• Nenhum resultado encontrado

Bom dia, eu transito em duas profissões hoje, eu sou recém formado psicólogo e sou técnico de enfermagem também Quando tu

O carcereiro que há em nós

Plateia 6: Bom dia, eu transito em duas profissões hoje, eu sou recém formado psicólogo e sou técnico de enfermagem também Quando tu

falaste antes sobre um cuidado que é, na verdade, um controle, eu lem- brei direto do cuidado de enfermagem, ainda mais com monitoramento, porque tu monitora o paciente, não é? E eu trabalho num CAPS, como técnico de enfermagem e quando a gente medica um paciente, a gente pede: abre a boca porque eu quero ver se tu tomou o remédio, porque tu tem que controlar se ele tomou o remédio. E eu fico muitas vezes me questionando se a gente só não replica um manicômio com outro nome? Ele deixa de ser manicômio, mas passa a ser CAPS. E o quanto a gente fica na captura (...) então, por disfarçar as coisas só, em vez de, de verda- de provocar alguma mudança. Porque esse controle está o tempo inteiro presente. E como é difícil a gente sair desse controle. Porque acaba sendo uma linha tênue. Até que ponto é um cuidado ou é só um controle? E é isso que eu gostaria de ouvir tu falar um pouquinho mais.

Luciana Knijnik: Bom, então eu vou aproveitar para fazer a minha questão, que eu estou com ela desde o início e tu vem dizendo que não vai falar em Direitos Humanos. Mas eu queria que tu falasse em Direi- tos Humanos, não só a partir dessa perspectiva da criminalização, da Maria da Penha e da criminalização da homofobia, mas assim, pen- sando na gente que está na militância, que está vendo aí o massacre do Estado nas prisões e nas instituições, nas ruas... Bom, se tu diz que esse discurso da garantia de direitos ele está a serviço da manutenção do Sis- tema. Nós deveríamos abandonar essa militância em Direitos Humanos ou por onde a gente encontra alguma potência para sobreviver?

plinar. CAPS aparece na sociedade de controle. Penso que houve uma boa mudança. Pode não ser a melhor, a ideal, mas se há algo que res- soa a micromanicômio, camuflado em relações de horizontalidade, há a busca por romper com o aprisionamento. Uma das coisas mais difíceis é como acabar com a prisão. Não é nada similar a abrir as portas e produzir um revival da Bastilha. A prisão produz outra pessoa lá den- tro. Desativar uma prisão ou qualquer terminal similar começa quando não se interna mais ninguém. Outra necessidade é a de pensar como lidar com as pessoas que estão lá dentro. Participei, em 1983, de uma experiência em São Paulo voltada para a tentativa de desativação do Manicômio Judiciário. Foi logo após a primeira eleição direta para go- vernadores, vencida por Franco Montoro. O Manicômio Judiciário era um terminal misto de manicômio e prisão de segurança máxima, go- vernado pela regulamentação da medida de segurança. Fomos para lá, uma pequena e homogênea equipe. Havia mais ou menos 500 pessoas internadas no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha. Em dois me- ses conseguimos liberar cerca de 350 internos, rompendo com as mal- ditas anamneses, repetições de laudos para aplicação de medida de se- gurança, modificou-se o modo dos médicos lidarem com os internos e elaborar pareceres, chamamos as famílias (porque ali no manicômio es- tavam pessoas abandonadas pelas famílias que sabiam a seu modo que jamais elas seriam libertadas). Foi um grande trabalho o de recuperar as famílias, os prontuários, as histórias de cada um e qualquer dia conto essa história toda. Para resumir, um dia, três meses depois de iniciado o processo, ficamos com cento e poucas pessoas que não tinham família, mais nada, ali, por dentro naquela história, incluindo os caras cheios de merda...Vocês sabem ou imaginam como é que é. A maioria deles era da zona rural. Então pensamos: como continuar a partir dali? Evitar a internação, criar o dispositivo para interceptar a internação, e criar uma situação favorável para essas pessoas lá dentro. Provenientes da zona rural, propusemos o trabalho com a terra. Em poucas palavras, fomos expulsos imediatamente de lá, pelas autoridades governamentais,sob vários argumentos secundários como perigo de vida por eventuais agressões com instrumentos de trabalho... Afinal, já tínhamos feito o serviço e os intelectuais partidários dos direitos humanos estavam a

postos para assumir o gerenciamento do Manicômio Judiciário. Enfim, não sou contra o CAPS, mas ainda os vejo com resquícios sólidos do manicômio. Sou contra o manicômio, a prisão, as prisões para jovens. O CAPS possibilita transitar. Entrar e sair, atravessar. E tem que saber lidar também, com o fim do manicômio, sem contemporizar com exceções. De fato há um deslocamento da relação vertical do manicômio para uma horizontal dos CAPS, há trânsito, mas temos que olhar cada caso, um olhar abolicionista penal que nos leve a ver os CAPS sem ser uma institucionalização do transitório, o fortalecimento do inacabado, até o CAPS não ser mais necessário, não precisar mais estar ali fisicamente e a gente viver de outro modo com a loucura. Outras possibilidades. Em vez do sofrimento, pela alegria. Evitar a captura, ou os usos da palavra para evitar o niilismo reativo. Não somos mais os intelectuais profetas, e se recusamos a sermos moduladores, devemos ter raiva e paciência.

Os Direitos Humanos... A direita já usou e abusou de destruir a mo- çada defensora dos direitos humanos. Sei também porque eu já parti- cipei disso, estrategicamente. Penso que na vida, eu concordo com o Foucault, temos de saber lidar com a polivalência tática dos discursos e saber com quem a gente anda. A luta pelos direitos humanos foi im- portantíssima no Brasil para expor a condição terrível de pessoas, de um modo geral. Estivessem elas internadas em prisões, manicômios, fossem pessoas vivendo situações deploráveis de vida em periferias, etc.. Mas o mundo mudou e os direitos humanos foram sendo contem- plados de alguma maneira. Há vários programas que dão conta disso. Se tomarmos a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e juntarmos os programas da ONU, da UNESCO, da Organização Mun- dial da Saúde nós teremos surpreendentes mapas de atendimentos dos direitos humanos. Os direitos humanos virou um grande negócio tam- bém. Se o que você chama do militante dos direitos humanos é quem está lidando com o insuportável, então tudo se reabre, porque o insu- portável não está revestido de direitos e não é uma falta. Vai contra e anti a situação dos negócios sociais ou dos empreendimentos sociais que giram em torno dos direitos humanos. Não é fácil, hoje em dia, ser um militante dos direitos humanos fora da convenção da ONU. Talvez o insuportável seja esse excesso de direitos. Não porque a priori sejam

eles maus ou bons. Não, mas porque eles produzem um dispositivo que funciona extremamente bem para a continuidade dessa máquina, ele azeita a máquina. Penso: bom, o militante dos direitos humanos de 40 ou 30 anos atrás, era quem saía e explicitava a situação das pessoas po- bres, miseráveis, mulheres violentadas, crianças violentadas, ditadura, etc. Hoje, penso que nos move é novamente o insuportável, outro insu- portável, e como nos colocamos diante do insuportável? Nós nos trans- formamos. Não há transformação do mundo sem que tenha ocorrido uma transformação em cada um. Então, qual que é a transformação do humano hoje, posto que esse humano foi já revestido de tanto direito que o conformou de maneira moderada na vida atual? A conduta reco- mendada a todos é a da moderação, conduta esperada pela democracia. Pois a democracia produz moderação. Perdeu-se o insuportável. E o insuportável não está na categoria identidade. Mas hoje o intelectual modulador está presente em tudo. Veja a situação das universidades privadas no Brasil. As universidades privadas no Brasil se instalaram, definitivamente, primeiro graças à ditadura civil-militar, que abriu esse ramo lucrativo da economia. E elas se instalam nas periferias. E lá em São Paulo, é impressionante. As grandes universidades privadas estão todas nas periferias. Dão cursos que variam de 299 reais para menos ou pouco mais, parece que você está comprando a crédito. Então veja: na zona leste, grande paulistana, as universidades privadas oferecem curso de assistente social gratuito. As pessoas entram, obtém a certificação, e já ficam ali mesmo, para fazer o serviço por lá mesmo. É um direito cumprido à educação superior, mas você deve estar atento a como que funciona. Obrigadão pela manhã com vocês, desculpem se eu ocupei vocês demais e até outra vez.

Tensionando os rumos e/ou