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A discussão nesta seção será auxiliada pelas contribuições de Segato (2003, p. 253), que encontra nos mitos de criação do mundo um modelo fundante, capaz de propor uma etiologia da violência, estruturada, prioritariamente, nas relações de gênero e na pré-história patriarcal. A esse respeito nos diz:

[...] uma triangulação na qual o sujeito é expulso ou, alternativamente, seqüestrado de um estado paradisíaco e fusional de satisfação originária por um grande legislador onipotente que, com o seu poder ilimitado para fundar a lei que inaugura o mundo, corta a satisfação irrestrita, introduz interdições e divide entre todos os papéis, os valores e as atribuições (SEGATO, 2003, p. 96).

O mito pautado na figura de um legislador viril, instituído pelo poder onipotente e capaz de atribuir restrições morais para garantir a sociabilidade das pessoas – ou o acesso à cultura a partir da lei primordial do incesto em Lévi-Strauss – configura a ideologia que introduz o corte patriarcal como algo legítimo. Essa mesma dinâmica também pode ser revisitada em diferentes teorias, perfilando, então, uma estrutura elementar das hierarquias entre os gêneros e naturalizando a própria violência de gênero. A existência do legislador, sempre masculino, referente, dono da lei e responsável pela ordem social, confere-lhe não apenas um poder, mas instaura o contraponto imediato, que é a personagem da legislada, isto é, a personagem que deve render tributo e que, ao fazê-lo, sustenta o lugar de poder hierárquico do legislador.

Safiotti (2002) intitulou essa economia de projeto de dominação-exploração, e atribuiu a esse eixo explicativo a responsabilidade pela manutenção do patriarcado em diferentes configurações sociais e de relações interpessoais. Para a autora, sob a categoria social homens recai a exigência de sua capacidade de mando auxiliada pela violência.

Para Segato (2003), a figura de autoridade está associada ao masculino nos mitos de criação e, partindo desta contextualização para aprofundar o debate do sistema-dominação, a autora remonta a história e articula a figura desse legislador com a promessa de acesso ao estado paradisíaco ou seu contrário (trata-se também de um par binário: paraíso e inferno), e por isso a rendição de tributos é necessária e torna eficaz a sua economia. O tributo é oferecido pela legislada (dominada) com a expectativa de conquistar algo que é valorizado ou idealizado socialmente (a expectativa é alimentada pela promessa – promessa de par romântico, do amor, da recompensa do trabalho, do paraíso etc.). A idéia de amor sacrificial tem sua etiologia aqui, uma vez que há uma naturalização da sensação de dor, sofrimento, conflito, seguido de uma promessa de satisfação, compensação amorosa ou social – fazendo “valer a pena” qualquer sacrifício. A contrapartida está fundamentada na pretensa proteção do legislador.

A esse respeito nos diz Claudia, 48 anos: [...] Também me sentia protegida por ele,

por ele ser homem, e fora dali, pensava que não encontraria proteção alguma. Mas que proteção era essa que me batia e me humilhava dentro de casa? A rendição aos abusos do

companheiro vem pela idealização de que um homem irá protegê-la dos perigos do mundo público, da rua.

A questão do espaço público como hostil e ameaçador apareceu em todas as narrativas, fazendo com que – com vestes de ingenuidade e pelo discurso da natureza – a mulher se restringisse exclusivamente ao mundo privado, no qual construiu a idéia de importância da presença de um homem para protegê-la. Mas, proteger de quê?

O medo do estupro ou da vida na prostituição para sobrevivência foram as respostas mais recorrentes. O mundo público sem um referencial masculino – pai ou marido – é uma ameaça real que vulnerabiliza muitas mulheres na vida cotidiana. Essa construção de proteção e do espaço da rua como perigoso nos leva a pensar que realmente a construção de gênero faz parte de uma biopolítica do poder, que produz o status diferencial e a usurpação camuflada em proteção no mundo privado. Shenna, 49 anos, relatou seu medo de separar-se do marido:

eu tinha medo de sair da relação e não ter uma vida com as minhas filhas. Ficava com medo de não ter condições de dar uma vida digna para as minhas filhas. O que seria uma vida

digna, se não uma vida situada numa ordem, numa codificação social do casamento e da moral que o rege? Essa identificação social garante que aquele corpo – o da mulher – e o das filhas tenham uma referência nos significados culturais legitimados socialmente. Débora diz a esse respeito: se você fala com aquela mulher que é mãe solteira, eles falam que você é sem

designou mulher ou feminino recai sobre o seu corpo, tornando-o território de humilhação, intimidação, invasão ou desqualificação. Os insultos mais freqüentes retratam o lugar designado à mulher ou ao feminino: “puta, vagabunda, safada e cachorra” são apenas alguns.

A presença de um legislador na configuração familiar confere a possibilidade de uma vida “protegida” e organizada. Claudia fala do seu pai: Meu pai era muito severo, não deixava

eu sair pra estudar. Eu sempre queria muito sair pra estudar. Eu chorava, eu pedia meu pai pra deixar, ele não deixava. Os homens ainda podiam, mas as meninas, mulher não... ele tinha muito medo porque eu era muito bonita, chamava muita atenção. Ele tinha medo de alguém me fazer mal. Que mal seria este e por que o mundo privado seria a salvação desse

mal? O medo do estupro por um desconhecido – o que Segato (2003) chamou de Violación

Cruenta - é recorrente e permeia o imaginário social, mais do que isso, aterroriza o imaginário

das mulheres, provocando uma sensação de constante insegurança. O fazer mal está relacionado com essa invasão sexual, dos quais a rua e o mundo público são ilustrativos, haja vista que representam o perigo. Em contrapartida, um casamento representaria sua salvação e proteção.

Esse conceito de casamento também está diretamente relacionado com a supervalorização ao nome do pai na cultura, que mantém uma significação moral e econômica. Ter um pai significa ter tido uma lei, uma ordem e, ainda, uma referência patrimonial. Uma vida não digna seria retirar essa origem, essa nomeação e esse patrimônio. O correlato na cena cotidiana seria uma vida sem homem, sem um suposto protetor que a previne das usurpações de outros iguais a ele, ser alvo ou estar disposta a render certos sacrifícios na vida pública e não apenas na vida privada. Ele falava que se eu me separasse

dele as meninas iriam ser estupradas por outro homem (Shenna).

A desvalorização da mulher sem esta identificação ao nome do pai – identificação ao nome do homem, seja como mulher casada seja como filha (crianças e adolescentes precisam de um referente pai e a mulher de um referente marido) – está carregada de valor. Antes ser “filha do pai”, que simboliza culturalmente ser filha de uma ordem, do que ser “filha da mãe”, que pode, dentre outras coisas, simbolizar ser “filha da puta”, filha sem lei. Alessandra, 28 anos, explicita essa questão de valor vinculada ao marido: porque pra sociedade, uma mulher

separada ela não tem muito valor, principalmente para as mulheres que têm seus esposos, suas famílias, então, tem algumas pessoas que me olham diferente... não onde eu morava, porque onde eu morava me conhecem, né, sabem da minha história. Mas em lugares assim que, como eu mudei agora e não conheço muita gente, tem pessoas que me olham diferente,

me olham atravessado... tem pessoas assim... que eu moro numa rua muito comprida, às vezes eu tô subindo com os meus filhos e ficam me olhando.

A importância de trazer as contribuições de Segato (2003) para este debate é de situar como a história de gênero se constitui numa dinâmica de violência. Para demonstrar isto, ela reedita sistema estrutural descrito por Lévi-Strauss, que associa a lei primordial de acesso à cultura à proibição universal do incesto – realizada a partir de trocas de mulheres – para desvelar como a instauração dessas trocas só se faz possível a partir do ato de violência fundante, estrutural, ou seja, de um referente onipotente que se apropria de outras mulheres fora do grupo para não incorrer no pecado do incesto.

A violência estrutural associada ao mito fundacional denuncia a dinâmica já naturalizada na sociedade e até mesmo nas teorias, que institui duas polaridades, a do legislador e a do legislado, legitimando uma relação de poder e assujeitamento como “naturais” – e ainda servindo como modelo estruturante das relações – produzindo, por assim dizer, uma economia de poder assimétrica e hierárquica na sociedade. Essa lei universal, pautada no mito fundacional, criou a diferença, a equivalência e a escala de valor entre os gêneros, colocando os de maior valor de um lado e os de menor valor de outro e circulando-os na interação entre dois eixos, um de competitividade e aliança, o eixo horizontal dos iguais – dos homens, e o eixo vertical, no qual o diferente tem de lhe render tributos, atribuindo-lhes não somente valores, mas funções diferenciadas (Segato, 2003). É o tributo sacrificial que evidencia a relação violenta: Eu deixava de comer por causa dele, eu não amava ele não, eu

era viciada nele vamos dizer assim. Quando ele foi preso eu chorava dia e noite, porque pesava 58kg e cheguei a pesar 42kg dentro de 2 meses. Eu não comia e não dormia. Nessa época eu fumava, e fumava e chorava. Meus filhos eu nem cuidava mais dos meus filhos porque eu amava ele.

Por outro lado, muitas das produções sintomáticas manifestam-se nesse processo de anulação da mulher que acaba desenvolvendo quadros graves de depressão e ansiedade. A produção do sofrimento como um atributo necessário do amor também carrega um objetivo político, que é o assujeitamento para manter a relação desigual.

O masoquismo – descrito como uma satisfação ligada ao sofrimento ou à humilhação (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983) – e citado por algumas autoras para explicar a passividade de certas mulheres, foi uma categoria que corroborou para a manutenção da lógica de submissão atribuída às mulheres e, ainda, da essencialidade dos gêneros (mulher e

homem). Falar em masoquismo é corroborar com a naturalização da polaridade, essencialidade. O masoquismo vem sempre associado à mulher ou ao feminino14.

O termo masoquismo, compreendido como perversão, foi associado ao feminino como um atributo natural. Freud descreveu três tipos de masoquismo: endógeno, feminino e moral (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983). No entanto, procurou explicar o equívoco dizendo que não se tratava de um masoquismo da mulher, e sim de um masoquismo feminino. Essa distinção entre feminino e mulher é recorrente na obra Freudiana, na qual ele diz que falar de feminino é diferente de falar de mulher. Sua intenção, ao partir da bissexualidade, foi dizer que a feminilidade e a masculinidade são possibilidades imanentes em todos os seres humanos. No entanto, masculinidade e feminilidade também são construtos sociais e não dependem do sexo biológico. A questão não se limita em ser feminino ou não, mas na edificação anterior à construção do conceito. Se partirmos da contribuição de Segato sobre o ato violento, percebemos nitidamente que há um projeto de dominação-exploração, como proposto por Safiotti (2002), capaz de construir conceitos patologizantes e produzir sintomas fundamentados nesse marco ideológico moral e bio-político. Segundo Birman (2002), os traços psíquicos da masculinidade e da feminilidade são derivações das essências somáticas construídas no território da moralidade e esta, por sua vez, constitui-se a partir de toda essa ordem diferencial de status, desde o mito de criação.

Não seria óbvio que a construção desses sintomas estaria relacionada à produção do feminino? Foucault (1993) nos auxilia nessa reflexão ao chamar atenção para a obsessão pelo sexual presente nas práticas disciplinares do século 19 e todos os seus desdobramentos de controle dos corpos. A sexualidade, não resta dúvida, foi construída, e se inscreve nos sistemas de representação que definem as formas precisas de ser de cada um dos gêneros. Contudo, como pano de fundo da descrição e categorização dos sintomas, há um solo moral, político e religioso.

Essa breve explicação faz-nos pensar que não se trata de uma patologia individual, uma perversão, mas de uma possibilidade frente ao que é instituído como referência e lei. Não se trata, pois, aqui, de ignorar – ou proscrever – que há, nessas margens, agência. Tampouco se pretende nulificar subjetividades. Contudo, não se pode relativizar a preponderância do patriarcado simbólico, correndo o risco de pulverizar este debate e (re)cair na privatização da violência e de sua magnitude. Dizer simplesmente que as mulheres em situação de violência

14 Entende-se por feminino todo o pólo contrário imputado ao modelo de virilidade, e aqui podemos destacar as

crianças, alvos recorrentes de abusos sexuais; adolescentes e mulheres; homossexuais; travestis, alvos de crimes homofóbicos, entre outros.

conjugal são masoquistas, procuram o sofrimento, é simplificar a questão e ocultar a assimetria na qual se fundam as relações de gênero. Pode-se dizer que são levadas a naturalizar os eixos assimétricos, já que são agenciadas por estes domínios de saber/poder, como são também os homens ao se submeterem à função de dominação.

Retomando a idéia de sacrifício, fortemente presente na permanência da mulher no vínculo violento, sua economia funciona da seguinte forma: o legislador, sempre associado a uma figura viril e masculina, instaura a lei hegemônica e inaugura o eixo sacrificial, vertical, no qual ela - a mulher - terá de lhe render tributos para alcançar o paraíso, a cultura, a adequação, etc. Essa expectativa está nas narrativas e Claudia evidencia: Quando eu conheci

meu marido eu acreditei, ele é mais velho que eu, experiente... Digo 'ah, ele vai me ajudar a

chegar onde eu quero'... Infelizmente ele não deixava eu fazer nada. Meu negócio era só

ficar em casa. Fiquei... foram 20 anos da minha vida. O que a fez permanecer por vinte anos

na relação não é uma estrutura interna, abstrata – psique – mas uma psique que responde concretamente à estrutura tributo-recompensa que, no caso de Cláudia, era a possibilidade de estudar e ter uma casa, duas benesses reservadas ao domínio masculino: racionalidade e patrimônio.

O assujeitamento da mulher localiza-se neste eixo sacrificial, vertical, no qual se curva para quem está no vértice da hierarquia para conquistar algo que não tem, pior, que não pode ter já que o público não pertence ao trânsito de mulheres.

Essa dinâmica instituída é tão absurdamente sutil que fica difícil identificá-la quando essa historicidade se confunde com a história da natureza, como explicitado na história da diferença entre os sexos e na legitimidade dada ao poder onipotente. O ato de violência instituído nesse sistema de trocas é invisibilizado, por isso a história de gênero se confunde com a história da espécie, e qualquer insubmissão a essa ordem é tida como um ato contra a vida, uma doença, uma patologia, uma perversão, isto é, uma subversão a ordem estruturante e patriarcal. Aqui se insere a maior eficácia do patriarcado simbólico, que é capaz de reeditar esse ato de violência no cotidiano das relações sociais, no culto ao religioso, nos sistemas teóricos, entre outros binarismos.

Lacan, afirma Segato(2003), também deixou de perceber o ato de violência fundacional quando afirmou que o homem tem o falo e a mulher é o falo. Para aprofundar essa questão, ela faz uma analogia a partir do trabalho etnográfico de Godelier sobre o segredo dos homens - no grupo étnico dos Baruya de Nova Guiné - que manteve as flautas roubadas longe da visão das mulheres. A flauta foi um instrumento criado e tocado pelas mulheres, mas roubado pelos homens em sua ausência e é justamente esse segredo do roubo da flauta que

parece fazer sentido quando falamos do roubo do falo pelos homens, tal como parafraseado acima por Lacan. Segundo Segato (2003) “O poder é sempre, por natureza e pela própria

ingerência que o constitui, uma usurpação, um roubo da plenitude e autonomia, uma expropriação. Seria pertinente então trocar a palavra no texto lacaniano e dizer que o homem usurpa o falo e não simplesmente que o tem.” (p.101).

Claúdia confirma essa economia da violência e usurpação quando narra que seu ex- marido nunca admitiu que lhe batia e humilhava, além de acusá-la de coisas que ela jamais fez: Quando você é acusada de coisa que você tem certeza que você não fez, que você não é

aquilo e a pessoa está querendo convencer que você é. Para mim, essa é a maior mágoa do meu ex-marido. Essa mágoa não vai sair, e eu ainda fico mais magoada porque ele acha que

não fez nada. Tudo é invenção[...].Acho que no fundo eles acham que a gente não presta [...] A mulher era pra obedecer, abaixar a cabeça, transar sem vontade, sem desejo. Não dá pra ter desejo numa relação assim. Já transei muito sem vontade pra ver se ele me deixava em paz logo. Neste longo trecho há três elementos: a usurpação – através da qual aprendeu a ser indiferente à opressão e a pessoa que a oprime (BENSUSAN, 2004); a humilhação, pautada na essencialidade do gênero; e o corpo da mulher como objeto sexual. Ela percebe o roubo quando ele diz que não fez nada, mas se faz insensível diante da humilhação e cede ao desejo sexual dele – lugar em que ele a coloca – para alcançar a paz. O que configuraria a paz? Para ela seriam três coisas: não ser usurpada e humilhada, ficar perto dos filhos e não perder a casa Esses três elementos constituem três atributos valorizados socialmente: o controle do próprio corpo (poder ser), direito de conviver de forma livre e ter acesso ao patrimônio – capital e trabalho. Ele roubou tudo: sua autonomia, seu prazer, sua possibilidade de viver em paz e seu patrimônio, uma vez que durante o processo de divórcio litigioso ele a ameaçou com uma arma para vender todo o patrimônio antes da audiência. Ele já tentou matá-la com uma inchada, já a agarrou e a arrastou pelos cabelos, já a esbofeteou e sempre fez humilhações e intimidações psicológicas, mas nada disso parece ser violento aos olhos do seu ex- companheiro.

Segato (2003) aponta os limites - ou o que não pode ser visto – de Lévi-Strauss e Lacan, que é exatamente o ato violento que antecede a instauração da estrutura hierárquica que inaugura o ser humano na cultura, legitimando a violência primordial como essencial. Esses limites que Segato aponta em Lacan e Lévi-Strauss também não são vistos em diferentes teorias psis que propõem estudar o fenômeno da violência conjugal pautado nos mesmos pressupostos que legitimam o ato violento, isto é, na relação entre legislador e

legislado com contribuições que supõem a existência da lei e a triangulação funcional familiar.

A autora parte da idéia de estrutura para apontar a violência que a instaura como mito, como origem ou ordem natural, evidenciando a historicidade da violência que se funda como algo natural entre as relações. É essa discursividade naturalizada que valida a violência, inclusive nos constructos teóricos de Lacan e Lévi-Strauss. A legitimidade dada à relação entre senhor e escravo torna tenso o debate da violência conjugal nas ciências pragmáticas quando procuram desestabilizar a ordem hegemônica do biopoder. É muito mais fácil observar e falar sobre – descrevendo os sintomas da queixa - do que analisar criticamente a produção maquinímica, reconhecê-la e resistir.

Na passagem da natureza à cultura e com a afirmação do capitalismo, três elementos são imprescindíveis nessa economia: a troca de mulheres (aliança), de bens e serviços (economia) e produção de signos para viabilizar a linguagem. O corpo da mulher, símbolo da subalternidade na economia desigual do gênero, é uma moeda de troca, na qual o homem garante perante outros homens sua força e seu poder. É o que Segato (2006) buscou definir na economia simbólica do eixo horizontal, representado pela aliança e competição entre iguais, e o vertical, economia de circulação entre desiguais regulado em uma ordem de honra e valor distinto, no que chamou de tributo (p.254). O corpo da mulher vê-se, neste modelo, como objeto de usurpação por outro homem, ação que garante a fratria masculina e o aniquilamento de um corpo já usado, perdendo seu valor e empoderando o homem que a usurpou. Assim diz uma das Margaridas: Depois de dois anos e meio que estávamos morando juntos ele

descobriu que fui estuprada quando adolescente. A partir daí eu não tive mais valor algum. Ele disse que eu tinha provocado aquilo, que era uma vagabunda, uma mulher objeto.(Alessandra, 28 anos, 13 anos casada).

O crime de estupro deixa a questão do eixo horizontal em evidência, pois, apesar de ter sido vítima, a mulher se sente maculada, envergonhada e sem valor, silenciando-se. A atitude do companheiro de Alessandra corrobora para a descriminalização do ato violento e afirma o lugar de um corpo feminino quando ele a acusa de “vagabunda”.