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Veremos neste capítulo as características genéricas das comunidades “primitivas”,

bem como a sua educação difusa. É pre-

ciso lembrar que essas populações não

tinham uma cultura homogênea, existindo

diferenças conforme o lugar e o tempo.

1. A cultura tribal

Estamos tão acostumados com a escola que às vezes nos parece estranho o fato de que essa instituição não existiu sempre, em todas as sociedades. Nos demais capítulos, veremos as condições do aparecimento da escola, as transformações ao longo do tempo, e também a relação indissolúvel entre ela e o modo pelo qual os indivíduos interagem para produzir a sua ex- istência. Antes, porém, veremos por que não há necessidade de escolas nas comunidades tribais.

Por motivos diversos é muito difícil dar as características gerais desse tipo de sociedade. Primeiro porque, por mais que façamos generalizações, há muitas diferenças entre tais so- ciedades, e depois porque, com frequência, corremos o risco de etnocentrismo, ou seja, a tentação de avaliá-las segundo padrões da nossa cultura. Dessa perspectiva, diríamos: as so- ciedades tribais não têm Estado, não têm classes, não têm es- crita, não têm comércio, não têm história, não têm escola.

Segundo o etnólogo francês Pierre Clastres, explicar as so- ciedades tribais pelo que lhes falta impede compreender melhor a sua realidade e, em muitos casos, até tem justificado a atitude paternalista e missionária de “levar o progresso, a cultura e a verdadeira fé” ao povo “atrasado”. Uma abordagem mais ad- equada, no entanto, consideraria esses povos diferentes de nós, e não inferiores. Mesmo porque, afinal, nem sempre ausência significa necessariamente falta. Aliás, o antropólogo Lévi- Strauss lembra como nós, urbanos, se por um lado ganhamos muito com a tecnologia, por outro perdemos algumas de nossas capacidades, por exemplo, por utilizarmos consideravelmente menos as nossas percepções sensoriais. Por isso mesmo, à falta de um termo melhor, Lévi-Strauss prefere colocar aspas em “primitivo”, com a intenção de minorar a carga pejorativa do conceito.

De maneira geral as sociedades tribais são predominante- mente míticas e de tradição oral. Para esses povos a natureza es- tá “carregada de deuses”, e o sobrenatural penetra em todas as dependências da realidade vivida e não apenas no campo reli- gioso, isto é, na ligação entre o indivíduo e o divino. O sagrado se manifesta na explicação da origem divina da técnica, da agri- cultura, dos males, na natureza mágica dos instrumentos, das danças e dos desenhos.

Ao agir, o “primitivo” imita os deuses nos ritos que tornam atuais, presentes, os mitos primordiais, ou seja, cada um repete o que os deuses fizeram no início dos tempos. Só assim a se- mente brota da terra, as mulheres se tornam fecundas, as árvores dão frutos, o dia sucede à noite e assim por diante. As danças antes da guerra, por exemplo, representam uma ante- cipação mágica que visa a garantir o sucesso do confronto. Do mesmo modo, os caçadores “matam” suas futuras presas ao desenhar renas e bisões nas partes escuras e pouco acessíveis das cavernas, como ainda podemos ver em Altamira (na Espanha) e Lascaux (na França). Também no Brasil foram descobertos registros rupestres, como os do centro arqueológico de São Raimundo Nonato, no Piauí, datados de 12 mil anos antes da chegada dos colonizadores, e os da gruta da Pedra Furada, encontrados no Pará.

Os mitos e os ritos são transmitidos oralmente, e a tradição se impõe por meio da crença, permitindo a coesão do grupo e a re- petição dos comportamentos considerados desejáveis. Assim são constituídas comunidades estáveis, no sentido de que nelas as mudanças acontecem muito lentamente. Por exemplo, os membros da tribo passam de um estado a outro pelos ritos de passagem que marcam o nascimento, a passagem da infância para a vida adulta, o casamento, a morte.

A organização social das tribos baseia-se em uma estrutura que mantém homogêneas as relações, sem a dominação de um

segmento sobre o outro. Mesmo que a divisão de tarefas leve as pessoas a exercerem funções diferentes, o trabalho e o seu produto são sempre coletivos. Também as atividades das mul- heres adquirem um caráter social, por não se restringirem ao mundo doméstico.

No exercício do poder, algumas pessoas especiais — como o chefe guerreiro ou o feiticeiro xamã — possuem prestígio, mere- cem a confiança das demais e geralmente são objeto de consid- eração e respeito. Em nenhum momento, no entanto, abusam dos privilégios para estabelecer a relação mando–obediência. O chefe é o porta-voz do desejo da comunidade como um todo e, nesse sentido, não dá ordens, mesmo porque sabe que ninguém lhe obedecerá. É sua tarefa apaziguar os indivíduos ou famílias em conflito, apelando para o bom senso, para os bons sentimen- tos e para as tradições dos ancestrais[12]. Dessa forma, as esfer- as do social e do político não se separam, e o poder não constitui uma instância à parte, como acontece nas sociedades em que o Estado foi instituído.

As oposições, inexistentes na própria comunidade, geral- mente surgem entre as tribos em guerra, ocasião em que o chefe assume a vontade que a sociedade tem de aparecer como una e autônoma, falando em nome dela. Aliás, o “primitivo” é guer- reiro por excelência, e dessa disposição decorrem os valores apreciados pela comunidade e que são objeto da educação. 2. A educação difusa

Nas comunidades tribais as crianças aprendem imitando os gestos dos adultos nas atividades diárias e nos rituais. Tanto nas tribos nômades como naquelas que já se sedentarizaram, para se ocupar com a caça, a pesca, o pastoreio ou a agricultura, as crianças aprendem “para a vida e por meio da vida”, sem que

ninguém esteja especialmente destinado para a tarefa de ensinar.

A cuidadosa adaptação aos usos e valores da tribo geralmente é levada a efeito sem castigos. Os adultos demonstram muita paciência com os enganos infantis e respeitam o seu ritmo próprio. Por meio dessa educação difusa, de que todos parti- cipam, a criança toma conhecimento dos mitos dos ancestrais, desenvolve aguda percepção do mundo e aperfeiçoa suas habilidades.

A formação é integral — abrange todo o saber da tribo — e universal, porque todos podem ter acesso ao saber e ao fazer apropriados pela comunidade. É bem verdade que alguns se destacam, detendo um conhecimento mais amplo ou especial — como no caso do feiticeiro —, o que, no entanto, não resulta em privilégio, mas apenas em prestígio, como já foi dito.

O conhecimento mítico imprime uma tonalidade especial à educação, pois os relatos aprendidos não são propriamente históricos, no sentido da revelação do passado da tribo. Difer- entemente, o mito é atemporal e conta o ocorrido no “início dos tempos”, nos primórdios. Daí os diversos ritos que marcam as passagens, como o nascimento e a morte ou ainda a iniciação à vida adulta (ver leituras complementares).

3. Para além da vida tribal

A escrita surge como uma necessidade da administração dos negócios, à medida que as atividades se tornam mais complexas. As transformações técnicas e o aparecimento das cidades em decorrência da produção excedente e da comercialização alter- aram as relações humanas e o modo de sua sociabilidade. Com o tempo, enquanto nas tribos a organização social era homo- gênea, indivisa, foram criadas hierarquias devido a privilégios de classes, e no trabalho apareceram formas de servidão e

escravismo; as terras de uso comum passaram a ser administra- das pelo Estado, instituição criada para legitimar o novo regime de propriedade; a mulher, que na tribo desempenhava destacado papel social, ficou restrita ao lar, submetida a rigor- oso controle da fidelidade, a fim de se garantir a herança apenas para os filhos legítimos.

Finalmente o saber, antes aberto a todos, tornou-se pat- rimônio e privilégio da classe dominante. Nesse momento sur- giu a necessidade da escola, para que apenas alguns iniciados tivessem acesso ao conhecimento. Se analisarmos atentamente a história da educação, veremos como a escola, ao elitizar o saber, tem desempenhado um papel de exclusão da maioria.

Algumas dessas transformações e suas consequências para a educação serão vistas nos próximos capítulos.

Dropes

1 -Em A educação moral, Durkheim observa que as punições quase não existem nas sociedades primitivas: “Um chefe Sioux achava os brancos bárbaros por baterem nos filhos”. A coerção da infância aparece nas sociedades em pleno desenvolvimento cultural, como a de Roma imperial, ou a da Renascença, onde a ne- cessidade de um ensino organizado mais se faz sentir. (…) É que à medida que a sociedade progride, torna-se mais complexa, a educação deve ganhar tempo e viol- entar a natureza, para cobrir a distância sempre maior entre a criança e os fins a ela impostos. (Olivier Reboul)

Leituras complementares

1 [Ritos de passagem] O rito, a tortura

(…) De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as técnicas, os meios, os objetivos explicitamente afirmados da crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o sofri- mento. Em outra obra, tivemos a oportunidade de descrever a iniciação dos jovens guaiaquis, cujos corpos, em toda a sua su- perfície, são escavados e revolvidos. A dor acaba sempre tornando-se insuportável: sem proferir palavra, o torturado desmaia. (…)

Poder-se-iam multiplicar ao infinito os exemplos que seriam unânimes em nos ensinar uma única e mesma coisa: nas so- ciedades primitivas, a tortura é a essência do ritual de iniciação.

2 -As crianças [nas sociedades orais] seguem os adul- tos nas mais diferentes atividades, na caça, na coleta, no cuidado com as plantas cultivadas, na pesca. Imit- am os adultos e, ao imitá-los, estão imitando os próprios heróis culturais, pois foram eles que fundaram (…) todas as formas de fazer as coisas no in- terior das culturas. Assim, um homem pesca como pesca porque assim faziam seus antepassados míticos que lhes transmitiram estes conhecimentos, e que seguem transmitindo-os sempre que necessário de diferentes formas. (Paula Caleffi)

Mas essa crueldade imposta ao corpo, será que ela não visa a avaliar a capacidade de resistência física dos jovens, a tornar a sociedade confiante na qualidade dos seus membros? Seria o objetivo da tortura no rito apenas fornecer a oportunidade de demonstração de um valor individual? (…)

Entretanto, se nos limitarmos a essa interpretação, estaremos condenados a desconhecer a função do sofrimento, a reduzir in- finitamente o alcance de seu propósito, a esquecer que a tribo, através dele, ensina alguma coisa ao indivíduo.

A tortura, a memória

(…) Na exata medida em que a iniciação é, inegavelmente, uma comprovação da coragem pessoal, esta se exprime — se é que podemos dizê-lo — no silêncio oposto ao sofrimento. En- tretanto, depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento, ainda subsiste algo, um saldo irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela operação executada com a faca ou a pedra, as cica- trizes das feridas recebidas. Um homem iniciado é um homem marcado. O objetivo da iniciação, em seu momento de tortura, é marcar o corpo: no ritual iniciatório, a sociedade imprime a sua

marca no corpo dos jovens. Ora, uma cicatriz, um sulco, uma

marca são indeléveis. Inscritos na profundidade da pele, atest- arão para sempre que, se por um lado a dor pode não ser mais do que uma recordação desagradável, ela foi sentida num con- texto de medo e de terror. A marca é um obstáculo ao esqueci- mento, o próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lem- brança — o corpo é uma memória.

Pois o problema é não perder a memória do segredo confiado pela tribo, a memória desse saber de que doravante são depos- itários os jovens iniciados. Que sabem agora o jovem caçador guaiaqui, o jovem guerreiro mandan? A marca proclama com

segurança o seu pertencimento ao grupo: “És um dos nossos e não te esquecerás disso”. (…)

Avaliar a resistência pessoal, proclamar um pertencimento social: tais são as duas funções evidentes da iniciação como in- scrição de marcas sobre o corpo. Mas estará realmente aí tudo o que a memória adquirida na dor deve guardar? Será de fato pre- ciso passar pela tortura para que haja sempre a lembrança do valor do eu e da consciência tribal, étnica, nacional? Onde está o segredo transmitido, onde se encontra o saber revelado?

A memória, a lei

O ritual de iniciação é uma pedagogia que vai do grupo ao in- divíduo, da tribo aos jovens. Pedagogia de afirmação, e não diá- logo: é por isso que os iniciados devem permanecer silenciosos quando torturados. Quem cala consente. Em que consentem os jovens? Consentem em aceitar-se no papel que passaram a ter: o de membros integrais da comunidade. (…)

Os primeiros cronistas diziam, no século XVI, que os índios brasileiros eram pessoas sem fé, sem rei, sem lei. É certo que es- sas tribos ignoravam a dura lei separada, aquela que, numa so- ciedade dividida, impõe o poder de alguns sobre todos os de- mais. Tal lei, lei de rei, lei do Estado, os mandan, os guaiaquis e os abipones a ignoram. A lei que eles aprendem a conhecer na dor é a lei da sociedade primitiva, que diz a cada um: Tu não és

menos importante nem mais importante do que ninguém. A lei,

inscrita sobre os corpos, afirma a recusa da sociedade primitiva em correr o risco da divisão, o risco de um poder separado dela mesma, de um poder que lhe escaparia. A lei primitiva, cruel- mente ensinada, é uma proibição à desigualdade de que todos se lembrarão. Substância inerente ao grupo, a lei primitiva faz-se substância do indivíduo, vontade pessoal de cumprir a lei.

Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado. 2.