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O tempo do mito e o tempo da memória descrevem um mesmo movimento de reposição: sai do presente, vai para o passado e volta ao presente – não há futuro. A religião é a ritualização dessa memória, desse tempo cíclico, ou seja, a representação no presente, através de símbolos e encenações ritualizadas, desse passado que garante a identidade do grupo – quem somos, de onde viemos, para onde vamos? É o tempo da tradição, da não-mudança, tempo da religião, a religião como fonte de identidade que reitera no cotidiano a memória ancestral (PRANDI, 2005, p. 32-33).

Neste capítulo, a partir de fontes históricas e antropológicas e dos depoimentos registrados, discutiremos o surgimento e as matrizes etno-culturais constitutivas do Tambor de Mina na Amazônia, buscando identificar, ainda, as influências recebidas da Mina maranhense e diferenças e semelhanças com outras religiões afro-brasileiras, numa tentativa de evidenciar uma convergência de tradições no universo religioso pesquisado.

Em um segundo momento do capítulo, objetivamos traçar um perfil antropológico da Casa de Mina Estrela do Oriente, discutindo: a) o surgimento da casa e o itinerário formativo de seu líder religioso, tópico em que inicia o debate sobre a educação no terreiro, no aspecto da formação de um sacerdote; b) a tradição religiosa da casa, evidenciando características importantes de seu modelo de culto; c) o panteão cultuado na casa, constituído de voduns, orixás e uma variedade de encantados; e d) a organização do terreiro, apresentando a hierarquia da religião, o público freqüentador, os tipos de trabalho desenvolvidos e o calendário do terreiro.

No contexto da dissertação, este capítulo visa apresentar o Tambor de Mina ao leitor, informando-o acerca de sua história, características e tradições e seu modelo de culto, criando condições, desse modo, para um melhor entendimento da educação no cotidiano do terreiro.

3.1 RAÍZES HISTÓRICAS E CONFLUÊNCIAS DE TRADIÇÕES NO TAMBOR DE MINA NO PARÁ

O sincretismo ibero-afro-indígena como constitutivo da cultura brasileira, e em particular os seus referenciais culturais negros, é conhecido por parcela significativa da população nacional, a despeito das manifestações de racismo e etnocentrismo evidentes nas relações sociais cotidianas.

Desde os primeiros anos da educação básica, os estudantes se defrontam com conteúdos referentes às “contribuições culturais” das três raças/etnias para a formação da cultura e do povo brasileiro. Aprende-se que elementos da culinária, da música, da linguagem, do vestuário brasileiros foram legados às gerações atuais por nossos ascendentes étnicos, os quais se

miscigenaram (biológica e culturalmente) no processo histórico de formação do Brasil.

Essa educação, na sua feição tradicional e hegemônica, tende a obscurecer os jogos e conflitos de poder constitutivos de tais relações interétnicas, contribuindo por representar um sincretismo estável, harmonioso, equilibrado. Como conseqüência, essa abordagem naturaliza assimetrias sociais e raciais, reforçando-as significativamente.

Especificamente quanto às abordagens sobre a cultura negra no contexto escolar, os aspectos ideológicos e, muitas vezes, racistas acerca dessas questões têm sido denunciados por diversos autores, sob diferentes perspectivas: a discriminação do negro no livro didático (SILVA, 1995); a reprodução de preconceitos étnico-raciais na formação de professores (COELHO, 2006); a discriminação de crianças e jovens praticantes das religiões de matriz africana no cotidiano escolar (SANTOS, 2006; GUEDES, 2005).

Consideramos, ainda, que uma das ideologias mistificadoras sobre a cultura negra, reproduzidas na escola e na sociedade, é a homogeneização da África e de seu povo, esse tido como único, sem diferenças etno-históricas, sendo a figura do escravo dos períodos colonial e imperial o símbolo por excelência da presença africana no Brasil.

Assim, desconstruir o racismo e as versões estereotipadas acerca da história dos africanos no Brasil implica, entre outras questões, reconhecer a diversidade étnica dessas populações, sua constituição a partir de múltiplas

nações25, uma tarefa que nos ajudará a situar o surgimento do Tambor de Mina no Brasil e na Amazônia.

Segundo Edison Carneiro (1959, p. 04), os primeiros escravos que aportaram ao Brasil vieram da região da Guiné Portuguesa, “então uma zona imprecisa que se estendia para o norte, até o Senegal, e para o sul, até a Serra Leoa”, a Costa da Malagueta, de onde vieram africanos fulas e mandingas. Essas

25 O termo se refere às diversas nações étnicas africanas, como forma de organização sociocultural e demarcação geopolítica dessas populações. O termo também pode ser utilizado para “designar os diversos ritos, a partir das diferentes ênfases culturais pelo qual o candomblé se apresenta, como o candomblé ketu, angola, de caboclo, entre outros. Cf. PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do Axé:

sociologia das religiões afro-brasileiras. São Paulo: Editora Hucitec, 1996. Em Belém é, igualmente,

utilizado para assinalar qual religião é praticada em determinado terreiro, como a umbanda, mina-nagô, tambor de mina, e as várias modalidades do candomblé.” (QUINTAS, 2007, p. 10).

etnias foram utilizadas em trabalho escravo na área dos canaviais, principalmente Bahia e Pernambuco, mas também na Amazônia, não obstante Angola tivesse se tornado o novo centro fornecedor de escravos para o Brasil, durante o período de colonização da Amazônia por Portugal.

Explica o autor que de Angola e do Congo vieram negros de língua banto, conhecidos por nomes geográficos e tribais: caçanjes, benguelas, rebolos,

cambiadas, e que da região de Moçambique chegaram poucos negros, das etnias muxicongos, macuás e anjicos. Quanto aos negros da Costa da Mina, a linha

setentrional do Golfo da Guiné, e região fundamental para a origem do nome e das tradições do Tambor de Mina, esses aportaram no Brasil a partir do século XVIII, e podem ser divididos em negros do litoral – nagôs, jejes, fantis e axantis, gás e txis (minas) – e do interior, do Sudão islamizado – hauçás, kanúris, tapas, grúncis, e novamente fulas e mandingas (CARNEIRO, 1959, p. 05).

Muitos negros da Costa da Mina, inicialmente aportados na Bahia e distribuídos para as zonas de mineração do Brasil, foram depois vendidos para Pernambuco e para o Maranhão, quando o ciclo de exploração do ouro entrou em decadência. No Maranhão, os negros da Costa da Mina se ocupavam de serviços domésticos e urbanos, destacando-se duas nações étnicas: a dos nagôs e a dos jejes, que aí assumiram a liderança religiosa em igualdade de condições, diferentemente do que aconteceu no resto do Brasil, onde se observou uma maior influência nagô nos cultos religiosos africanos (CARNEIRO, 1959).

Quanto ao tráfico negreiro na Amazônia, sabe-se que desde o século XVII negros da Costa da Mina e de Angola foram trazidos para o Pará, e que no século XVIII houve um intenso tráfico entre as costas ocidental e oriental da África e o Estado do Grão-Pará e Maranhão (VERGOLINO, 2003). Segundo a autora, apesar dessa presença, não há registro histórico conhecido sobre a fundação de nenhum terreiro de raiz africana organizado por escravos ou libertos do Pará nesse período, como aconteceu na Bahia e no Maranhão.

Vergolino (2003) conclui que a ausência desse referencial histórico conduz pesquisadores e as próprias lideranças religiosas dos terreiros a terem posições contrárias sobre o surgimento da tradição afro-religiosa do Pará, pois tanto se afirma que as raízes desses cultos são oriundas do Maranhão, quanto se afirma

que o culto se desenvolveu simultaneamente no Maranhão e no Pará26. O que parece ser consenso, no entanto, é a constatação da íntima relação entre os cultos do Pará e do Maranhão, posição defendida pelos autores trabalhados nesta pesquisa e por representantes das duas versões acima mencionadas. A narrativa do pai-de-santo do terreiro pesquisado, contudo, vai além da indicação dessa relação. Para ele, de fato, o Tambor de Mina surge no Maranhão e somente tempos depois é que chega ao Pará, trazido por maranhenses que aqui se estabeleceram27.

Ao perguntar ao pai-de-santo sobre a origem da Mina, esse assim responde:

Pelo que me foi passado pelos meus guias, a Mina chegou primeiro pelo Maranhão. Hoje, tu deves saber, existem três casas, que são as mais importantes do Maranhão, a Casa das Minas Jeje, a Casa de Nagô e a Casa da Turquia. Essa Mina que nós temos hoje aqui é uma miscigenação das três casas, juntou um pouquinho de cada uma. Porque a gente não vê um nagô puro, eu não vejo um jeje puro, é uma mistura (Pai Mábio Júnior).

A formação religiosa de Pai Mábio Júnior, como veremos adiante, foi significativamente feita no Maranhão e os pais-de-santo, para os quais “entregou sua cabeça”28, também maranhenses, explica a forte influência das tradições do Maranhão na conformação de seus saberes e na forma de organizar o culto na Casa de Mina Estrela do Oriente.

Na sua entrevista, Mábio Júnior refere a importante presença de três tradicionais casas de culto maranhenses para a constituição do Tambor de Mina: a

Casa Grande das Minas, ou simplesmente Casa das Minas, a Casa de Nagô e o Terreiro da Turquia. De fato, a Casa das Minas e a Casa de Nagô constituem-se nas

26 Esta última versão é narrada por eminentes lideranças paraenses do Tambor de Mina, como Pai Tayandô, que no filme “A Descoberta da Amazônia pelos Turcos Encantados” (2005), dirigido por Luiz Arnaldo Dias Campos, refere a entrada dos caboclos turcos pela Ilha de Marajó e fala da fundação do Tambor de Mina no coração da Amazônia.

27 Embora Vergolino (2003) denomine de Tambor de Mina a tradição maranhense e Mina-Nagô a tradição paraense, optamos por usar a primeira expressão também para o terreiro pesquisado, considerando ser assim que os sujeitos auto-denominam sua religião, como uma forma, inclusive, de evidenciar a profunda conexão com as tradições maranhenses.

28 A cabeça, vista como uma importante região para o acontecimento de fenômenos mediúnicos, nessa expressão, denota, também, uma relação educativa estabelecida entre iniciantes e sacerdotes, sob os preceitos da confiança, do cuidado e do rigor. De modo semelhante, pode-se falar de um determinado caboclo “na cabeça” de um médium, o que representa um estado de incorporação ou transe mediúnico.

principais referências religiosas e históricas do Tambor de Mina, e representam a expressiva influência, respectivamente, da cultura jeje, originária dos negros escravos vindos do Daomé (atual República Popular do Benin) e da cultura nagô, do povo sudanês, habitante da região de Ioruba, na Nigéria (África Ocidental).

Ambas as casas localizam-se na Rua de São Pantaleão, no Centro Histórico de São Luís (MA), separadas uma da outra por apenas uma quadra. Quanto ao período de surgimento dessas casas, Vergolino (2003) afirma não haver certeza histórica, apontando-se para a Casa das Minas tanto o ano de 1796 (século XVIII), quanto o período de 1842-1847 (século XIX). A Casa de Nagô, segundo fontes também imprecisas, teria sido fundada no mesmo período da Casa das Minas, no século XIX.

Foto 04: Fachada da Casa das Minas Jeje – São Luís (em reforma do IPHAN)