se a escolha do orago foi realmente em virtude da origem e preferência de José Brás. Não há documentos que embasem tal explicação. É possível que Brás tenha construído uma primeira capela, ainda no século XVIII, e, antes de findar os setecentos, ela já teria ruído. Isto porque em 3 de abril de 1800, o tenente-coronel José Correia de Moraes encaminha petição ao Cartório da Câmara Eclesiástica de São Paulo solicitando autorização “para fazer uma capela ao Bom Jesus, defronte à sua chácara na sahida desta cidade para a Penha, na vargem do Carmo”. Em resposta à petição, coloca- se uma condição:

fundar, erigir e edificar uma capela ao Senhor Bom Jesus, contanto que o lugar seja alto, livre de humidades, desviado quanto possivel de lugares imundos e sórdidos e de casas particulares, não sendo porém em lugar ermo e despovado. (Sant’Anna, 1953, 503; Torres, 1969, 47)

Nos registros da câmara, percebe-se que ‘fazer’ também era equivalente a ‘refazer’ e ‘reconstruir’. Mas, pelas condições assinaladas, conclui-se que se tratava de uma nova orada, sem local definido previamente (Santana: 1953, 503). Além disso, o culto ao Bom Jesus data da época das bandeiras34. A sua invocação também era encontrada no núcleo, entre 1725 e 1872. O primeiro trecho da rua do Rosario (antigo Beco do Rosario), entre a rua Quinze de Novembro (antiga rua da Imperatriz) e a de São Bento, era conhecida como Beco do Bom Jesus. Em certa propriedade, na rua de São Bento, havia um oratório público com a imagem do Bom Jesus que, segundo Afonso de Freitas, juntamente com outros dois

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Da década de 1690, data a construção da igreja, hoje Basílica, do Senhor Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas (MG). Conta-se que sua fundação deveu-se ao português Feliciano Mendes, integrante da bandeira de Bartolomeu Bueno, que a teria construído como paga à promessa feita ao Senhor Bom Jesus dos Matozinhos, do qual era devoto, por ter se curado de grave doença. Outra referência igualmente interessante é a do município de Matozinhos (MG). Este foi formado ao redor de uma capela do Senhor Bom Jesus, cuja imagem teria sido encontrada nas ruínas de um antigo acampamento da bandeira de Dom Rodrigo de Castelo Branco. Quanto ao elemento determinante do sintagma toponímico, não seria proveniente da região de Portugal de onde originou determinada imagem do Bom Jesus, mas a antiga designação referente à vegetação do local. Matozinhos significaria, então, “pequenos matos”. (IBGE, XXVI, 490 e sgs)

existentes35 na mesma rua, recebia constantes visitas, especialmente em épocas de epidemia e seca (Sant’Anna, 1950, 12; 25-9).

No século XVIII e XIX, Bom Jesus36, independente de sua manifestação, reunia devotos. Ressalta-se que estes o buscavam em momentos de crise e que a imagem era exposta do lado de fora de propriedades particulares, em rotas de grande circulação, como o oratório público no núcleo e como primeira parada do caminho da Penha.

Indiferente a isto, a capela de Nossa Senhora da Penha continuou sendo a principal orada de São Paulo, a verdadeira padroeira da cidade. A toponímia flagra tais preferências: no caso da capela do Senhor Bom Jesus, confusão quanto à identidade do orago; no caso da Penha, utilização como referente dos diversos elementos geográficos encontrados no entorno.