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4.2 Categorias analíticas dos produtores

4.3.2 Tensão na relação

Um aspecto importante da cultura dos produtores de marketing é que acreditam ser agentes de mudança cultural e operam em conformidade com essa crença. Além de acreditarem ter papel importante em uma mudança cultural na gestão do clube como um todo ‒ incluído aí o departamento de futebol, considerado o reduto maior do “misticismo” no clube ‒, pensam que é sua função e têm agido nesse sentido de moldar a cultura do torcedor visando “separar” o consumo dos resultados de campo ‒ em outras palavras, modificar a dinâmica do “círculo virtuoso”. Tendo como objetivo maiores vendas, com

mais previsibilidade, produtores de marketing têm a crença na possibilidade de desvincular os resultados de campo e os títulos do time de futebol do consumo por parte dos torcedores. Ou seja, do círculo “mais vitórias, mais torcedores, mais consumo, mais recursos, time mais competitivo, mais títulos, mais consumidores...”, e assim por diante, querem criar um círculo paralelo que seria composto de “mais consumo, mais recursos, mais torcedores...”, e assim por diante. Isso implica em “encurtar” o “círculo virtuoso do futebol/negócio”. É o que foi chamado de “relação de casamento”: na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, o torcedor deveria comprar produtos e serviços do clube.

O caminho para a realização de tal dinâmica de geração de recursos se daria pelo aumento do valor de troca oferecido por meio dos produtos e serviços, de forma independente do desempenho do time em campo ou em relação à conquista de títulos. Produtores acreditam que, oferecendo mais conforto, mais segurança, produtos de maior qualidade, maior mix de produtos, mais promoções, vivências e experiências com os ídolos e os locais sagrados do clube, mais promoções de marketing, mais ações de valorização dos torcedores perante sua comunidade, podem aumentar as vendas independentemente, ou com menos influência, dos resultados de campo.

Esse fato pode possivelmente representar um foco de tensão entre produtores e torcedores/consumidores. Pela análise realizada, as vitórias do time, os resultados de campo, os títulos conquistados servem como uma recompensa por todo o esforço, todo o sofrimento que a paixão pelo clube demanda. Como foi visto na revisão sobre o conceito de paixão, esse sentimento forte, intenso e transformador que é vivido pelos torcedores pode muitas vezes ser vivido na forma de perda, de sentimento de falta. Essa dor da falta, da falta de títulos e de vitórias na maior parte da vida de um clube, esse amor Eros que é o cotidiano da vida do torcedor é recompensado pelos momentos de conquista (de ter nas mãos o objeto de desejo que representa a paixão). Tentar desvincular o consumo dos resultados de campo representará no mínimo um esforço grandioso, pois aparentemente implica na mudança do sentimento do torcedor com base em um amor Eros (paixão) para um amor

Philia (amizade), ou quem sabe Ágape (caridade). O objetivo dos produtores

emoção louca, na vontade incontrolável de possuir (Eros) para uma amizade, pelo amor ao que se tem, ao que é presente e possível (Philia). Até que ponto isso é possível? Difícil responder, mas esse é um potencial foco de tensão na relação, e mostra os objetivos ambiciosos definidos pelo marketing.

Um dos fatos que indica a tensão nessas questões pode ser, por exemplo, o caso que ocorreu quando torcedores, imprensa e até dirigentes do clube atribuíram a derrota do time no campeonato Mundial Interclubes FIFA de 2010 à festa realizada no estádio Beira-Rio para o lançamento do DVD com o documentário da vitória da equipe na Copa Libertadores do mesmo ano. Esse foi um evento do departamento de marketing com o objetivo de promover as vitórias do clube e vender produtos a elas relacionados. Para o marketing, o evento rendeu o registro no Guinness Book como “a maior audiência a uma

cessão de cinema do mundo” (http://www.guinnessworldrecords.com/Search/Details/Largest-attendance-at-a-

film-screening/59064.htm), levando o nome do Sport Club Internacional a esferas antes não preenchidas pela sua marca (e remetendo a grandiosidade, evolução e profissionalismo), e proporcionando divulgação e venda de diversos produtos e serviços. No entanto, quando aconteceu a derrota no campeonato mundial, muitas pessoas atribuíram o fato à “festa realizada pelo marketing”, como se este representasse “uma grande festa” ou uma distração em relação aos objetivos maiores de conquista de títulos e vitórias dentro de campo.

Outro aspecto interessante nesse assunto é que os torcedores/consumidores valorizam muito as pessoas que se “doam” para o clube, que “trabalham por amor”, sem cobrar nada; valorizam os jogadores que “vestem a camisa”, “colorados de verdade”, não “mercenários”. O fato de valorizarem aqueles que se esforçam por “amor ao clube”, sem cobrar retorno financeiro pessoal, não faz com que deixem de apoiar ações dos produtores no sentido de vender mais produtos, obter mais dinheiro dos torcedores, para fazer um time melhor e para ganhar mais títulos ‒ daí conquistar mais torcedores, por conseguinte mais venda de produtos ‒, mas parece representar uma contradição e potencial ponto de tensão. Pessoas tomadas individualmente não poderiam estabelecer uma relação centrada no ganho financeiro com o clube, mas o clube pode estabelecer uma relação de ganho

com as pessoas, com a ressalva de que seja para ganhar títulos. Essa ressalva muda alguma coisa? Aparentemente sim, na cultura do torcedor, pois o agir com objetivo a lucro não parece ser o problema. Este parece residir no agir para o lucro pessoal em oposição ao clube.

Só é legitimo agir para o lucro, na cultura do torcedor, se for para o lucro que leve ao bem da unidade clube/time/torcedor, remetendo até mesmo para a história, o mito de como foi construído o estádio Beira-Rio. O estádio foi construído com a participação intensa dos torcedores, fazendo doações e levando tijolos, sacos de cimento, semanalmente, para a construção do estádio pela comunidade, fato histórico que é fonte de grande orgulho para o torcedor. Pode-se pensar que a geração de renda, a obtenção de lucros por parte do clube com a venda de jogadores ou com a venda de produtos e serviços para torcedores tem que ser feita com muito cuidado e com direta relação com o investimento nas questões centrais do pertencimento clubístico. Entre elas, as próprias vitórias do time ou outras formas de construção de “vitórias” do clube como construção coletiva da unidade, dessa “nação” única que é o Internacional no sentimento do torcedor.

Associações do torcedor da evolução, da profissionalização e da necessidade de faturamento e aumento de vendas a outros motivos, como a busca do lucro per se ou a associação do clube à lógica do capital, podem acirrar as tensões entre produtores e torcedores. Parece existir uma contracultura da lógica de mercado no nível pessoal, mas não na dimensão do clube como comunidade. Para o torcedor, o clube pode e deve ser capitalista e pró-mercado; já as pessoas não o podem, na relação com o clube. Mais uma vez podemos pensar que a paixão, conforme definida por Abbagnano (2007), é uma forma de emoção intensa que domina a personalidade e é capaz de transpor obstáculos morais e sociais. Nesse caso, imoral é obter lucro pessoal por meio do clube, mas é moral que o clube obtenha lucro por meio das pessoas, em função do objetivo da unidade. Então, a paixão parece ser a força que abre as portas para a entrada da lógica de mercado na cultura do torcedor, não como uma lógica válida para qualquer situação, mas, até esse ponto, válida na relação do clube com a sociedade e pessoas, se em nome da montagem de um time competitivo, dos títulos, de um melhor estádio e de

grandiosidade em todas as suas ações ‒ em suma do “círculo virtuoso do futebol/negócio”.

Mais um potencial ponto de tensão entre produtores e torcedores está no fato que, na cultura destes, os produtores são vistos como “colorados de verdade”, que estão lá para lutar pelo bem do clube e do torcedor. A abordagem demonstrada por muitos dos produtores de “uso da paixão” do torcedor pode ser outro ponto de tensão, caso torne-se conhecida pelo torcedor. Na cultura deste, o dirigente e o executivo profissional são as pessoas que lutam pelo Inter com muita doação e competência. Lutar pelo Inter significa ser apaixonado pelo clube, como o torcedor, “dar o máximo” pelo clube, esforçar-se para conseguir os resultados. Se a forma racional como a paixão e a relação com o clube são tratadas não vierem apresentadas de uma forma que demonstre uma abdicação apaixonada dos dirigentes e executivos, ou seja, se a racionalidade gerencial não for justificada como forma de vencer em campo ou de superar o rival em alguma seara, provavelmente haverá tensão entre produtores e torcedores/consumidores.

A paixão que traz o sentimento de unidade entre produtores e consumidores aparentemente faz os produtores terem uma crença muito forte em uma capacidade muito grande de mudança da cultura do torcedor. No entanto, a própria paixão faz com que os torcedores estabeleçam uma relação de unidade e identidade tão forte com o clube que se transformam em entes com características independentes da possibilidade de intervenção dos produtores. Há certos aspectos da relação de paixão e do pertencimento clubístico que produtores, aparentemente, não poderão influenciar com grande resultado, como, por exemplo, a separação do consumo dos resultados de campo. A tentativa de realizar tal empreitada, sem dúvida, pode ser fonte de tensão.

Portanto, podemos caracterizar a relação entre produtores e consumidores/torcedores do Sport Club Internacional como permeada por uma harmonia dominante, que é especialmente determinada pela paixão que caracteriza a relação do torcedor com o clube e do produtor com o torcedor. No entanto, tensões aparecem no momento em que produtores tentam promover ações de marketing (incluindo venda de produtos) e o time sofre derrotas em

campo. Nesses momentos, os torcedores deixam de comprar ou culpam o tal departamento pelas derrotas, mas isso, de fato, em alguns casos. Em função disso, os produtores acreditam e agem no sentido de tentar desvincular o consumo dos resultados do time em jogos e competições. Essa tentativa de desvinculação é delicada, em função da forte ligação e da necessidade que o torcedor tem de recompensas (representadas pelas vitórias). Em parte, produtores têm buscado aliviar essa tensão pela geração de ações de

marketing que promovam “vitórias pessoais” dos torcedores em termos de

prestígio dentro do ambiente institucional do clube, como forma de satisfazer essa necessidade de recompensa. Produtores também buscam aliviar essa tensão pela oferta de maior valor, por meio dos produtos e serviços oferecidos aos torcedores consumidores, especialmente por atributos como maior segurança, maior conforto, maior qualidade dos produtos. Uma terceira forma de oferecer valor para os torcedores consumidores é a própria divulgação das ações e feitos do clube não relacionados ao futebol, incluindo o próprio

marketing como “o melhor”, “o maior”, “o mais profissional”, “o mais evoluído”,