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1.4 ENFIM, A TELENOVELA

1.4.2 Telenovela: refração / alcance sociais e dimensão pedagógica

A partir do estreitamento dos laços com a realidade, a telenovela brasileira começa a tirar proveito da sua centralidade e representatividade social e cultural e amplia sua dimensão cênica, transformando-se em uma espécie de palco que problematiza a realidade brasileira. De forma mais pontual, estabelece-se um ponto de intersecção entre a ficção constante em seus enredos criados e a realidade, na qual passa a buscar uma nova matéria-prima para suas histórias: os problemas sociais. Desde então,

É a lógica das relações pessoais, familiares que preside a narrativa dos problemas sociais. É aí que parece residir o poder dessa narrativa, sua capacidade de traduzir o público através das relações afetivas, ao nível do vivido, misturando-se na experiência do dia a dia, vivida ela mesma em múltiplas facetas, subjetiva, emotiva, política, cultural, estética (LOPES, 2009, p. 8).

No plano histórico-formal, essa nova orientação, conforme Lopes (2009) inaugura um novo momento da história da telenovela brasileira, que tem início a partir da década de 1990. Nesse período, a linguagem realista que acompanhava as novelas de televisão brasileiras desde a década de 1970 cede espaço ao naturalismo.

Concretamente, desde então, as tramas fictícias abordam temas muito próximos da realidade e aos quais conferem um tratamento fortemente vinculado ao real. Tanto em termos estéticos quanto narrativos, essas obras aproximam-se do documentário. Ou seja, ao que se assiste é uma sucessão de imagens captadas e tratadas por meio de recursos próprios do estilo documental ou jornalístico – conforme se verá no capítulo 2 – que se corporifica na forma de um relato de leitura documentarizante. Em síntese, a reprodução ou reapresentação da realidade apresentada pela telenovela é feita de uma forma que tenta minimizar as ferramentas de mediação.

Esse panorama permite vislumbrar três consequências principais.

Primeiramente, observa-se um movimento crescente de aproximação entre ficção e realidade. Motter (2003) reitera que é a partir da década de 1970 que a telenovela brasileira empenha-se em reconstruir, no plano da ficção, a cotidianidade da vida real. Dessa forma, a obra teledramatúrgica procede como mediadora da relação entre ficção e realidade. Nesse processo de transferência do real para o ficcional, a impressão de realidade não é obtida com base na reprodução do real concreto e sim por um processo de generalidade que visa a ambos os espaços discursivos e os dá consistência. Assim, os mundos real e ficcional fundem-se em uma espécie de amálgama que cria um universo particular, o da telenovela (Martin-Barbero 2001).

Dentro deste contexto, destaca-se, aqui, a telenovela brasileira que, há anos, [...] interage diretamente com o cotidiano do cidadão brasileiro (a expressão é de Motter). Assim, além de documentar, ela evidencia metamorfoses. Lança um olhar, dentre vários possíveis, sobre a sociedade brasileira e a época em que se encontra. Nesse sentido, podemos entender a telenovela como documento de época, porque está marcada pelo presente e porque disponibiliza um material audiovisual, mas não só, podemos entendê-la também como lugar de memória coletiva, porque é produto e produtora da interação social (JAKUBASZKO, 2004, pp.34 – 5)

Para tanto, as obras de ficção fundamentam-se em um trinômio formado pela familiaridade, a cotidianidade e a realidade, esquema que pode ser distintivo de um modo genuinamente brasileiro de se tecer e narrar tramas fictícias.

A segunda consequência que desponta nesse escopo é a dimensão pedagógica da telenovela. Lopes (2009) sublinha que, por sua matriz originária melodramática, esse gênero já nasce com uma ―função pedagógica originária‖

(p.13). Ocorre que o melodrama foi concebido com uma missão educativa. Por meio dele, intentava-se propagar, aos iletrados, princípios políticos e morais. Com o passar do tempo e o aprimoramento das formas narrativas, a telenovela assume um caráter pedagógico implícito, por meio do qual promove um espelhamento da realidade de maneira subentendida, como acontece nas obras realistas datadas de 1970 até 1990.

Nos últimos 20 anos, porém, a crescente hibridação entre ficção e realidade e a recorrente abordagem de assuntos polêmicos verificadas no conjunto das telenovelas brasileiras, em especial as exibidas na faixa das 21 horas pela Rede Globo, denotam uma dimensão pedagógica ―deliberada‖ (LOPES, 2009, p. 13), caracterizada por opiniões e conhecimentos conceituais acerca da realidade, como aconteceu, de forma inaugural, com Barriga de Aluguel (1990 – 1991), cujo enredo tratava de métodos não convencionais de fertilização, ou com a inovadora Mulheres Apaixonadas (2003), que apresentava várias tramas de interesse público (Memória Globo, 2011), conforme poderá ser verificado no capítulo 2.

Diretamente ligada a esse aspecto, aparece a terceira consequência da investida naturalista da telenovela, que pode ser definida como um aguçamento da ideia de responsabilidade social por parte do domínio da produção de ficção televisiva nacional. Afinal, à medida que retratam questões de relevância social, as histórias de ficção propõem debates acerca de temas considerados tabus;

problematizam situações de preconceito seculares ou latentes; falam das desigualdades, da diversidade e da alteridade, dentre outros.

Por meio da já conhecida mescla de apelo melodramático e engajamento social, a telenovela aproxima do cotidiano do brasileiro a situação do negro, as dificuldades enfrentadas pela mulher, os anseios e angústias dos homossexuais e dos deficientes, as dores das vítimas da violência e da dependência química, o drama dos doentes e dos esquecidos.

Nas palavras de Lopes, ―a fusão dos domínios do público e do privado realizada pelas novelas lhes permite sintetizar problemáticas amplas em figuras e tramas pontuais, e ao mesmo tempo, sugerir que dramas pessoais e pontuais.

podem vir a ter significado amplo‖ (2009, p.8). Tudo isso feito de um modo naturalista que confere grande credibilidade aos casos fictícios, por meio de uma oscilação equacionada entre transgressão e conformismo.

Em suma, sem jamais perder de vista o seu estatuto de produto cultural de entretenimento, a telenovela brasileira, a partir de um passado recente, notabiliza-se por um visível esforço de converter sua credibilidade e legitimidade sociais em força de mudança social. Em outras palavras, é por meio do consumo de imagens e mensagens que dão visibilidade a diferentes formas de minoria que o telespectador brasileiro é sensibilizado, via ficção, para a prática da tolerância, a promoção da inclusão, o respeito à diferença, a busca pela paz social. Enfim, para a conquista, a seguridade e o exercício da cidadania.

É, pois, assim que a telenovela faz uso de seu grande potencial de estímulo do imaginário social para se converter em um instrumento de debate, ao mesmo tempo, sobre o que é público e o que é privado. Ou, dito de outra forma, publicizando a discussão de determinados temas a partir de um agendamento que toca a cada um em particular. Seja como for, é graças à especial aptidão no trato da dicotomia entre o público e o privado que a telenovela vai (re) construindo, (re) produzindo ou re(a)presentando os mais diversos traços da realidade social (MOTTER, 2003).

Contudo, conceber a telenovela como ―recurso comunicativo‖ implica entendê-la para além do âmbito da produção e da emissão. Segundo Lopes (2009), é justamente por representar esse tipo de recurso que a novela de televisão proporciona uma maior participação do telespectador tanto no que tange à trama fictícia quanto no que se refere aos seus desdobramentos sociais. Imaginada ou real, essa participação é viabilizada, principalmente, pela conversação cotidiana.

Nesse contexto, ―a novela tornou-se uma forma de narrativa sobre a nação e um modo de participar dessa nação imaginada‖ (LOPES, 2009, p. 9).

Ao discorrer sobre a equivalência entre o assistir à telenovela e o falar sobre ela, a autora afirma que é nesse espaço de conversação cotidiana sobre informações e significações veiculadas na e pela telenovela que seu conteúdo vai sendo reelaborado, ressemantizado e, efetivamente, assimilado pelos telespectadores.

Recentemente, esse espaço de conversação ganhou uma versão virtual com a popularização do uso da internet, que multiplica as possibilidades de participação da audiência no universo das telenovelas por meio de numerosas e diversas ferramentas de interatividade (Lopes, 2009). Porém, não é somente em aspectos físicos e concretos que a rede mundial de computadores representa essa ampliação participativa. Conjugando representatividade quantitativa com grande velocidade de disseminação, o conteúdo posto em circulação por computadores domésticos investe a internet de força social e simbólica que repercute no campo político.

Provas disso são os casos de projetos de leis aprovados no Brasil depois – e, em alguns casos, por conta – da abordagem de determinadas questões nas telenovelas.

Dois deles serão apresentados de forma mais detalhada no próximo capítulo.

Por tudo isso,

A novela brasileira talvez seja um exemplo único de como um sistema de mídia televisiva pode ser um dos fatores a contribuir para a emergência de um espaço público peculiar que nos anos atuais se apresenta como uma nova forma de construção de cidadania. A novela, enfim, parece ter conseguido permeabilizar o espaço público brasileiro à atualização e à problematização da identidade nacional em um período de profundas e aceleradas transformações globais (LOPES, 2009, pp. 12 – 3).

Tais mudanças, aliás, incluem uma nova postura dos veículos de comunicação de massa, em seus processos e produtos. Ainda que operando sob forma de empresas privadas de caráter comercial, os media vêm, contemporaneamente, investindo mais na responsabilidade social sobre a geografia física e humana em que atuam. Observa-se, por parte da iniciativa privada, um crescente engajamento em questões de interesse público.

Por meio do emprego de práticas e técnicas de comunicação, sobretudo, as empresas privadas passam a se empenhar na proposição de debates acerca de questões prementes da realidade social de então (Fadul, 2000) e na promoção de intervenções concretas nessa realidade. Dentre esses expedientes, destacam-se o investimento na ideia de responsabilidade social e o merchandising social, temas a serem abordados no capítulo 3.

Antes, porém, no próximo capítulo, apresenta-se um panorama da telenovela Mulheres Apaixonadas, exemplo contundente da adoção de uma postura de compromisso social por parte das novelas de televisão brasileiras e objeto central desta pesquisa. A partir dela, destaca-se as principais características ficcionais de

seu autor, Manoel Carlos, e se discorre sobre as transformações históricas e estéticas que conferiram à telenovela brasileira uma identidade própria e um grande potencial de penetração social, características constantes na obra do dramaturgo em questão.

2 TELENOVELA BRASILEIRA NA REDE GLOBO: DA BUSCA POR UMA