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CAPÍTULO 3 – Arbitrariedades no Porto Maravilha

3.1 Violações ao Estatuto da Cidade

Todo esse legado pretendido seria um sonho se não esbarrasse ao menos em um ponto: o Estatuto da Cidade. Aprovado por unanimidade no Senado, em junho de 2001, o Estatuto é a lei, sob o número 10.257/2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, e tramitava no Congresso Nacional havia 13 anos.

Sem entrar nas discussões em torno da lei, vale registrar que o estatuto sofreu duras críticas de diversos especialistas ligados à temática da cidade. Uma delas dizia respeito ao fato de o documento conter detalhamentos em excesso, o que serviria para “atender a ilusória crença de que uma lei detalhada e supostamente completa evitaria dúvidas, distorções, abusos e seria de compreensão, aplicação e fiscalização mais fáceis”, como pondera o professor emérito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Flávio Vilaça36.

Mesmo sem estar envolto em unanimidade, o Estatuto traz consigo avanços por simplesmente tratar do tema de forma regulatória. A partir desse documento, os municípios passam a ter, entre outras atribuições, a tarefa de definir as condições de cumprimento da função social da propriedade e da própria cidade, permitindo que áreas

35 Disponível em http://www.brasil2016.gov.br/pt-br/noticias/jogos-do-rio-2016-plano-de-politicas- publicas-elenca-27-projetos. Acessado em 24/06/2015

vazias ou subutilizadas situadas em áreas dotadas de infraestrutura estejam sujeitas ao pagamento de IPTU progressivo, de acordo com as diretrizes de uso e de ocupação da terra previstas para a região pelo plano diretor, instrumento que pode contribuir para frear a expansão horizontal ilimitada. Na ocasião, a urbanista Raquel Rolnik já questionava que tal medida, que passara a ser garantida pelo novo estatuto, fornecia condições mais favoráveis de mobilidade da população pobre da cidade: “Que cidade média ou grande de nosso país não é obrigada a transportar, cotidianamente, a maior parte da população para os locais em que se concentram os empregos e as oportunidades de consumo e de desenvolvimento humano, desperdiçando inutilmente energia e tempo?”37

A partir dos benefícios trazidos pelo estatuto e pela definição que trouxe para a concepção de intervenção no território, Rolnik apontou as vantagens de os planos diretores passarem a contar com a participação da população e de associações representativas de vários segmentos econômicos e sociais desde sua gestação até a implementação e acompanhamento. “Mais do que um documento técnico, normalmente hermético ou genérico e distante dos conflitos reais que caracterizam a cidade, o plano é um espaço de debate dos cidadãos e de definição de opções, conscientes e negociadas, por uma estratégia de intervenção no território” (ibidem). Mas, infelizmente, o Rio não viu isso acontecer.

O Porto Maravilha é uma Operação Urbana Consorciada (OUC), que reúne “ações urbanísticas e financeiras que visam promover a requalificação urbana e o desenvolvimento social, ambiental e econômico da região portuária”38. OUC é um dos instrumentos de política urbana previstos no Estatuto da Cidade e pode ser definido como

o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental (ESTATUTO DA CIDADE, 2001, p. 78)

O enquadramento da OUC Porto Maravilha em tais definições, no entanto, tem sido contestado em algumas análises, como a realizada pela professora Fernanda Furtado (2014). Para ela, nos aspectos urbanísticos, por exemplo, a OUC do Porto Maravilha não estabeleceu a integração com outros instrumentos do Estatuto da Cidade, e o plano

37 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2506200110.htm

urbanístico foi elaborado com base nas decisões prévias de aporte de recursos financeiros, e não o inverso, como a lei previa.

Nos aspectos sociais, há diversos fatos que muito provavelmente servirão ao processo de gentrificação da região: a desconsideração da diversidade social no projeto; a conservação Pública entregue à iniciativa privada (Consórcio Porto Novo); a participação social esvaziada, entre outros. Furtado identifica, também, conflitos nas questões econômicas, como o fato de todos os Cepacs terem sido vendidos previamente por um valor que não cobre os custos previstos para a totalidade da operação; dois terços dos terrenos pertencerem à União; e as estimativas de produção imobiliária muito ambiciosas. Os recursos financeiros para a realização das obras são provenientes do FGTS.

Visando democratizar as decisões, reunir informações e fomentar discussões sobre o planejamento urbano, as cidades costumam adotar a formação de conselhos municipais. A função desses conselhos, que reúnem representantes da sociedade civil, é propor alternativas capazes de abranger todos os segmentos da sociedade por ocasião de mudanças na cidade. No caso do Rio, em vez de cumprir o estatuto da cidade, o conselho municipal foi utilizado como elemento de promoção de autoimagem positiva por parte da prefeitura para legitimar essa participação. Isso porque, para sua composição, foram convidadas 150 personalidades de destaque da sociedade carioca, selecionadas pela prefeitura do Rio, com base no critério de “reconhecimento de sua contribuição para a cidade”. O conselho é dividido em 10 grupos temáticos: saúde, educação, transportes, habitação, ordem pública, desenvolvimento econômico, gestão e finanças públicas, meio ambiente e sustentabilidade, cultura e desenvolvimento social. Cada grupo é coordenado pelo secretário municipal da pasta.

Na ocasião do lançamento do conselho, em 15 de dezembro de 2011, O Globo publicou uma reportagem que se ateve a descrever o papel do conselho. Como fontes ouvidas na matéria, apenas o prefeito Eduardo Paes e a atriz Regina Casé. No caso de Paes, vale destacar que sua fala ressalta que

“ouvir cidadãos influentes é uma tentativa de saber aonde a cidade quer chegar. Para ele, o diálogo com moradores já acontece com frequência. Com o Conselho da Cidade, o governo tem chance de conversar com formadores de opinião”. (“Conselho da Cidade inicia diagnóstico do Rio”, O GLOBO, 16/12/2011, p.26)

Acontece que, dadas as características do Conselho, o formato executado pela prefeitura do Rio pode ser considerado amplamente arbitrário, concebido e implementado sem a participação da sociedade civil, sem que a população, parte mais impactada diretamente pelos benefícios e custos de tamanha intervenção, fosse informada ou consultada. Mais curioso é o fato de esse conselho reunir além de artistas, médicos, arquitetos, políticos, economistas, jornalistas, publicitários, empresários e executivos com interesse direto nessa “venda” da cidade, como é o caso de donos e representantes de empresas envolvidas individualmente ou por meio de consórcios em obras ligadas às Olimpíadas ou com interesse direto no que as obras possam gerar. Para citar alguns exemplos, o empresário Carlos Carvalho, dono da construtora Carvalho Hosken (participante do consórcio Parque Olímpico), Philip Carruthers (executivo do grupo Orient-Express Hotels no Brasil, proprietário atual do Copacabana Palace) e Rogério Chor (dono da construtora CHL, cuja sede será na região do Porto Maravilha).

Com essa composição, o conselho municipal é o responsável por respaldar as políticas públicas assumidas pela prefeitura como compromisso, e que tem os agentes municipais (servidores e agentes, de um modo geral) como executores dessas políticas planejadas por intermédio de metas estabelecidas para cada segmento do governo municipal, ou seja, secretarias e demais repartições. No que se refere à Secretaria de Habitação, por exemplo, a área favelizada da cidade deveria ser reduzida em 5%. Para a tomada de decisão acerca dessas áreas, fotos aéreas orientam as medições com comparações antes e depois, não importando como se deu a desocupação de determinada área.

É em aspectos como esse que a parcialidade na montagem do conselho municipal pode ser tão prejudicial para o estado de bem-estar social para os cidadãos do Rio. Sem representatividade de amplos segmentos da sociedade civil, em especial de grupos sociais, a condução das políticas públicas tem sido centrada em interesses meramente comerciais representados pelos integrantes do conselho municipal, sem levar em conta a garantia de direitos básicos de cidadania da população residente em locais modificados pelas obras.