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A tirania do irmão mais fraco

R. C. Sproul Santificação

Os reformadores protestantes estavam unidos na sua afirmação de que a Bíblia ensina a justificação pela fé somente, mas não por uma fé que está sozinha. A fé salvadora imediata, necessária e inevitavelmente mostra evidência de si mesma nas boas obras que produzimos no processo de santificação. Paulo nos ordena a desenvolver nossa salvação com temor e tremor à medida que Deus opera em nós o querer e o realizar (Fp 2.12-13).

Não devemos ficar à vontade em Sião, nem ser quietistas que “deixam a vida rolar e Deus cuidar de tudo”. A vida cristã requer labor com temor piedoso, que chamamos reverência, e com adoração sempre presente no coração daqueles que temem o Deus vivo. A santificação não deve ser tomada como uma questão casual.

Há, contudo, várias armadilhas que minam nossa santificação. Predominantes entre elas estão o antinomismo e o legalismo. Antinomismo quer dizer anti-lei. Ele traz a ideia de que uma vez salvo pela graça, eu não devo mais me preocupar em viver uma vida de obediência e não preciso mais prestar atenção à lei de Deus. O refrão favorito do antinomista é “livre da lei, ó bendita condição, posso pecar quanto quiser e ainda ter remissão”.

Um dos temores do catolicismo romano durante a Reforma Protestante era que a doutrina da justificação pela fé produziria apenas antinomismo. Havia, de fato, alguns reformadores radicais que entenderam erroneamente a doutrina e seguiram essa direção. Mas a ala reformada da Reforma estava convencida de que, conquanto a lei cerimonial fora cumprida e ab-rogada, as leis morais fundadas no caráter de Deus continuavam relevantes, mas para mostrar aos cristãos como agradar a Deus e não para obter a salvação.

Hoje o antinomismo é epidêmico. Alguns dizem que a lei do Antigo Testamento não tem mais importância para a vida do cristão. Um dos exemplos mais notórios disso é a ideia epidêmica destrutiva do cristão carnal. Essa é uma contradição de termos, quando entendemos o que se quer dizer com “crente carnal”; mas há um sentido em que a expressão tem uma aplicação para nós. Todos nós que estamos em Cristo continuamos em algum grau carnais, pois nossa carne — nossa vontade e natureza em oposição a Deus — não será erradicada até que sejamos glorificados. Não é isso, no entanto, o que os defensores do cristianismo carnal querem dizer quando chamam alguns crentes de carnais. A ideia do cristão carnal diz que é possível chegarmos a uma fé salvífica verdadeira e receber a Jesus como Salvador, mas não como Senhor. De acordo com esse ensino, uma pessoa verdadeiramente convertida pode nunca produzir o fruto de uma vida santificada, mas permanecer extremamente carnal e despreocupada com a lei de Deus até a morte. Cristo está na vida do cristão carnal, mas não no trono dela. O “eu” se assenta no trono e define como a pessoa irá viver.

De onde veio essa ideia do cristianismo carnal? Má teologia é uma resposta. Mas também pode vir de uma forma de se buscar explicar por que tantos que professam Cristo não mostram nenhuma evidência disso. Conheci um jovem que vivia com sua namorada e vendia drogas, mas justificava seus pecados chamando a si mesmo de cristão carnal. Ele tinha vindo à frente num altar, mas não fazia qualquer esforço para seguir a Jesus. Ele era um exemplo escancarado de antinomianismo.

A outra principal ameaça à nossa santificação é o legalismo. O que é legalismo? Essa não é uma pergunta fácil de responder, pois não existe uma forma monolítica de legalismo. O pior legalismo diz que por nossas obras nós podemos satisfazer as exigências da lei de Deus e obter a salvação por nossas boas ações. Essa é a visão de salvação mantida por todas as pessoas que não afirmam o cristianismo bíblico. Mas se ela realmente fosse o caminho da salvação, só nos poderia levar à desgraça eterna, pois ninguém cumpre a lei de modo perfeito.

Outras formas de legalismo foram aperfeiçoadas pelos fariseus. Os fariseus se especializaram nos pequenos detalhes. Essa forma de legalismo concede grande atenção a questões menores da lei em detrimento das questões mais importantes nela. Jesus castigou os fariseus, porque só observavam o dízimo. As pessoas deveriam sim dar o dízimo, disse ele, mas não em detrimento de outras questões. Não podemos pinçar e escolher quais mandamentos seguir (Mateus 23.23-24). Todos nós conhecemos pessoas que são escrupulosas sobre coisas menores, mas que não se importam se exibem ou não o fruto do Espírito (Gálatas 5.22-24).

Os fariseus também violaram o espírito da lei ao contornarem a lei sobre viajar no dia de sábado. Digamos que eles calculassem uma viagem como tendo cerca de uma milha, o que significaria que eles não viajariam mais de uma milha do seu lar no dia de sábado. No entanto, eles criariam uma brecha na lei dizendo que uma casa poderia ser considerada seu lar se deixassem em algum lugar dela um item pessoal, como uma escova de dentes. Se quisessem, portanto, fazer uma viagem no sábado que fosse de 15 milhas, poderiam deixar uma escova de dentes ou outro item pessoal a cada milha ao longo da rota desejada. Desta forma eles nunca viajariam mais de uma milha do seu lar. Partindo do verdadeiro lar, eles chegariam ao local em que deixaram seu primeiro item pessoal depois de viajar apenas uma milha; estariam em sua nova “casa” quando encontrassem sua escova de dentes, e tudo começaria de novo. Eles poderiam então viajar outra milha até seu próximo lar, então até o próximo, fazendo todo o caminho até o destino final.

Uma das formas mais destrutivas de legalismo naquela época, e mesmo hoje, e aquele mais seriamente praticado pelos fariseus, era a tendência de fazer acréscimos na lei de Deus. Eles prendiam a consciência dos homens onde Deus a libertara para fazer o que quisesse.

Esse problema tem atormentado a igreja por séculos. Em todo o caso, pode ser útil nos perguntarmos de que lado estamos nesse amplo espectro de legalismo, e que atmosfera temos em nossa igreja.

Questões indiferentes

Ligadas à questão do legalismo e do antinomianismo estão as ideias da adiáfora e liberdade cristã. Adiáfora são questões indiferentes — aquelas áreas em que a pessoa não é ordenada nem a fazer, nem a se abster de algo; áreas em que Deus não nos disse o que fazer, ou não fazer. Os cristãos têm liberdade em questões indiferentes; nós podemos escolher por nós mesmos qual curso de ação tomar. A liberdade cristã nunca nos dá liberdade para desobedecer a Deus. Ela não é um disfarce para a licenciosidade. Tive certa vez uma oportunidade de ensino para uma missão numa comunidade fora da cidade de Nova Iorque. Após a missão ter chegado ao fim, fui convidado a voltar para a casa de um dos líderes da missão para um encontro de oração com a equipe de liderança da mesma. Para meu espanto, tão logo a reunião começou as pessoas começaram a orar pelos seus parentes falecidos. Interrompi-lhes e disse que os cristãos não estão autorizados a orar pelos mortos, pois isso é proibido nas Escrituras e é uma ofensa capital no Antigo Testamento. Os líderes da missão responderam que a regra não tinha importância, pois se tratava de uma regra do Antigo Testamento. Eu lhes perguntei o que havia acontecido na história da redenção que faria uma prática anteriormente abominável a Deus aceitável para ele. Eles responderam que não estavam debaixo da lei e que eu não deveria promover um sentimento de culpa neles.

Essa conversa refletiu, por parte deles, um sério mal-entendido sobre a liberdade cristã. Consultar bruxas e coisas assim não é adiáfora. Claramente, assuntos ocultistas não são questões indiferentes, e não há qualquer razão bíblica para pensar o contrário.

Em algumas situações, entretanto, não podemos concordar com o que é indiferente. O verdadeiro conceito bíblico de liberdade cristã nos ajuda a coexistir quando não temos o mesmo entendimento do que entra na categoria de adiáfora. Onde é que nossa liberdade cristã começa e termina? Por séculos esse tem sido um problema na igreja.

No corpo de Cristo em Roma havia alguns que comiam carne e alguns que só comiam vegetais, e os dois grupos não concordavam com o que era melhor (Romanos 14). A resposta de Paulo é que como Deus não estabeleceu uma lei específica neste caso, nenhum dos dois grupos deveria julgar o outro. O vegetariano e o carnívoro pertenciam ambos a Cristo; assim, como ousaríamos julgar uns aos outros? Como ousaríamos julgar os membros servos de Cristo nas coisas que Deus não os julgava? Devemos avaliar os outros somente de acordo com as normas explícitas da Escritura, e não com aquelas inventadas pelas tradições humanas.

Cinquenta anos atrás, o evangelicalismo foi atormentado por um legalismo que dizia “não dance”, “não beba”, “não fume”, “não assista a filmes”, “não jogue cartas” e assim por diante. Embora as coisas tenham melhorado nesse aspecto, essa era uma questão tão importante para muitos evangélicos que toda a espiritualidade e profissão cristã de uma pessoa deveriam ser julgadas pela conformidade a essas estipulações. Mas você não pode encontrar nenhuma lei explícita na Escritura sobre essas coisas. Como exemplo desse legalismo, lembro-me de uma ocasião em que uma mulher convidou vários de nós para jantarmos. Éramos todos cristãos, e quando a garçonete apareceu para pegar nosso pedido de bebidas, nossa anfitriã imediatamente entrou na conversa e disse à garçonete que ninguém iria beber álcool, pois éramos cristãos, e cristãos não ingerem bebidas alcoólicas. Fiquei constrangido pela garçonete, por ter sido repreendida e porque sua visão doravante seria que o cristão é alguém que jamais ingere bebida forte. Mas Paulo disse que o reino de Deus não é uma questão de comer e beber.

Quantos cristãos têm sido ensinados de que é pecaminoso fazer certas coisas, as quais Deus não declarou como sendo pecaminosas? Eles ouvem que algumas questões indiferentes não são de fato indiferentes.

Lidando com irmãos mais fracos

Eis a questão básica. Se eu acredito que é pecaminoso beber álcool, e mesmo assim bebo álcool, estou cometendo pecado. Não porque beber álcool seja em si pecaminoso, mas porque é errado fazer conscientemente o que consideramos pecado. Se voluntariamente agimos para quebrar o que pensamos ser uma lei de Deus, manifestamos um espírito de rebelião. Devemos, portanto, ser cuidadosos ao julgar o comportamento dos outros em questões indiferentes, pois nem todos estão no mesmo patamar de compreensão. Em Corinto alguns cristãos estavam preocupados com a compra de carne que fora oferecida a ídolos, mesmo sendo ela vendida como carne, e isso causou atrito na comunidade. Paulo disse que se tratava de carne e, portanto, que não era errado, em si mesmo, consumi-la se alguém a estivesse comprando mais tarde sem tomar parte na adoração dos ídolos (1 Coríntios 8). Aqueles que queriam evitar carne a todo custo estavam agindo como separatistas secundários. Eles não só estavam se recusando a comer carne oferecida a ídolos (separação primária), como também se recusando a se associar com os que comiam carne oferecida a ídolos. Claro, para serem consistentes os separatistas secundários teriam de se retirar do planeta, pois todas as pessoas que conhecemos e tudo o que fazemos pode ser conectado a algo contra o qual temos escrúpulos ou que é pecaminoso de alguma forma.

Como você lida com os irmãos mais fracos? Ri deles? Cai sobre eles com críticas? Ou respeita a consciência deles e diz “Eu sei que você tem esse escrúpulo, e não quero fazê-lo tropeçar e seduzi-lo a fazer algo de que está convencido ser uma violação da lei de Deus”? É isto que Paulo estava disposto a fazer (1 Coríntios 8.9-13). Paulo estava disposto a renunciar totalmente à carne por causa de seu irmão mais fraco. Se uma pessoa tem um escrúpulo de que não compartilho, e é um escrúpulo em sujeição ao Senhor, devo dar o braço a torcer e não ficar ostentando a minha liberdade aos olhos da pessoa. Devo realizar o ato que é indiferente, mas ofensivo ao outro crente, em reservado. Nossa liberdade em Cristo não é uma autonomia para fazermos qualquer coisa que nos agrade. Ela sempre deve estar acompanhada de uma sensibilidade caridosa para com aqueles que têm escrúpulos.

Mas o que acontece quando irmãos mais fracos querem elevar seus escrúpulos pessoais ao nível de um padrão moral para o cristianismo, ou querem exigi-lo de todos os que pretendem ser membros ou funcionários de uma igreja? Aqui o irmão mais fraco se torna o

irmão legislador e começa a tomar um escrúpulo pessoal e a prender a consciência das pessoas, destruindo a liberdade cristã. A questão é o que você faz e como discerne a identidade do irmão mais fraco.

Devemos estar muito convictos de que os padrões que impomos aos outros na igreja são padrões bíblicos e não nossos próprios escrúpulos. Alguns ministros têm exigido de seus anciãos que assinem um compromisso de nunca consumir álcool, por qualquer motivo que seja, nem sequer vinho. Mas isso viola as qualificações de Paulo e Jesus, pois ambos consumiam bebida alcoólica. O mesmo ministro poderia dizer que eles criaram essa regra porque o vinho do primeiro século não era alcoólico, mas essa seria uma suposição falsa. Jesus não foi chamado de beberrão (Mateus 11.19) porque bebia suco de uva Del Valle®. Afirmar que o vinho do primeiro século não era alcoólico é a imposição de uma norma cultural norte-americana que surge do desespero de se manter uma posição não bíblica sobre o álcool. Não há dúvida de que existe uma proibição veemente à embriaguez na Escritura, mas não existe uma condenação ao consumo adequado de álcool.

Pode um ministro ser um irmão mais fraco? Os ministros não deveriam ser irmãos mais fracos, e deveriam saber lidar com as Escrituras corretamente. Ainda assim, temos alguns ministros que são irmãos mais fracos, e não somos a primeira geração a experimentar tal realidade. Gálatas 2.11-14 mostra o conflito entre Pedro e Paulo, onde Pedro, um apóstolo que deveria ter sabido mais, era claramente o irmão mais fraco. No início Pedro comia com os gentios livremente, mas então se separou, passando a não jantar com eles, pois acabariam consumindo seus alimentos não kosher. Paulo não teve uma conversa privada com Pedro, mas se lhe opôs em público. Pedro deveria ter

sabido mais, por conta do seu encontro com Cornélio em Atos 10. Aqui a fraqueza do irmão mais fraco se transformara na grave heresia udaizante da Galácia. A imposição da lei, para a qual muitos encontravam uma justificativa num momento de fraqueza de Pedro, estava ameaçando o próprio Evangelho, pois logo os gálatas estavam adicionando outras obras da lei como requisitos para a salvação, incluindo a circuncisão. Jesus não nos deu liberdade só por bondade, mas também por profundas questões teológicas relacionadas ao caminho da salvação. Se você impõe a circuncisão e outras leis após a consumação das mesmas, está se colocando simbolicamente debaixo dos mesmos termos da antiga aliança. Você está abandonando a nova aliança. O que era uma questão de escrúpulos de um irmão mais fraco se tornara uma ameaça à própria compreensão do Evangelho.

Paulo estava disposto a adaptar seu comportamento aos escrúpulos dos irmãos mais fracos quando estes não impunham os mesmos aos outros. O exemplo da circuncisão de Tito em Gálatas 2.1-10, no entanto, mostra-nos que tão logo o irmão mais fraco tentou forçar sua fraqueza como sendo uma lei da igreja, o Evangelho foi ameaçado. Neste caso, ao invés de negar sua própria liberdade cristã para o bem do irmão mais fraco, Paulo lutou com unhas e dentes pelo Evangelho. Quando uma pessoa com um escrúpulo tenta fazer do seu escrúpulo a regra da igreja, ela não deve ser autorizada a forçar uma lei onde Deus nos tornou livres.

Esses princípios de questões indiferentes e de irmão mais forte e irmão mais fraco são fáceis de se compreender, mas aplicá-los exige bastante sabedoria. Devemos aplicar o Evangelho com sabedoria e em amor, tal que sejamos pacientes com os que são novos na fé; mas ao mesmo tempo não devemos deixar o irmão mais fraco impor sua visão sobre os outros. Nós impomos em nossas igrejas regras e regulamentos onde Deus nos tornou livres? Devemos ter cuidado para não fazermos isso, pela causa de Cristo e pelo bem dos seus pequeninos.

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