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3. ANÁLISE DAS TENSÕES E CONTROVÉRSIAS GERADAS EM TORNO DO PROJETO

3.2. Tensões e Controvérsias no Campo Jurídico

Nesse subtítulo, julgo necessário trazer, no corpo do texto desta redação, parte do conteúdo da legislação que norteia e garante o direito de liberdade de crença e de culto – tanto no contexto nacional como internacional –, por entender que esse conteúdo é de extrema importância para a compreensão e identificação das tensões e controvérsias em que se insere a proposta do referido Projeto de Lei.

Ainda que vivamos em um Estado democrático de direito, é possível afirmar que a proposta do deputado é, por si só, controversa, uma vez que a

Liberdade de Crença está amparada por direitos legais, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, que em seu artigo 18 declara:

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular. (grifo do autor)

Em SILVA JUNIOR, H. (2003) foi possível identificar o direito à liberdade de crença também em outras leis internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – promulgado pelo Decreto nº 592, de 06 de julho de 1.992 – que em seu artigo 18 prevê:

Item 1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.

Item 2. Ninguém será objeto de medidas coercivas que possam prejudicar a sua liberdade de ter ou de adaptar a religião ou as crenças e sua escolha. (grifo do autor)

E em seu item 3 completa:

Item 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas a limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

O Pacto de San Jose da Costa Rica – Convenção Americana de Direitos Humanos – promulgada pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1.992, prevê, em seu artigo 12:

Item 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

[...]

Item 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos ou liberdades das demais pessoas.

A Declaração para Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação baseada em Religião ou Crença – adotada pela Resolução 55 (XXXVI) (1981), 21.I.L.M.205 (1982), pela Assembleia Geral das Nações Unidas – declara, em seu artigo 6:

De acordo com o art. 1° da presente Declaração, e sujeito às disposições do § 3°, do mesmo art. 1°, o direito à liberdade de pensamento, consciência, religião ou crença deve incluir, inter alia, as seguintes liberdades:

(a) Cultuar e reunir-se por motivos relacionados à religião ou crença, e estabelecer e manter locais para estas finalidades; […]

(c) Fazer adquirir ou utilizar na medida adequada os artigos e materiais necessários relacionados aos ritos e costumes de religião ou crença; […] (e) Ensinar uma religião ou crença em locais apropriados; […]

(g) Treinar, apontar, eleger ou designar por sucessão líderes apropriados de acordo com as exigências e padrões de cada religião ou crença;

(h) Observar dias de descanso e celebrar festas e cerimônias de acordo com os preceitos de religião ou crença;

(i) Estabelecer ou manter comunicações com indivíduos ou comunidades sobre o tema de religião ou crença a níveis nacional e internacional.

E, na Legislação Brasileira, essa declaração gera a Lei Decreto nº 6.040, de 07 de Fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais:

O presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VI, alínea "a", da Constituição decreta:

Art. 1º - Fica instituída a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais - PNPCT, na forma do Anexo a este Decreto.

Art. 3º - Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se:

I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

E assegura a estes povos e comunidades tradicionais, em seus parágrafos III e IV:

III - o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais, levando-se em conta, dentre outros aspectos, os recortes etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação sexual e atividades laborais, entre outros, bem como a relação desses em cada comunidade ou povo, de modo a não desrespeitar, subsumir ou negligenciar as diferenças dos mesmos grupos, comunidades ou povos ou, ainda, instaurar ou reforçar qualquer relação de desigualdade.

VI - a pluralidade socioambiental, econômica e cultural das comunidades e dos povos tradicionais que interagem nos diferentes biomas e ecossistemas, sejam em áreas rurais ou urbanas.

Ainda no Brasil, a lei Nº 9.459 – de 13 de maio de 1997 – prevê que os artigos 1º e 20º da lei nº 7.716 – de 5 de janeiro de 1989 – passam a vigorar com a seguinte redação:

Art. 1º- Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

[…]

Art.20º- Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Na reflexão de Eduardo Brasil, “Assim sendo, os dispositivos constitucionais garantem o abate religioso dos judeus, muçulmanos, matriz africana, bem como o cidadão que desejar comer uma galinha cabidela no ato da sua privacidade, pode fazê-lo sem correr riscos legais”.

A Constituição Federal67 (CF) Brasileira, sob o artigo 5º Inciso VI diz

que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.

A Lei Contra Discriminação Racial – lei nº 14.18719, de julho de 2010 de São Paulo – em seu Artigo 2º, considera, para efeito desta lei, ato discriminatório por motivo de raça ou cor:

67 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

I - praticar qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória;[…]

IX - criar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propagandas que incitem ou induzam à discriminação.

Na fala de Eduardo Brasil, “considerando-se que o PL fala exclusivamente de religiões de matriz africana, entendemos que se trata de racismo institucional”.

Segundo ORO (2005), no Código Penal Brasileiro (1940), sob o artigo 208, é considerado crime contra o sentimento religioso “impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso, vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.

E o Estatuto da Igualdade Racial – na lei 12.288, decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Presidenta da República Federativa do Brasil, Dilma Rousseff, em 20/06/2010 – em seu artigo 1º determina:

Art. 1o - Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir

à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:

I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada.

Em seu Artigo 2º estabelece algumas garantias:

Art. 2o - É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de

oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais,

educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.

Quanto ao direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos – Capítulo III – os artigos 23º, 24º e 26º estabelecem:

Art. 23. - É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Art. 24. - O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende:

I - a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins;

II - a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das respectivas religiões; […]

IV - a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica;

V - a produção e a divulgação de publicações relacionadas ao exercício e à difusão das religiões de matriz africana; […]

VIII - a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais.

Art. 26. O poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de:

I - coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas;

II - inventariar, restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens de valor artístico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e sítios arqueológicos vinculados às religiões de matrizes africanas;

III - assegurar a participação proporcional de representantes das religiões de matrizes africanas, ao lado da representação das demais religiões, em comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público.

A partir desta breve explanação, verifica-se que o Projeto de Lei 992/2011 – objeto motivador desta pesquisa – inscreve-se em uma controvérsia jurídica, como bem aponta o advogado e militante nas questões que envolvem intolerância religiosa, discriminação, racismo e preconceito, Dr. Hédio da Silva Júnior:

À luz do sistema jurídico brasileiro inexiste, portanto, qualquer objeção ao abate religioso, de sorte que especulações neste sentido devem ser creditadas à desinformação, à intolerância, à improvisação ou em muitos casos a uma indisfarçável discriminação religiosa. (SILVA JUNIOR, H., 2013).

Portanto, no campo do Direito, é de se considerar a inconstitucionalidade da proposta de lei, cabendo inclusive, representação junto ao Ministério Público contra o deputado Feliciano, pois sua intenção se enquadra no tipo de crime previsto no Código Penal Brasileiro (1940) – sob o artigo 208 – uma vez que sua proposta acabaria por impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso.

Fere a Constituição Federal Brasileira (1988) – no artigo 5º Inciso Vl – pois a proposta desrespeita o direito de liberdade de crença e de culto. Infringe a lei nº 9.459 (1997) – em seu artigo 1º – pois a proposta é discriminatória e preconceituosa em relação às religiões de matriz africana. Viola a Lei Contra Discriminação Racial – no artigo 2º, Inciso l – uma vez que sua proposta tenta intimidar, constranger e expor, de forma vexatória, as religiões de matriz africana. E contraria o Estatuto da Igualdade Racial – nos artigos 1º, 2º, 23º,24º e 26º – conforme consta na redação desta dissertação.

E, para além disso, os animais utilizados nos rituais de sacrifício, não se enquadram no texto do artigo 225 da Constituição Federal, ou seja, não são animais que estão em extinção.

3.3. Mercado Religioso x Economia do Sagrado: uma análise das