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O fio condutor dessa discussão será demonstrar como o sistema proposto por Segato (2003) explicita claramente um modelo capaz de elucidar como a história do gênero está vinculada à criação e incorporação de valores morais e em conformidade com um eixo diferencial de dominação. Esse sistema relaciona-se com os objetivos de aceitação da opressão – lugar privilegiado do opressor - e não do lugar subalterno das oprimidas, tal como define Bensusan (2004, p.01): “A opressão é parte de um sistema de vida que envolve a

desigual distribuição de auto-estima, as estruturas sociais e emocionais que permitem a continuidade da distribuição de privilégios, as imagens agenciadas de como devemos viver”.

Essa inversão na forma de se pensar a exclusão e as desigualdades explicita um fator ainda mais grave, que é o processo continuado de produção de insensibilidade para ação/prática da opressão. Identificar as categorias oprimidas não é difícil (raça, gênero, etnia, classe), mas reconhecer-se no lugar de quem oprime é quase impossível quando estamos contornadas pela insensibilidade dos discursos que a naturalizam. Como aponta Bensusan: O

aprendizado da tolerância à opressão é parte da teia onde aprendemos quem somos, o que devemos fazer, o que nos é permitido esperar. É um pacote só.

Para Shenna, Claúdia e Lourdes, na cultura mulher é para casar, ter filhos, ser dona

de casa, servir o marido: dar comida e lavar a roupa deles. Segundo elas, é isso que se espera

de uma mulher. Shenna enfatiza: Mulher tem que ser a dona da casa, só pode fazer aquilo e

aquilo.

O condicionamento sistemático dessa pedagogia da opressão naturaliza o eixo dominante e faz dele um status a ser alcançado. As Margaridas relatam que os companheiros costumam denegrir a comida, a roupa e a limpeza que elas executam diariamente na casa. Este exemplo mostra como o eixo da opressão não é percebido. Por um lado, os homens agressores assumem o mandato de violação, e por outro, elas, as mulheres, continuam a realizar as tarefas da casa com a expectativa de assumir seu papel definido culturalmente.

Alessandra, por exemplo, relatou que quando estava casada não percebia a agressão do companheiro. Eu achava que fazia parte entendeu? No casamento, onde eu morava, acontece

isso e ninguém acha que seja violência doméstica né? Hoje eu tive a coragem de sair entendeu?

Luisa também afirma: hoje, quem vive assim essa violência doméstica é a gente... eu

mesmo no meu caso não pensava que fosse né?

A relação senhor/escravo, como visto em Segato (2003), auxilia-nos nesta reflexão da produção das insensibilidades quando mostra o conjunto de ações que compõem a interpretação naturalizante do sistema assimétrico. Ver-se no lugar do oprimido é uma possibilidade, mesmo com tantos esforços para se distanciar delas, mas tomar consciência de que se está na posição de opressora é uma impossibilidade quando esta posição lhe rende certos tributos.

A idéia de que as posições subservientes sejam naturais é insustentável quando percebemos, como esclarece Bensusan, que: toda subjetividade é agenciada na desigualdade

de privilégios. E a invisibilidade delas (ou a suposição de que elas sejam assim mesmo ou coisas da vida ou que haja boas razões para que elas se mantenham etc.) não é aprendida como um apêndice ao processo em que aprendemos quem somos.

Ainda em Bensusan (2004), as pessoas são “condicionadas para se comportar de uma

maneira opressiva (pela masculinidade, pelo orgulho de classe, pelo sentimento de supremacia) e dificilmente conseguem enxergar a opressão como tal; ficam insensíveis a ela”. Essa invisibilidade – que caminha junto com os significados atribuídos aos gêneros -

tece o discurso hegemônico da polaridade, ocultando o ato violento que a engendra e, por fim, naturalizando-o em categorias fixas e engessadas.

O controle dos corpos das mulheres também contribui para esse processo de identificação de quem somos - construção da identidade. Alessandra diz dos controles das roupas afirmando: porque a mulher não pode usar um toco de saia, ou seja, a mulher precisa controlar o que veste seu corpo para não provocar os desejos de outros homens e não ser confundida com objeto. E complementa: Antes de eu ter meu filho eu me vestia... tocava o

terror, eu me vestia bem curto, barriga bem de fora, perna. Sempre usei. Ele nunca me proibiu. Nunca. Às vezes chegava um amigo dele 'nossa, tu deixa tua mulher com o rabo de fora?'. Essa fala contribui para aprofundar esse debate à medida que retrata dois lugares de ser

da mulher: puta e mãe. Ainda quando não tinha filhos, Alessandra resistia à ditadura da vestimenta, mesmo com todas as coerções da fratria do ex-companheiro que a nominavam como “oferecida”, que significa “deixar tua mulher com o rabo de fora”. Isto implica, ainda,

que o ex-companheiro não estava cumprindo eficazmente seu papel de macho, que seria o de proibi-la de andar com roupas curtas.

No entanto, Alessandra retrocede quando se vê assumindo a maternidade, o que mostra que os conceitos estão profundamente internalizados, e sem qualquer solicitação externa, ela mesma se coloca no lugar que é esperado de uma mãe.

Foucault analisa essas categorias de identidade e diz que estas são efeitos de instituições, práticas e discursos. O autor analisa a economia sexual masculinicista e questiona seus pressupostos nas ciências psis, que cria um campo de investigação a partir de codificações rígidas sobre a idéia de persona, principalmente sobre o corpo da mulher e da criança.

Foucault analisa três eixos: a formação dos saberes em torno do sexo, isto é, uma discursividade exagerada sobre o sexo; os sistemas de poder que regulam a sua prática; e a forma como os sujeitos podem ou não se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade, o que torna a insubmissão ao discurso hegemônico uma afronta ao império do saber sobre o sexo, e ainda, deixa a imagem de essencialidade do gênero ainda mais rígida.

Cláudia evidencia essa essencialidade: Ele podia tudo e eu não podia nada, ele tinha

toda liberdade [...] Ele saia, fazia e acontecia e eu não fazia coisa nenhuma. Ele saia a hora que queria para as festas com os amigos para comemorar e eu não podia acompanhar ele, não podia aparecer, eu tinha só que ficar em casa entre quatro paredes cuidando dos filhos, para ele chegar e encontrar tudo pronto, e ainda chegava e achava defeito. Porque tudo que eu fazia ele punha defeito. Eu não podia nada, que negócio e esse? Que mundo é esse? Por que o homem tem esses direitos e a mulher não tem? O homem criado pode tudo. Essa última

fala simboliza a hierarquia, pois um homem “bem criado” não pode ser submetido nem por outro homem, como acontece nos jogos sexuais e brincadeiras entre crianças e adolescentes. Um homem criado é um homem adulto que pode tudo na escala hierárquica.

Butler (2003) diz que Foucault descreve a relação política da sexualidade, que é instituída “pelas leis culturais que estabelecem e regulam a forma de significado da

sexualidade”. Para a autora, qualquer subversão das identidades de gênero soa como falha “do

desenvolvimento ou impossibilidades lógicas, precisamente porque não se conformaram às normas da inteligibilidade cultural”. (p. 39).

Para Foucault, a verdade sobre o sexo é garantida pela linguagem, pela discursividade produzida nas relações de poder, submetendo o indivíduo a um mero efeito ou objeto de poder. Do mesmo modo, essa análise foucaultiana ampara a discussão em relação ao patriarcado simbólico, uma vez que a discursividade a respeito do que é ser homem e do que é

ser mulher consolidou os eixos vertical e horizontal, criando uma identidade viril ao homem e uma de resignação natural às mulheres. (HIRIGOYEN, 2006, p. 78).

O deslocamento dessas identidades hegemônicas forclui a mulher do seu suposto lugar de passividade e resignação. Muitas narrativas evidenciam que elas reagiram à primeira agressão do companheiro; porém, como a reação não é algo naturalmente esperado na economia binária, o comportamento da mulher logo é percebido como uma inversão de papéis. A inteligibilidade dos gêneros está tão fortemente inculcada na subjetividade, que a mulher quando ensaia uma tentativa de reação – quando se identifica na posição do agressor: a agredida faz-se a agressora - é tomada por mecanismos de controle internos que a recolocam em seu lugar ou, por outro lado, intensifica a violência dos agressores. A esse respeito, compartilha uma das Margaridas: então quando eu comecei a reagir foi quando ele começou

a me agredir. Aí foi quando eu descobri que a violência estava entrando. Aí me batia na cara, me jogava na parede e ele vinha e eu ia para cima.

Lourdes e Shenna relataram que perceberam a primeira agressão e que tentaram reagir, mas se foram enfraquecendo ao longo dos anos e com o endurecimento das agressões. A esse respeito nos diz Lourdes, 48 anos: A primeira agressão ocorreu quando estava grávida e

fomos visitar os pais dele. Eu estava despedindo da mãe dele quando senti um chute por trás, de botina. Ao invés dele me chamar para ir embora, ele me chutou. Eu quase caí de barriga no chão. Eu respondi à agressão dele e peguei na perna dele. Ele caiu de bunda no chão, pois não estava esperando a minha reação.

Qual seria a reação esperada? Seguindo a conceito de inteligibilidade dos gêneros o compreensível seria ela se debruçar sobre a ação do companheiro e pedir-lhe perdão por algo que o tenha provocado ou incitado o seu descontrole, ou ainda, pedir-lhe desculpas pela sua reação inadequada.

A reação do ex-companheiro é ainda mais severa: aí a gente foi para casa a cavalo,

ele disparou na frente, me deixando sozinha pra trás. Era longe. Ele foi descontar quando

cheguei em casa. Bateu, bateu, bateu e saiu a cavalo novamente. Fiquei caída na cama.

Deu vários tapas, xingava, chamava de cachorra, desgraçada, safada. Depois dessa vez,

batia sempre. Eu ficava quieta, no canto e ele me batia. Essa mágoa vem me acompanhando

desde então. Não consigo reagir. A assimetria torna possível a idéia de correção, punibilidade

a uma reação não ajustada, retirando qualquer vestígio ou pretensão de potência da mulher. Ela se sente tão impotente que se culpa por ter cometido um ato fora do seu alcance, posicionando-se no papel de vítima e regredindo à posição essencial do gênero feminino. Quando ela diz: “ficava quieta, no canto”, assume o lugar esperado de uma mulher, que é o

lugar de vítima. Esse deslocamento súbito - quando ela tenta se posicionar de igual para igual frente ao legislador - é percebido como uma atitude imprópria e este a recoloca no seu lugar, produzindo um silenciamento de mais de 20 anos, que foram jazidos entre idas e vindas a hospitais psiquiátricos para se livrar da depressão.

Cláudia vivenciou uma situação similar, na qual também reagiu, mas em seguida se viu compelida a (re)adequar-se ao seu lugar destinado de mulher, caindo no chão: mesmo com

toda essa ameaça verbal continuei fazendo o remédio e quando estava com o remédio na mão ele me deu o primeiro tapa na cara. Naquele momento, sem pensar, devolvi-lhe o tapa e disse: “isso é para você se lembrar que toda vez que me bater eu vou me defender. Eu fiz

isso, mas até hoje eu não consigo entender onde encontrei forças para fazer isso. Nesse instante caí no chão e fiquei com dificuldades para respirar. A expressão “sem pensar” e

“eu não consigo entender onde encontrei forças para fazer isso” implica o quão absurdo seria ela se posicionar no pólo oposto, da autoridade, do masculino e da masculinidade. Estaria ela louca de reagir contra todo um sistema? Essa impossibilidade a faz permanecer por 20 anos na relação com o marido, ainda que às custas de um quadro depressivo e de fibromialgia.

Como esses deslocamentos e as atitudes de vitimização poderiam ser interpretados? O que significa essa dificuldade de respirar, um ato histérico? Seria uma simulação? Certamente não é uma simulação, mas trata-se de um mecanismo de defesa de proteção para esquivar-se de afetos ou sensações dolorosas, injustas e desagradáveis. A histeria estaria relacionada com sintomas, mas o que faz funcionar esses sintomas? Bastaria a classificação de histérica? Seria muito confortável codificarmos sua reação, mas o que faz Lourdes cair ou Cláudia não mais resistir é a impossibilidade do deslocamento em relação ao que é esperado, do seu lugar como mulher (longe da posição viril), que no primeiro momento procura resistir à agressão, mas ao voltar o olhar sobre si e sobre o olhar do outro, cai no chão. O ato de resistir permite, provisoriamente, a mudança do olhar, a introjeção da figura do senhor para responder e demonstrar o limite, a lei, mas a posição tradicional mulher/natureza a atravessa e a faz sentir- se mal, perdendo sua potência.

As experiências de vítimas da agressão foram narradas com freqüentes quadros de desmaios, falta de ar, dores de cabeça, impossibilidade de reagir, entre outras reações psicossomáticas. A reação significa resistir a esse lugar da mulher como assujeitada, mas, como se formata esse assujeitamento? Como já vimos anteriormente, o assujeitamento está na linguagem, ou seja, nos discursos que apóiam a biopolítica dos gêneros afirmando uma categoria performática a partir da leitura de um sexo biológico.

A pressão social que dá textura a esse discurso essencial também apareceu em outras narrativas: E tem também aquela parte, 99%, que diz, „ah você não presta, sei lá o que‟, mas ele não larga, cadê que larga a gente, quando a gente larga um indivíduo desse ele volta a ter pressão sob a gente. Por isso que eu digo isso não é amor, é abuso de poder.

As marcas desses lugares sociais são tão profundamente constituídas que Cláudia diz:

quando comecei a reagir ele passou a dizer que eu estava sendo instruída por outra pessoa, como se eu fosse incapaz de reagir por mim, ou seja, a mulher, além de submissa, não pensa,

sendo o atributo da racionalidade exclusivo aos homens e por isto ela deveria estar sendo instruída por outra pessoa, provavelmente um homem, como ele mesmo lhe diz: ele dizia que

eu tava era no Conic dando a bunda, estava com outro homem que não só usava seu corpo,

como também a aconselhava sobre sua vida conjugal. A redenção da mulher à genitália está no discurso do companheiro: um dia ele me disse assim: „eu só lembro que eu tenho uma

mulher, à noite, quando me deito na cama.‟

As narrativas revelam a forma como os modelos socialmente instituídos repercutem profundamente na vida psíquica, produzindo identidades, tecendo subjetividades e imputando sofrimentos, mantendo, ainda, a tolerância às agressões, a permanência no vínculo violento e quebrando gradativamente a potência delas: Tenho muito medo de tudo. Se a casa é perigosa e opressora, o que será a rua? Tem dia que estou bem, tem dia que estou mal. Eu me transformei

em uma pessoa psicologicamente doente. Às vezes eu penso que vou sair dessa, e aí quando eu vejo, caio novamente (Lourdes). Com a impossibilidade de transitar no espaço público,

com o confinamento nas chantagens do agressor que diz que melhor em casa do que na rua, ela se constitui psicologicamente doente para suportar a opressão. Este mecanismo serviu e ainda serve como álibi à economia patriarcal para rotular muitas mulheres como doentes mentais. O enquadramento psicopatológico é utilizado pela ciência androcêntrica para caracterizar até a última resistência possível da mulher. No caso em questão, o diagnóstico é de depressão. Lourdes faz uso de antidepressivos e ansiolíticos, ambos prescritos por uma psiquiatra.

Shenna também se vê nesse lugar de adoecimento e desabafa: Ele falou coisas que me

afetaram psicologicamente. As marcas das palavras emitidas pelo agressor e o discurso de

que mulheres não prestam, que mulheres são inferiores, que mulheres podem ser atacadas nas ruas, ficam profundamente balizados na experiência da mulher.

Débora relata como se enfraquece diante das palavras do companheiro: [...] ele não

bate, já tentou, mas nunca bateu, mas faz pior, faz eu sofrer psicologicamente. Fica falando um monte de coisa, que eu já estou velha e que eu não vou conseguir nada, que eu não sou

uma boa mãe, falando essas coisas é pior é o que eu acho. O alvo das depreciações é certeiro

neste caso de violência psicológica, uma vez que ele destituiu dois lugares de grande prestígio social preconizado pela cultura para realização feminina: o corpo como objeto sexual e o de ser boa mãe. Ela chorou muito ao relatar que se sentia feia e uma mãe que abandonou as filhas para ficar com ele. Essa chantagem reiteradamente usada pelo companheiro foi levando-a aos serviços de saúde, até que um dia, sentada no corredor do posto de saúde, foi abordada por uma mulher que a orientou, sem lhe perguntar a causa do seu sofrimento, a procurar o Programa Margarida.

Quando ingressou no Programa se identificava como emocionalmente confusa, não sabendo situar sua angústia e dizendo que se sentia louca ou em processo de enlouquecimento. A angústia e a ida ao hospital representaram uma forma tímida de resistir às agressões do companheiro (por isso a importância da capacitação das profissionais das redes de segurança, justiça e saúde em teorias feministas de gênero). A partir da inserção no grupo, foi contextualizando sua vivência, identificando a violência e se (des) responsabilizando pelo assujeitamento pretendido pelo agressor. Como diz Hirigoyen (2006), mulher nenhuma aceitaria a humilhação se a preparação psicológica não fosse tão eficaz em submetê-la.

Em suma, a articulação do cultural com o psicológico se dá exatamente a partir da premissa de que as manifestações de gênero e a produção de subjetividades estão profundamente entrelaçadas pelos discursos moldados por referências socioculturais. A internalização dessas referências também pode ser analisada como parte de um processo social no qual a pessoa se reconhece em determinados processos identitários e expressões de sexualidade. É preciso desenvolver um olhar crítico sobre a investigação psicológica e articulá-la com a política, história e a cultura. O fenômeno da violência conjugal é complexo e multifatorial e um problema dessa magnitude não pode ser reduzido a uma interpretação puramente psicológica.