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CAPÍTULO 3: Mundos textuais e mundos possíveis

3.2 Mythos, Ethos e Topos: bases de acessibilidade ao fanfiction

3.2.1 Topos base: construção gradual do espaço diegético na série

No seriado Lost, um padrão de construção gradual do mundo (SMITH, 2009, p. 73), em especial a ilha onde ocorre grande parte dos conflitos da narrativa, pôde ser observado a partir do caráter exploratório da recepção do espaço narrativo pelos fãs. A ilha não é um espaço diegético que foi dado como pronto, mas explorado em camadas durante as seis temporadas do seriado. Por sua vez o descobrimento dos locais e monumentos do território insular fictício muitas vezes não é explicado.

Essa complexidade gradual da construção do mundo narrativo gerou no espectador motivado por informação (information-driven) (HUNT; VIPOND, 1985) a necessidade de fabular, observar, catalogar e conectar esses locais através de mapas mentais criados por eles mesmos ou com o uso das screenshots nas comunidades de fãs online. Scolari (2013) afirma

que um mundo de histórias construído detalhadamente como esse é um fator essencial que influencia quantitativa e qualitativamente a produção de fanfictions. “Um mundo narrativo deve ser grande para que possa ser explorado pelos fãs” (SCOLARI, 2013, p. 81). Quanto mais o mundo é “mobiliado” (ECO, 1979 apud SCOLARI, 2013)96, mais seus elementos espaciais podem ser remetidos pelos fãs nas produções apócrifas.

A distribuição da “mobília” de elementos diegéticos na cartografia de um espaço ficcional, da qual aqui foi utilizada a definição intitulada “topos” (TOSCA; KLASTRUP, 2005, p. 4) não é necessariamente feita apenas na plataforma “principal” da ficção, e é a

[...] configuração de um mundo em um período histórico específico com geografia detalhada, como um mundo futurístico e tecnológico (na ficção científica) constituído de planetas desertos; um mundo situado na Idade Média com elementos fantásticos (“fantasia”) e uma floresta nativa habitada por bestas ferozes; ou um submundo de alta criminalidade situado em uma imensa e distópica paisagem urbana em que as pessoas usam pistolas de laser e amuletos etc. Espaço e tempo reais da realização de um mundo transmidiático podem ser mudados, mas o espaço e o tempo gerais do universo são geralmente imutáveis. […] Entretanto, novas obras que utilizam um mundo podem ser situadas um tempo antes ou depois do tempo do tempo mítico desse mundo transmidiável – de modo a não interferir com o mythos. (KLASTRUP; TOSCA, 2005, p. 4, tradução nossa)97

A partir da observação da construção espacial-narrativa da ilha, podemos observar que a construção dos mundos online dos fãs ocorre suprindo a necessidade da “utilização” desses espaços de acordo com os desejos dos leitores/produtores de fanfictions. Os fãs, em diversas postagens na comunidade online, alegaram que a “mitologia” e as referências culturais desses espaços não foram devidamente explicadas e passaram a explorá-la em seus novos textos. Como atenta Willis (2006, p. 155), a produção de ficção e de mundos é intra e extratextual. O desejo subjetivo do leitor de “como ele quer que a narrativa tivesse continuado, ou, que informações ele gostaria de ter” (WILLIS, 2006, p. 155) pôde ser de alguma forma suprido pelos fanfictions.

                                                                                                                         

96 ECO, Umberto: Lector in fabula. Barcelona: Ediciones Lumen, 1979. 97

[…] the setting of the world in a specific historical period and detailed geography, such as a futuristic technological world (science fiction) consisting of desert planets; a world set in the middle ages with fantastic elements (“fantasy”) and a wild nature inhabited by raging beasts; or a crime-ridden underworld (for instance detective/gangster style) laid out in a dystopic and immense cityscape where people use both laserguns and amulets etc. The actual space and time of an actualization of the transmedial world can be changed, but the general space and time of the universe is normally unchangable, (i.e. the world will always be set in the past or the future according to the time of the ur-actualization). However, newer actualizations of a world might often be set either before or some time after the mythic time of the ur- transmedial world in order not to interfere with the mythos. (KLASTRUP; TOSCA, 2005, p. 4)

Ler um fanfiction envolve a “negociação de vazios dolorosos entre a subjetividade desejante do leitor e a habilidade do texto em sustentar essas subjetividades e esses desejos”. (WILLIS, 2006, p. 155). As expectativas dos fãs, como já afirmado, usualmente foram alimentadas em um ecossistema midiático povoado por muitos paratextos nas comunidades da

web 2.0. As necessidades cognitivas e narrativas geradas pelo consumo desses conteúdos

envolveram, dentre outros elementos, a mitologia (espacial) da narrativa, que serviu de base para continuidade da trama nos fanfictions.

No caso de Lost, observa-se que as configurações específicas do mundo diegético mantiveram a ilha como ponto de convergência do seriado (isso não se deu apenas cartograficamente; a ilha também foi vista pelos fãs como um personagem com vontade, subjetividade e agenciamentos próprios). A centralidade da narrativa foi mantida nesse espaço. O mesmo não pode ser dito sobre o modo como as peças do quebra-cabeça arquitetônico/espacial foram distribuídas gradualmente na expansão geográfica do mundo, durante as seis temporadas do seriado. Essas “peças” (ver figuras 27 a 36) atuaram como “pontos de virada” e ganchos no decorrer da narrativa. A oscilação das características da ilha: ora território, ora personagem dotado de subjetividade foram exemplificadas pelos fãs que em seus enunciados, exprimiram essa dualidade. Para corroborar com essa hipótese da dualidade espaço/personagem da ilha, na postagem 50 o usuário partiu de um consenso, um pré- construído já inscrito no interdiscurso da comunidade: “muitas declarações assumindo uma consciência da ilha foram feitas de modo que as partes da conversação compartilhavam um entendimento da personalidade da ilha” (DARKUFO, 2010). Para legitimar essa afirmação, efetuou uma citação a partir dos scripts transcritos e catalogados pelos próprios fãs na

Lostpedia98, ou seja, de elementos textuais canônicos da narrativa.

Postagem 50

Muitas declarações assumindo uma consciência da ilha foram feitas de modo que as partes da conversação compartilhavam um entendimento da personalidade da Ilha.

RICHARD [Para Widmore:] Jacob que assim [salvar a vida de Ben] fosse feito. A Ilha escolhe quem a Ilha escolhe. Você sabe disso.

BEN: Você é um daqueles que quis ela morta, Charles, não a Ilha.

WIDMORE: Espero que você esteja certo, Benjamin, porque se você não está, e a Ilha quer a morte dela, ela será morta. (DARKUFO, 2010, n.p., tradução nossa, grifo nosso)

A disposição espacial da ilha ficcional foi dada gradualmente em camadas preenchidas durante as seis temporadas. A cada episódio, novos territórios eram explorados pelos personagens sobreviventes do voo 815. Essa exploração era feita através da descoberta                                                                                                                          

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de novos territórios/elementos arquitetônicos, dispostos em uma organização de estratos verticais, como podemos exemplificar através da seguinte sequência de imagens99 capturadas dos arquivos de vídeo dos episódios e organizadas sequencialmente pelos fãs da comunidade

online DarkUfo, na seção de screenshots do site.

     

Figuras 25 e 26 - Primeira temporada: descoberta da escotilha e das cavernas.

       

Figuras 27 e 28 - Segunda temporada: interior da escotilha e estátua de quatro dedos.

  Figuras 29 e 30 - Terceira temporada: estação embaixo d’água e vilarejo dos “Outros”.

     

Figuras 31 e 32 - Quarta temporada: estação da Dharma e Cabine de Jacob.                                                                                                                          

99 Banco de dados de imagens capturadas dos episódios construído através das colaborações do Darkufo. As

legendas das imagens são comentários de fãs, reproduzidas do tópico original. Disponível em <http://losteastereggs.blogspot.com/>. Acesso em: 13 de abril de 2013.

       

Figuras 33 e 34 - Quinta e sexta temporadas: o farol de vigilância e a fonte de energia e luz da ilha.

Na primeira temporada do seriado, a exploração do espaço narrativo foi feita através das tramas que se desenrolaram na floresta da ilha. Lá, os personagens descobriram uma fauna e flora exóticas, e a tampa de uma escotilha. Boa parte da segunda temporada aconteceu debaixo da superfície. Os personagens explodiram a tampa da escotilha e descobriram uma instalação feita em túneis para as pesquisas da organização Iniciativa Dharma. A terceira temporada tratou da exploração dos sobreviventes em um território hostil, controlado pelos “Outros”, os estranhos habitantes originais da ilha. A vila dos “Outros” foi mostrada como um conjunto de estruturas arquitetônicas labirínticas cercadas por túneis. Outras estações de pesquisa foram descobertas, sempre com referências iconográficas à mitologia egípcia (hieróglifos, pinturas, etc.). O último episódio dessa temporada passa em uma plataforma localizada embaixo das águas do oceano e foi descoberta a estátua de quatro dedos que alimentou as dúvidas dos fãs por muito tempo.

No ano seguinte do seriado, os eventos principais deslocaram-se para um cargueiro enviado pelo personagem Charles Widmore para atacar a ilha. A quinta temporada, na qual os personagens viajaram no tempo, mostrou a exploração de estruturas arquitetônicas construídas pela Iniciativa Dharma nos anos 1970. Na última temporada, os personagens descobriram espaços marcados por pinturas egípcias e hindus, que são índices da historicidade da ilha e de sua mitologia. Dentre elas: um farol, um templo, uma caverna de Jacob, túneis subterrâneos, a outra caverna mítica - de onde brotava uma luz que alimentava a energia e os poderes sobrenaturais da ilha, etc.

Os elementos da espacialidade labiríntica foram construídos e dispostos horizontal e verticalmente. Segundo Smith (2009), esse caráter exploratório da construção da diegese assemelhou-se aos jogos de videogame de plataforma no qual os jogadores tinham que subir e descer diversas estruturas e descobrir espaços escondidos, bem como rememorar os mapas mentalmente construídos. Cada uma dessas camadas novas era apresentada no último episódio de cada temporada e serviu como ponto de virada para a narrativa. O topos, a

espacialidade, em vários momentos, coincidia com o mythos para os fãs, visto que as estruturas mitológicas da ilha de Lost eram concêntricas às espaciais. Esses elementos seriam retomados pelos usuários da comunidade DarkUfo para construção dos fanfictions.

Portanto, ainda que centrando cada episódio em determinado momento em personagens, temas ou mitos, classificamos Lost como uma narrativa espacial/exploratória. Essa característica, presente em seu topos, foi retomada e repetida (sempre com algumas alterações) pelos fãs em suas produções, recuperando o esquema de diferença e repetição na construção de mundos ficcionais secundários, descrito por Goodman (1978). O uso do topos,

ethos e mythos de fanfiction original como base tornou-se a principal constante nos textos

derivativos das comunidades online de fãs.

O topos é compartilhado pelo seriado e pelo fã que desenvolverá novas narrativas utilizando-o como base. O mesmo é valido para outras duas combinações de elementos da narrativa: seu mythos e seu ethos. A mitologia - no sentido dado pelas autoras Klastrup e Tosca (2005), e não o dos fãs - que por muitas vezes coincidia com a cartografia da ilha, é constituída pelos:

[…] conflitos estruturantes e as batalhas do mundo, que também apresentam os personagens do mundo. O mythos também inclui rumores ou histórias que dizem respeito a alguns certos itens e criaturas que são únicos a esse mundo. Alguém poderia dizer que o mythos é a backstory de todas as backstories – o conhecimento necessário e central para que uma pessoa possa interagir ou interpretar os eventos do mundo com sucesso. (KLASTRUP; TOSCA, 2005, p. 4, tradução nossa, grifo do autor)100

Essas batalhas entre núcleos de personagens do mundo ficcional de Lost se repetiram no fanfiction, assim como seu ethos. Em relação a esse elemento, por sua vez, o fanfiction também manteve relações de similaridade. O texto do fã o retomou através de especificidades linguísticas e narrativas. Um exemplo é a reprodução de sobrenomes vindos da trama original, como o segundo nome “Hume” em um personagem do texto derivativo. A construção subjetiva, o comportamento e a função narrativa desses personagens são semelhantes àqueles que participaram do seriado de televisão. Nesse caso, há a referência ao personagem da série de televisão Lost Desmond Hume.

O ethos (elemento que também foi referenciado no mundo “secundário” do fanfiction), que engloba as regras lógicas, os modos de existência e os regimes de verdade que constroem                                                                                                                          

100 […] the establishing conflicts and battles of the world, which also present the characters of the world. The

mythos also includes stories of or rumors about certain lore items and creatures which are unique to the world. One could say that the mythos of the world is the backstory of all backstories – the central knowledge one needs to have in order to interact with or interpret events in the world successfully. (KLASTRUP; TOSCA, 2005, p. 4)

as estruturas relacionais de poder em determinada narrativa, é formado pelas:

[...] regras explícitas e implícitas de ética do mundo e o códice (moral) de comportamento que os personagens supostamente devem seguir. Como os bons e os maus se comportam, e que tipo de comportamento pode ser considerado “de acordo ou não” com os personagens daquele mundo. Assim, o ethos é a forma de conhecimento necessária de modo a saber se comportar no mundo. (KLASTRUP; TOSCA, 2005, p. 4, tradução nossa, grifo do autor) 101

No fanfiction vimos que o mythos pôde ser observado através da acessibilidade a artefatos diegéticos não somente apresentados na “narrativa central” de Lost, ou seja, o seriado de televisão. As estruturas do mythos também foram trazidas e referenciadas com base em elementos que só foram aprofundados no vídeo decorrente da resolução de um quebra- cabeça do ARG The Lost Experience. Foram utilizadas para a produção de fanfiction “sementes” diegéticas do mundo ficcional, desenvolvidas através das iniciativas transmídia, (como observado na obra tomada como exemplo para a análise no próximo item); uma prova de que para os fãs hardcore a construção do mundo ficcional do qual se sentem proprietários passa pelo consumo desses fragmentos narrativos dispersos em multiplataformas. Ao mesmo tempo, embora pouco se tenha falado nos comentários a respeito do seriado sobre a “mitologia transmídia”, muitos elementos dela foram utilizados no fanfiction. É possível estabelecer ainda que os comentários são utilizados mais para técnicas confessionais, hipóteses, discussões e teorias, enquanto os fanfictions são modos de expansão do mundo vasto e transmidiático da ilha de Lost, como veremos na análise do texto de um fã.