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2.2 Stanislavski – a obra

2.2.1 Uma obra autobiográfica

Minha vida na arte foi publicada, inicialmente, em 1924, na cidade de Boston (EUA), por

sugestão de amigos americanos, com o título My life in art. Na Rússia, depois de uma reformulação de Stanislavski, foi publicada em 1926 (MAUCH e CAMARGO, 2008, não

paginado). No presente item, foi utilizada a edição brasileira de 1989, a qual se refere à tradução da segunda edição do livro, feita em 1928, já revista pelo autor.

O livro foi considerado por Stanislavski como o primeiro volume de um conjunto de obras que deveria incluir mais três volumes. Nessa primeira obra, ele traça um rico panorama de sua vida, desde a infância até a maturidade. Através de suas vivências, percebemos o crescimento não só do artista criativo, mas do dedicado pedagogo e do inquieto pesquisador que foi. Podemos, também, observar o quanto ele era atento ao teatro realizado em outros países e como o entusiasmavam os atores trágicos italianos – como Tomaso Salvini (1829 – 1915), Ernesto Rossi (1827 – 1896), Eleonora Duse (1858 – 1924). Além disso, era notório seu marcado interesse pela dramaturgia francesa e alemã.

Stanislavski apresenta-nos diversas fases, pelas quais passou, no desenvolvimento de seu próprio trabalho vocal e aponta para a importância referente ao domínio pelo ator dos elementos presentes na ação verbal. A propósito disso, destaco, inicialmente, a crítica feita aos parâmetros do trabalho vocal, por terem sido preconizados tendo em vista, unicamente, o “não aborrecimento” do público. Sob essa consigna, os atores deveriam pautar-se apenas pela intensidade física na emissão das falas, degenerando numa atuação em que as nuances e filigranas de interpretação não estavam, absolutamente, em evidência. Stanislavski (p. 175), na fase inicial de sua carreira profissional, como os demais atores de então, também se utilizava dos recursos vocais em voga na época:

Não mudei nada do que fizera antes [anteriormente havia atuado no espetáculo O

Segredo de uma mulher, no Círculo Aleksiêiev], apesar de ser indiscutivelmente falso

o princípio, até então aplicado, de atuar com toda a intensidade para não aborrecer o público. A tagarelice, a ação contínua sem pausa, a elevação do tom pela elevação do tom, a velocidade do ritmo pela velocidade do ritmo, a pronúncia rápida saltando palavras, em suma, permaneciam os mesmos erros já cometidos quando dávamos os primeiros passos como amadores.

Stanislavski percebia, pois, que a falta de domínio, tanto no uso do próprio aparelho vocal quanto no entendimento do texto, promovia a repetição dos equívocos. Assim, compreendia

que a necessidade de não cansar a plateia acabava por gerar um desgaste vocal para o ator e um resultado desagradável para o público.

Espectador atento e contumaz, Stanislavski adquirira o hábito de ver peças desde pequeno, influenciado e levado pelos pais, tornando-se, então, admirador dos grandes atores de seu tempo e apreciando, de modo especial, a maneira pela qual esses artistas emitiam suas falas de forma simples, sem a utilização de “truques” vocais. Assim, ocorria, por exemplo, quando o Rossi representava. Nesses momentos, Stanislavski (p. 82-83) sabia que

[...] ele nos convenceria porque a sua arte era verdadeira. Ora, a verdade é quem melhor convence! Fosse na fala ou nos movimentos, ele era extremamente simples [...]. Rossi era inimitável. Ele tinha o direito de falar de maneira simples e sabia fazê- lo, o que é tão raro nos atores. Para este direito ele tinha a voz, a famosa capacidade de dominá-la, a precisão incomum da dicção, a correção das entonações [...]. Todas as qualidades autênticas do talento e da arte de Rossi eu assimilei posteriormente quando eu me tornei artista.

Vale ressaltar que Stanislavski (p. 223-224) aborda, com muita ênfase, suas dificuldades técnicas na colocação da voz. Ainda que esses aspectos vocais não digam respeito especificamente ao conceito de ação verbal, fazem parte do itinerário investigativo percorrido, na tentativa de compreender e dominar o trabalho do ator com a fala. Intrigavam- no a tal ponto as suas dificuldades vocais, que ele acabou inventando para si próprio

[...] um sistema de colocação da voz para o drama e, devo reconhecer, obtive resultados nada maus. Não que minha voz tivesse melhorado, mas o fato é que senti mais facilidade para falar e eu, apesar da grande dificuldade, podia concluir não só atos, mas a peça toda. Foi um êxito não só para o papel em questão, como também para a minha técnica futura.

Stanislavski dedicou-se, pois, incansavelmente, a pesquisar meios de lidar, em cena, com sua própria voz. Seus progressos técnicos, ligados ao domínio do apoio respiratório e à colocação da voz, ambos baseados em sua prática relacionada ao canto lírico, foram aplicados às suas experiências de atuação, permitindo que ele obtivesse performances mais eficazes. Dessa forma, pôde concluir, mais tranquilamente, sua atuação nos espetáculos dos quais participava.

Sua dedicação em construir uma técnica vocal constituiu um caminho para que chegasse, posteriormente, a uma compreensão mais profunda do trabalho do ator com a fala, o qual, evidentemente, não se restringe apenas a questões técnicas, mas se estende a concepções artísticas ligadas tanto à atuação quanto à dramaturgia e à encenação, chegando às proposições que embasam o conceito de ação verbal. Nesse sentido, Stanislavski (p. 492) aponta para a necessidade de dominar não somente a voz, mas, também, a fala:

Ainda havia mais. Fazendo uma retrospectiva, entendi que muitas das minhas técnicas anteriores de representação ou das minhas deficiências, como a tensão do corpo, a ausência de autodomínio, a afetação, os convencionalismos, o tique, os truques, as fiorituras vocais e o falso pathos, manifestavam-se com muita freqüência porque eu não dominava a fala, a única que podia me dar o que eu precisava e expressar o que está dentro de nós.

A fala iria, pois, além de realidades puramente técnicas, físicas, externas, abrangendo, também, estratégias que possibilitassem ao ator expressar emoções, pensamentos, sensações, impressões, enfim, tudo o que constitui um personagem desenvolvendo uma ação dramática – segundo os princípios artísticos aos quais estava ligado Stanislavski. Esse, aliás, em seu trabalho, no Estúdio de Opera29, discutia questões relacionadas ao jogo cênico adotado pelos jovens que se preparavam para se tornarem artistas-cantores (p. 510). Os estudos, então realizados, proporcionaram a oportunidade de compreender como a arte musical, por estar mais sistematizada do que a arte teatral, oferecia recursos que possibilitavam aos cantores atuarem de forma mais segura e não permanecerem continuamente a esmo, como os atores (p. 494).

E é com essa indagação que finalizo este item, destacando, de sua autobiografia, um trecho em que Stanislavski (loc. cit.) cogita a possibilidade de um uso interdisciplinar de conceitos da estética musical e mesmo da estética plástica, que poderiam auxiliar o ator a matizar sua emissão vocal como se fosse um instrumento musical, ou desenhar com ela no espaço e no tempo, simulando um instrumento de desenho:

29

Estúdio de Opera do Teatro Bolshoi, em Moscou, onde Stanislavski trabalhou (Kristi In STANILAVSKI, 1980, p.15).

Como conseguir que o som na conversação seja contínuo, sucessivo, fundindo entre si palavras inteiras, penetrando-as como a linha de um rosário sem cortá-las em sílabas? Senti naquele concerto que se eu dispusesse desse som contínuo, como o de um violino, eu poderia fazer como os violinistas e violoncelistas e elaborá-lo, ou seja, tornar o som mais denso, profundo, transparente, fino, alto [...]. Poderia interromper de repente o som, manter a pausa rítmica, produzir toda a sorte de inflexões na voz, desenhando com o som como se faz com uma linha num gráfico. Pois é essa nota contínua, alongada como uma linha, que nos faz falta na nossa fala.

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