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5 Governança dos Recursos Hídricos no Brasil

5.1 Um breve panorama da evolução do arcabouço hídrico

Foi somente em 1934, com a publicação do Decreto 24.403, também conhecido como Código de Águas, que se delimitou o uso e apropriação dos recursos hídricos. As decisões sobre alocação e distribuição dos recursos hídricos eram tomadas principalmente por três setores de política: energia elétrica, irrigação e saneamento. O setor elétrico, o mais poderoso dos três, simplesmente ignorava os outros usos possíveis dos recursos hídricos. Com um enorme potencial de geração hidroelétrica, a política energética brasileira iniciou a construção de grandes barragens em 1940, tendo seu ápice na década de 1970 durante o período militar. A criação do Ministério de Minas e Energia (MME) e do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) buscava a utilização dos recursos naturais como forma de fomentar o processo de industrialização brasileiro, resultando em uma gestão centralizadora, isolada e com forte priorização ao setor elétrico (Jacobi, 2009). Apesar disso, as agências ligadas as outras arenas políticas começaram a perseguir sua agenda e desenvolver abordagens próprias

para o uso da água. O Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), desenvolvido pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), alterou o controle do setor de saneamento. Tradicionalmente um assunto de responsabilidade local, passou a ter uma centralidade e responsabilidade do governo federal. O diagnóstico era de que o enorme desafio frente ao déficit de saneamento básico brasileiro exigia a centralização dos projetos, em um esforço de coordenação técnico e de capital, em oposição às inúmeras iniciativas decentralizadas e descoordenadas (Monteiro, 1993).

Na década de 1970, este modelo fragmentado começou a receber críticas, principalmente devido a sua falta de integração com outras políticas setoriais e agências. Outros setores com interesses econômicos e apoiados pelas elites locais começam a batalhar por uma abordagem mais integrada na gestão dos recursos hídricos. Um conjunto de tensões persistentes dá suporte a essa abordagem, como diversidade de partidos políticos, políticos personalistas e o ativismo da sociedade civil. Tais tensões vão criando atritos com a narrativa dominante de um estado tecnocrático, centralizador e forte (Abers & Keck, 2010). Inicia-se uma mudança gradual na visão dos recursos hídricos, buscando um enfoque mais regional e a consideração dos múltiplos usos possíveis da água. É neste período que há a criação dos primeiros comitês governamentais para decisão sobre recursos hídricos e surgimento da ideia, nos círculos internacionais, da gestão dos recursos hídricos através das bacias hidrográficas (Jacobi et al., 2009).

Nos anos 1980, com a intensificação dos processos de degradação ambiental, houve o surgimento de diversas manifestações da sociedade civil, seja através de movimentos políticos e associações, com preocupações ambientais. Concomitantemente, novas ideias já amadureciam buscando uma mudança nas prioridades exclusivas dos setores tradicionais no uso da água e diminuição do poder do setor elétrico, bem como questões ecológicas. O surgimento dos primeiros consórcios municipais e organizações civis começam a formar redes de atores que se articulavam ao redor da temática dos recursos hídricos (Jacobi et al, 2009).

Tendo como pano de fundo o processo de democratização que culminou com a Constituição Federal (CF) de 1988 abre-se espaço para a superação do modelo

centralizador estatal objetivando uma maior participação da sociedade civil. Através de diversos movimentos simultâneos, demandava-se uma nova cultura política através da participação popular, descentralização e devolutiva do poder. Novas arenas de negociação surgem com tal objetivo, moldando a mediação de conflitos e do poder social. A gestão dos Recursos hídricos seguiu este mesmo padrão, saindo de uma gestão altamente fragmentada e centralizada para uma gestão participativa, integrada e descentralizada (Jacobi, 2009). A governança pode, a partir disso, ser entendida como uma ponte entre as demandas sociais e interlocução com os atores governamentais (Jacobi, 2009). A CF destacou um capítulo exclusivamente ao meio ambiente, além de definir conceitos importantes para a água em dispositivos distintos ao longo do texto, institucionalizando a água como bem de domínio público, de competência concorrente entre a União, estados e municípios. Segundo Campos (2009), as mudanças no modelo de gestão hídrico foram catalisadas por dois motivos principais. O primeiro, político, através do questionando da centralidade do Estado. O segundo se dá pelo pragmatismo, buscando ações e resultados ligados ao gerenciamento dos recursos hídricos.

Segundo Abers & Keck (2010), dois temas que se sobressaíam nessa agenda de recursos hídricos também estavam na agenda internacional: a necessidade de maior integração dos recursos hídricos e a busca por novas fontes de financiamento. As inspirações vieram principalmente do movimento em prol do IWRM e do modelo francês de gestão dos recursos hídricos. Sob uma perspectiva internacional, tais movimentos são convergentes com as novas ideias baseadas principalmente no mercado, com processos de governança decentralizados e colaborativos.

Conforme visto anteriormente, quatro ideias básicas permeiam a abordagem defendida pelos advogados de uma agenda integracionista: descentralização da governança, incentivos baseados no mercado, planejamento e gestão na bacia hidrográfica e participação de todos os stakeholders envolvidos. De acordo com Abers e Keck (2010):

“As an institutional package, IWRM proposed abandoning top-down regulations and state-sponsored development, emulating the market, creating voluntary collaborative governance mechanisms, and valuing participation less as a means to political inclusion than for facilitating negotiations among interests” (Abers e Keck, 2010).

Além da inspiração do modelo integracionista, os profissionais e gestores brasileiros ligados aos recursos hídricos também foram influenciados em grande parte pelo modelo francês. Criado na França em 1964, introduziu um mecanismo de gestão por bacias hidrográficas e instrumentos de precificação de água que mais se assemelha a uma ferramenta de captação de recursos do que um incentivo de mercado (com sinalização de preços refletindo a escassez). As duas instituições principais desse modelo são os comitês e agências de bacia, onde todas as decisões orbitam. Os comitês de bacias são instituições deliberativas onde a tomada de decisão através de mecanismos participatórios e negociações acontecem. As agências de bacia, por sua vez, são o braço executivo dos comitês, dando suporte técnico e implementando suas decisões. A cobrança pelo direito de uso da água é executada através de um sistema de permissões e outorgas e os recursos são aplicados a partir das prioridades escolhidas pelos membros e aprovadas nos planos de bacia. As agências não podem operar obras ou infraestruturas e não possuem poder para tal (Brannstrom, 2004; Johsson e Kemper, 2005).