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A teoria de Karl Mannheim e sua recepção no Brasil – hipóteses sobre a lógica de sua recepção

A obra do sociólogo húngaro-alemão Karl Mannheim (1893-1947) vem assumindo nos últimos anos um lugar de destaque e importância. Um pri- meiro e interessante dado é que, se as últimas gerações de cientistas sociais brasileiros pouco conhecem da obra mannheimiana, esta não era certamente a configuração da intelectualidade nacional entre as décadas de 1940 e 1970, onde a referência direta a seus textos ou indireta, pelo uso de suas teorias e método, apareceu com força na obra de vários autores nacionais. E essa tam- bém não era a recepção e circulação da obra do autor alemão no cenário inte- lectual europeu.

Comecemos por este último ponto, destacando alguns elementos da pro- dução de Mannheim que auxiliam a compreensão da importância de seu tra- balho no ambiente europeu, em especial pela recepção de sua grande teoria – a Sociologia do Conhecimento. A trajetória acadêmica de Mannheim inicia-se no campo da filosofia e da teoria do conhecimento, avança pela filosofia social, migra marcadamente para o campo da teoria social na obra Ideologia e Utopia (publicada originalmente em 1929) e deságua, em seus últimos trabalhos, na reflexão sobre a questão política em sociedades avançadas.

Entre a publicação de Ideologia e Utopia e sua última obra, Liberdade,

Poder e Planificação Democrática (que veio a público postumamente em

1950, após três anos de seu falecimento), os acontecimentos políticos, so- ciais, econômicos e culturais na Europa no entorno de experiências cruciais como a ascensão dos fascismos, do nazismo e da II Guerra Mundial influen- ciaram o deslocamento de sua agenda intelectual para temas ajustados aos dilemas emersos desse novo contexto como a racionalidade da ação política (presente na obra Homem e Sociedade numa Era de Reconstrução Social, de 1940) e a importância da construção de balizas democráticas e de contro- le social-racional com vistas ao diagnóstico e solução dos principais pro- blemas políticos contemporâneos (como é o caso da tese presente no livro

Diagnóstico de Nosso Tempo, de 1943). Em Liberdade, Poder e Planificação Democrática o foco analítico de Mannheim estava ancorado principalmente

na esfera da política, onde buscou analisar os valores e as instituições – em um momento de crise e de profundas transformações – necessários para a consolidação da democracia.

Do complexo conjunto de temas e problemas analisados na obra de Man- nheim, gostaríamos de selecionar aqueles que, ajustados em seu alcance expli- cativo para sociedades centrais (o ambiente da Europa da primeira metade do século XX), puderam ser recebidos e influenciar o contexto intelectual latino- -americano, em especial o pensamento social e político brasileiro do período compreendido entre os anos 1950 e 1975. São eles: (i) a concepção epistemo- lógica da Sociologia do Conhecimento; (ii) a função social do conhecimento e o papel dos intelectuais e (iii) a noção de racionalidade do desenvolvimento social e as tarefas da democracia em situação de planejamento.

A concepção ontológica da Sociologia do Conhecimento estabelece como pressuposto epistemológico a construção do diagnóstico de época, recupe- rando trajetórias sociais cristalizadas em um arranjo epocal, uma constela- ção de sentido e direção social, emergente da estrutura de opções legadas pelo passado e definidas pelo presente. É um tipo de historicismo (sem a teleologia presente nos modelos hegeliano e marxista) que procura detectar o presente a partir da compreensão dos resultados das tensões pretéritas que convergem em uma configuração atualizada: mix de uma visão diacrônica e simultaneamente sincrônica1. Nesse processo, as representações simbóli-

cas – as ideias – são forças sociais ativas, distribuídas como arranjos ideoló- gicos ou utópicos, funcionando como meios de consecução das experiências reais. Não são apenas representações: são parte da existência social e método para apreensão desta.

No movimento de interrogar e compreender as diversas e concorrentes expressões da realidade social emerge a figura do intelectual, único ator com treinamento técnico apto a produzir um conhecimento síntese sobre a di- versidade das expressões ideacionais em curso no heterogêneo e conflituoso complexo social. Independentemente de sua origem de grupo ou de classe, 1 Trabalho importante de Mannheim sobre o tema é “Gênese e natureza do Historicismo” in Mannheim, (Coleção Grandes Cientistas Sociais), compilação organizada por Marialice Fo- racchi e o próprio Florestan Fernandes.

o intelectual possui o método objetivo, a expertise e a capacidade de olhar a realidade transcendendo seu interesse próprio, assumindo uma função social importantíssima – a da chegar à síntese das diferenças ideológicas e utópicas. Ao mesmo tempo, a compreensão sintética das tensões sociais pode auxiliar as sociedades a encontrar soluções mais efetivas e eficientes para seus proble- mas, aumentando a capacidade e o alcance da racionalização da vida social e configurando um destino prático para o conhecimento.

Mannheim, ao problematizar os temas apontados, procurava municiar as ciências sociais de instrumentos seguros e legítimos para compreender a mu- dança social, sem recorrer a explicações acima ou fora da dinâmica social e sem comprometer-se com o dever ser de um historicismo teleológico. Pesava na agenda de pesquisa de Mannheim, também, os efeitos danosos que a ir- racionalidade de certas ideologias como o nazismo poderia causar no futuro das sociedades modernas. A introdução da racionalidade e do planejamento como técnica social eram apostas positivas para coibição de resultados nefas- tos da desordem e das paixões sociais.

Contudo, ainda que Mannheim tenha trabalhado com inúmeras das formas de descompasso da vida social moderna – quer em termos do desa- fio científico para compreendê-las, quer do ponto de vista político na en- genharia para neutralizá-las, seu contexto histórico e seu horizonte epocal estavam adstritos às experiências históricas mais avançadas da moderni- dade ocidental: a trajetória e o contexto sociopolítico da Europa. E, no en- tanto, suas ideias circularam e influenciaram fortemente intelectuais que vivenciaram outra experiência histórica– a da periferia subdesenvolvida. A distância entre o padrão de problemas tratados por Mannheim tendo como pano de fundo os dilemas europeus, pode se compreendida como em sua recepção e apropriação para o caso brasileiro? Qual sua função heurística e como foram adaptadas ao contexto do subdesenvolvimento – tese que orientava a pauta de reflexão da maioria da intelectualidade nacional no período?

Partindo destas perguntas, passamos a analisar, em seguida, como a per- cepção de uma outra trajetória histórica – a latino-americana e em particular a brasileira – fomentaria um papel inédito para o diagnóstico, o lugar do pensa- mento e da ação do intelectual e da transformação social orientada – dois dos principais elementos que permitiram a assimilação das teses mannheimianas na compreensão dos dilemas de uma sociedade em processo de modernização e superação do subdesenvolvimento.